Sábado, 13 de maio de 2017
Por *
Uma
nova Constituição agora seria naturalmente uma carta autoritária,
reacionária, deslavadamente entreguista, antipovo e antinação
As forças dominantes da Constituinte de 1946 estavam unidas em torno de um projeto liberal-democrático. E hoje?
São
diversas, por óbvio, as óticas mediante as quais é possível
interpretar a História, passo primeiro e indispensável para a correta
intervenção no processo social. A História pode ser vista como processo,
derivado da intervenção humana, como também pode ser vista, e o é
frequentemente, como um fato autônomo, objetivo, pronto, acabado,
parado. A primeira hipótese lembra uma sucessão de fatos que se encaixam
segundo uma determinada lógica que se expressa mediante o movimento,
ou, mais precisamente, uma progressão dialética. A segunda hipótese lê a
História como quem contempla um fotograma, uma pintura, um quadro de
arte pendurado na parede. Essa visão é irmã gêmea do dogma. Nela, a
verdade é atemporal, a realidade está congelada, as palavras de ordem e
os pleitos políticos estão imunes à intervenção da vida real.
Ilustração dessa visão é o enredo do romance A ponte do Rio Kwai,
do francês Pierre Boulle, que se fez mundialmente conhecido pelo filme
(de mesmo nome) que teve Alec Guinness num dos melhores momentos de sua
longa carreira cinematográfica.
A história é simples, é possível resumi-la.
Prisioneiro
dos japoneses, na II Guerra Mundial, o Cel. Nicholson (Guinness) é
intimado a construir uma ponte, fundamental para a estratégia nipônica.
Nosso herói não apenas aceita o encargo como o executa, comandando sua
tropa de prisioneiros ingleses com rigor técnico, esmero e dedicação,
até paixão, porque é assim que sua formação ética dirige seu trabalho e
sua vida. Não lhe confrange, porém, saber que aquela ponte era
fundamental para o esforço de guerra japonês. Fala mais alto seu
compromisso com a engenharia. E quando os soldados americanos e ingleses
chegam para destruir o engenho, o pobre Nicholson, desesperado, tudo
tenta para salvá-lo. Porque o fundamental, para ele, era sua honra
depositada na obra, e exatamente por isso ele a defendia com unhas e
dentes, sem cogitar das consequências de seu uso pelos japoneses.
Essas
imagens me ocorrem quando setores da esquerda brasileira, mais próximos
de Hegel do que de Marx, estão a defender a convocação de uma
Constituinte, para já, sem cogitar da correlação de forças que
determinará sua composição e seu conteúdo.
Nada
mais legítimo e nada mais necessário do que uma Constituinte para
“passar o País a limpo”, como reclamava Darcy Ribeiro. Mas, antes,
precisamos desmantelar o golpe e reconquistar a sociedade.
A
Constituinte de 1946 instalou-se após a queda de Vargas e a de 1988, na
sequência da derrubada da ditadura militar. Ambas foram precedidas de
grandes mobilizações populares e, principalmente, avanço político, mas
mesmo assim estivemos longe de conquistar a hegemonia, embora tenha sido
possível muitas conquistas na ordem democrática e social com o texto de
1988.
O
atestado de sua relevância é o denodo com o qual os presidentes eleitos
sob o novo regime constitucional se empenharam na sua descaraterização.
Nesse sentido foram campeões José Sarney e FHC, aquele que prometeu
“enterrar a era Vargas”, depois de pedir que esquecêssemos o que havia
escrito em seu tempo de sociólogo.
Como
é sabido, não tivemos forças para salvar os principais avanços – e
assim a Constituição ‘cidadã’ sofreu 95 emendas que atingiram,
principalmente, os direitos trabalhistas, a defesa da economia nacional e
nossa soberania. Mesmo assim nos trouxe até aqui. Para desestabilizá-la
fez-se necessário um golpe de Estado reacionário que reuniu ao capital
rentista o atraso político do agronegócio e as mais reacionárias seitas
religiosas, como os diversos setores do neopentecostalismo.
São
símbolos dessa desmontagem – que nos desafia – a “reforma trabalhista”
cujo único objetivo é retirar direitos que remontam há mais de 60 anos,
fragilizando ainda mais o trabalho em face do capital, e a reforma da
Previdência, que pretende punir aqueles que mais dela necessitam, os
pobres. Cogita-se, até, de acabar com a Justiça do Trabalho, acusada de
protetora da classe operária.
Mas
nada é tão significativo dos crimes em andamento que o projeto de certo
líder tucano que simplesmente pretende revogar a Lei Áurea! Sua
excelência propõe que a jornada de trabalhador rural passe para 12 horas
e em vez de salário receba comida e choupana para morar. A alta
burguesia rural, protegida pelo Estado sob seu controle, beneficiária de
empréstimos que não são pagos, consumidora dos investimentos da
Embrapa, descomprometida com objetivos nacionais, voltada para o mercado
exterior, não faz concessão na luta de classe, num didatismo que torna
incompreensível aqueles que ainda apostam na conciliação.
O
outro lado dessa luta de classe, que se opera contra os trabalhadores e
contra o país, é o avanço de uma visão reacionária, protofascista, de
Estado e sociedade, disseminada diariamente, insistentemente,
sistematicamente pela mídia monopolizada ideologicamente. Uma imprensa
que desde muito renunciou ao jornalismo para transformar-se em
trincheira do pensamento e da ação de direita.
Esse
proselitismo tem dado frutos, como lembra o esforço midiático visando à
desestabilização da presidente Dilma, a campanha pelo impeachment, a
implantação do golpe. E, presentemente, sua sustentação.
Um
e seus frutos – e nesse afã a razia fascistoide conta com a colaboração
de setores desgovernados do Poder Judiciário e do Ministério Público –,
é a desmoralização da política, dos políticos e dos partidos. Para quê e
por quê? Ora, não há possibilidade de vida democrática sem partidos e
sem políticos. A desmoralização da política e dos políticos foi o aríete
da direita brasileira, que, com a omissão comprometedora dos liberais e
a ação da imprensa, criou as condições subjetivas necessárias ao golpe
de 1964. Essa mesma tática é renovada presentemente, com os mesmos
objetivos.
Sem
descartar as perspectivas futuras de uma Constituinte, a tarefa do
curto prazo é a defesa da ordem constitucional democrática, ponto de
partida para a retomada da hegemonia, e a salvação, sem casuísmos, das
eleições de 2018. Aos pobres e deserdados a democracia é fundamental,
tanto quanto o governo de exceção é o regime de preferência das classes
dominantes.
Lamentavelmente,
não estão presentes as condições políticas que asseguraram a convocação
das constituintes de 1946 e 1988, e muito menos os textos democráticos
que legaram. Esta é a questão central, pois a política, em qualquer
tempo e onde quer que se experimente, é produto da correlação de forças.
E esta, hoje, não nos é favorável. Esta conclusão mais do que óbvia,
não descarta o projeto maior – uma Constituinte –, apenas nos adverte da
necessidade de conhecer previamente sua oportunidade, pois seu projeto
só se justifica, para nós, como instrumento de avanço dos interesses da
democracia e das grandes massas.
Esta
é a questão fulcral: não se trata, para nós, da defesa pura e simples
de uma Constituinte, mas de uma determinada Constituinte. Tanto assim
que a direita também a reivindica, pelas páginas autorizadas do O Estado de S. Paulo,
e pela pena de seus intelectuais orgânicos, de que é exemplo o
‘Manifesto’ assinado por Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José
Carlos Dias.
A
Constituinte das elites – condicionada pelo monopólio
político-ideológico, reacionário e golpista, dos meios de comunicação de
massa associados ao capital internacional – é a promessa, hoje, de uma
carta autoritária, reacionária, deslavadamente entreguista, antipovo e
antinação. Já a Constituinte de que carecemos, sustentada pelas ruas
cheias de povo, é aquela que – a partir de novo pacto – tenha forças
para escrever uma Carta que retome as conquistas históricas de nossa
gente e avance no plano da democracia. Hoje, não temos condições de
garantir esse salto de qualidade.
Para
nos habilitarmos à Constituinte, projeto de médio prazo, precisamos
cuidar de nossas organizações partidárias, em crise exposta, e
contribuir para a reorganização do movimento social, de que a Greve
unitária de 28 de março foi um marco. Esses dois objetivos construirão
as bases políticas necessárias à construção de uma Frente Ampla (como a
que precipitou a derrota da ditadura em 1984) na qual, ao lado das
esquerdas, orgânicas ou não, caibam todos aqueles que conosco estejam
dispostos a resistir e derrotar o atual governo. E precisamos, por
óbvio, travar a luta ideológica.
Ao
lado da resistência congressual e popular, contra as ‘reformas’ da
ordem do dia do Planalto, precisamos discutir com a sociedade os
diversos projetos de reforma política, que podem definir as condições de
disputa das eleições de 2018, que precisamos assegurar (e só a
mobilização popular assegurará) em condições de justa competitividade.
Essa reforma, à mercê desse Congresso e do conluio com o
Planalto, jamais será aquele que fala aos interesses das massas, mas, a
contar com nossa capacidade de mobilização, poderá compreender alguns
avanços, como a continuidade da proibição do financiamento privado das
campanhas eleitorais de par com seu barateamento, o voto em listas
fechadas, e o fim da reeleição.
Ao
fim e ao cabo, uma certeza: nunca foi tão importante para as forças
populares a defesa da ordem constitucional democrática, agredida por um
governo ilegítimo e um Congresso sem representatividade.
Roberto Amaral
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia