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(Millôr Fernandes)

domingo, 14 de maio de 2017

Mesmo com ordem de juiz, pacientes da cardiopediatria não conseguem leitos

Domingo, 14 de maio de 2017
Mesmo com ordem de juiz, pacientes da cardiopediatria não conseguem leitos
Famílias com filhos vítimas de doenças cardíacas têm o drama duplicado por causa da falta de leitos na rede pública do Distrito Federal. Muitas recorrem à Justiça, mas nem sempre as crianças conseguem sobreviver à espera das cirurgias

Por Correio Braziliense Foto: Reprodução/Divulgação/Breno Fortes/CB
Blog do Sombra


Elas nascem com malformações que impedem o crescimento saudável. Ao longo da vida, essas crianças deverão passar por várias cirurgias. As famílias têm pressa. Os pais buscam na Justiça acelerar o processo. Núbia, Louhanne e Solange são mães que recorreram aos tribunais para garantir o tratamento aos filhos. Contudo, somente a ordem do juiz não basta. Mesmo que o documento determine a operação imediata do bebê, a Secretaria de Saúde obedece aos critérios da medicina. Os casos mais graves, segundo análise feita com base na literatura médica, são prioridades. Um tormento para famílias e magistrados.
A celeuma faz parte de um cenário ainda mais delicado: a busca por vagas para cirurgias cardiopediátricas. Há apenas oito leitos disponíveis na rede pública, disponibilizados por meio de um convênio com o Instituto de Cardiologia do DF (ICDF) que custa aos cofres públicos R$ 78 milhões por ano. Os procedimentos são complexos. Exigem expertise do profissional, estrutura de ponta e condições de segurança do paciente, como peso e ausência de infecções. Pelo menos 78 crianças aguardam na fila de espera para serem atendidas. A média chega a dois meses.
 
João Miguel Serra, filho da manicure Núbia Cristina Moreira, 22 anos, não teve esse tempo. O recém-nascido ficou nos braços da mãe por pouco tempo. O menino tinha uma cardiopatia congênita, que compromete a liberação do sangue pelo órgão. Os médicos avaliaram a situação como difícil. João Miguel morreu em 14 de abril, durante a apuração do Correio. Ele esperou a cirurgia por 40 dias, mesmo com a luta judicial. Se a criança tivesse passado pelo procedimento, poderia viver sem dificuldades. A família está em Goiânia, distante 200km de Brasília, recuperando-se da perda.
 
A dona de casa Louhanne Cunha de Souza, 25 anos, também procurou a Justiça para solucionar o caso do filho. Miguel Cunha de Souza nasceu, em 1º de março, com uma anomalia grave no coração e morreu na última quinta-feira, também enquanto a reportagem era produzida. No terceiro dia de vida do garoto, a mãe apelou ao Judiciário. O menino foi internado na unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Regional de Sobradinho. Depois, foi transferido para o ICDF. “A cada tentativa, vinha o desespero”, conta. Miguel passou por quatro cirurgias. A última, na quarta-feira passada. “Nunca peguei o meu filho no colo, também não o amamentei.”
 
As duas mulheres não se conhecem. As histórias delas se cruzam no caminho entre o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Secretaria de Saúde. Em algum momento, o filho de uma tem prioridade em relação ao da outra. “Compareci ao Ministério Público em cinco oportunidades. Em todas, deram orientação para liberar a vaga imediatamente. Depois de um certo tempo, foi feita a cirurgia. O meu filho lutou bastante para sobreviver, foi um guerreiro. Nem os médicos conseguiram explicar como ele ficou vivo por esses 40 dias”, explica Núbia.
 
Especialidade
Longe de ser o período mais crítico do tratamento — na década de 1990, as crianças com malformações nascidas na capital federal estavam fadadas à morte e, em meados dos anos 2000, esses pacientes eram levados para serem atendidos em Goiânia —, a Secretaria de Saúde reconhece as falhas. A demanda não condiz com a oferta de tratamento. Quando excluídos os profissionais do ICDF, restam três médicos especialistas nesse tipo de cirurgia na rede pública. O ideal é que tivessem seis vagas a mais do que as disponibilizadas hoje. O setor degringolou com o fechamento da especialidade no Hospital de Base do DF (HBDF), em 2007.

O panorama só deve mudar com a inauguração do segundo bloco do Hospital da Criança, previsto para o primeiro semestre de 2018. Mesmo com a carga de atendimento assumida pelo Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), a conta não fecha. “Essa é a única alternativa para frear esse suplício”, diz a subsecretária de Atenção Integral à Saúde, Martha Gonçalves (leia Três perguntas para). A Associação de Apoio à Criança Cardiopata Pequenos Corações discorda. “Hoje, um leito criado já é muito, mas, no Hospital da Criança, vamos disputar com outras especialidades, o que não vai diminuir a demanda”, critica a coordenadora da entidade, Janaína Couto.
 
As mudanças são essenciais para a repetição de histórias como a de João Pedro. Ele nasceu no último dia 1ª e foi identificado também com anomalia relacionada às veias e às artérias. Com 12 dias de vida, a agente comunitária Solange Peixoto Rocha, 39 anos, solicitou à Justiça uma vaga imediata para o filho. Após três dias, houve a transferência para o Hospital das Forças Armadas (HFA). “Ele ainda não fez a cirurgia porque os médicos estão observando conforme o andamento das medicações. Estamos esperançosos com relação ao procedimento”, disse.
 
Reformulação
Nos últimos anos, o Executivo local tentou alternativas de melhoria no serviço, mas nenhuma vingou. O governo cogitou contratar mais quatro leitos do ICDF, tentou firmar uma parceria com o Hospital Universitário de Brasília (HUB) e reativar o serviço no Hospital de Base (HBDF), onde chegaram a ser realizadas 10 cirurgias por mês. Porém, seria necessário realizar concurso para contratar enfermeiros, o que dificultou a medida.
 
"Ele ainda não fez a cirurgia porque os médicos estão observando conforme o andamento
das medicações. Estamos esperançosos com relação ao procedimento”
Solange Peixoto Rocha, mãe de João Pedro
 
Três perguntas para Martha Gonçalves, subsecretária de Atenção Integral à Saúde
 
A judicialização atrapalha?

A regulação faz a análise dos múltiplos fatores. Quando ocorre uma judicialização, se o estado da criança é condizente e está dentro dos casos mais urgentes, a cirurgia é feita. O que acontece é que temos vários judicializados. Dessa forma, o critério é o de maior risco de morte. Na busca da judicialização, existe a ideia de que essa seria a forma de a saúde trabalhar direito. Na verdade, trabalhamos com dificuldades por não termos leitos suficientes hoje e profissionais da área. Portanto, do ponto de vista médico, a judicialização atrapalha.
 
A fila de espera complica o estado de saúde das crianças?

Temos algumas cirurgias que a criança precisa operar com 1 ano, mas ela sempre perde a vaga para os recém-nascidos. Aquilo que era um quadro tranquilo começa a ter repercussões. Se a criança chega aos 2 anos, é uma situação muito crítica. Isso está acontecendo hoje.
 
Há previsão para a situação mudar?

A gente espera que a proposta de fazer cirurgias cardíacas no Hospital da Criança de Brasília dê certo. Temos grandes chances. Já montamos tratativas com os cirurgiões e fazemos um encontro para saber o que é preciso para voltarmos a operar na rede pública. O que deve acontecer é que o HCB vai prestar assistência ao público que o Hospital de Base atendia. Essa é uma parcela menos grave do que os casos encaminhados para o ICDF — que não tem sequer espaço para expandir os seus serviços.
 
CARA A CARA
 
Janaína Couto, coordenadora da Associação de Apoio à Criança Cardiopata Pequenos Corações
“A questão das crianças cardiopatas não evolui. Só se opera paciente em estado crítico. Aqueles graves que nem podem aguardar em casa estão esperando na enfermaria do Hmib. Planos de ampliação não se concretizaram. A judicialização está cada vez pior. O descumprimento é rotineiro. A liminar não cria leito. É uma forma de pressionar o governo. O número de judicialização é tanto que o Judiciário está temeroso com isso. A intenção das famílias era que as contas do governo fossem bloqueadas de modo que o governo pagasse hospitais particulares. Os hospitais não fazem o orçamento por medo de calote do governo. Nos últimos dois anos, eu não soube de nenhuma criança ter sido levada para hospital particular.”
 
Celestino Chupel, coordenador do Núcleo de Saúde da Defensoria Pública
“Concordo com os médicos quando eles falam que a judicialização interfere no trabalho deles. A judicialização é uma interferência quando ocorre uma omissão. Temos um problema maior: imagina se o governo deixa de pagar, e o serviço é cortado? Imagina o caos que vai ficar. Dependemos de ações políticas para melhorar a situação da saúde no DF. A população está cada dia mais abandonada. Imagina o sofrimento de uma criança desesperada tentando tratamento. A demanda judicial está aumentando em todas as especialidades. É preciso reativar o serviço prestado no Hospital de Base. Temos profissionais de qualidade. Nada mais justo do que reativar a assistência lá. Não podemos depender apenas de uma fonte de serviço.”