Quinta, 10 de agosto de 2017
Por
Aldemario Araujo Castro*
“Boi de piranha é uma expressão popular
brasileira. Essa expressão designa uma situação onde um bem menor e de pouco
valor é sacrificado para que em troca outros bens mais valiosos não sofram
dano. Também pode referir ao sacrifício de um indivíduo na tentativa de livrar
outro indivíduo (ou organização) de alguma dificuldade. A expressão origina-se do
meio pecuarista, em referência a uma situação onde criadores de gado, ao
atravessar um rio infestado de piranhas, abateriam um dos touros, já velho e/ou
doente, atirando seu corpo, sangrando, ao rio, para atrair os peixes carnívoros
enquanto os peões cruzavam o rio com o restante do rebanho” (https://goo.gl/paJuyM).
Se observado com cuidado o noticiário
da grande imprensa (redes de televisão, rádios, jornais e suas projeções no
ambiente eletrônico) nos últimos meses, seriam três os mais “pesados” itens nas
despesas públicas: a) gastos com a Previdência Social (com um déficit
monstruoso e crescente); b) despesas com agentes públicos, notadamente
servidores públicos (remunerações, auxílios, benefícios e toda sorte de “privilégios”)
e c) a corrupção generalizada (que desvia os recursos que faltam para a
prestação adequada de serviços públicos nas áreas de educação, saúde, segurança
pública, cultura, lazer, etc).
Esses “elementos” funcionam, ao menos
parcialmente, como verdadeiros “bois de piranha”. Embora inegavelmente
significativos e carregando graves distorções (os dois primeiros itens, até
porque o terceiro é uma distorção em si), como adiante tratado, são utilizados
com enorme eficiência midiática para esconder grupos de despesas ou redutores
de receitas bem mais relevantes.
O debate em torno das contas da
Previdência Social (ou da Seguridade Social, como define a Constituição) não é
fácil. Análises realizadas pelo governo, por organizações da sociedade civil e
por especialistas apontam para conclusões completamente díspares. Apuram-se
déficits e superávits, dependendo dos dados e métodos de contabilização
utilizados. Para além do debate em torno dos números da Previdência Social,
existem dois elementos que dificultam enormemente a propaganda governamental no
sentido da falência das contas previdenciárias. A Desvinculação de Receitas da
União (DRU), efetivada por mais de vinte anos, subtraiu vultosos recursos da
Seguridade Social para outros fins. A pergunta, então, é inevitável: qual o sentido
de desviar recursos de uma área deficitária para outras áreas de atuação do
Poder Público?Os fundos previdenciários, previstos pela Emenda Constitucional
n. 20, de 1998, não foram constituídos pelos sucessivos governos. Esses
importantes instrumentos de gestão financeira das contas previdenciárias permitiriam,
com razoável precisão e facilidade, identificar a situação atual do sistema.
Destaque-se que o relatório resumido da execução orçamentária da União em 2016
indica: a) o pagamento de 481,1 bilhões de reais em benefícios previdenciários;
b) um déficit de 138 bilhões de reais no âmbito do regime geral de Previdência
Social e c) um déficit de 77 bilhões de reais no âmbito do regime próprio de
Previdência Social dos servidores públicos federais.
Os gastos com as remunerações dos
servidores públicos são consideráveis e integram um dos principais itens da
despesa pública (não o mais relevante). Em 2016, segundo o relatório resumido
da execução orçamentária da União, foram pagos 255,2 bilhões de reais em
relação a pessoal e encargos sociais. Uma importante ponderação precisa ser realizada.
“A cada 100 trabalhadores brasileiros, 12 são servidores públicos. A média é a
mesma verificada nos demais países da América Latina, de acordo com a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Já nos países
mais desenvolvidos, o percentual costuma ser quase o dobro — nesses locais, a
média é de 21 funcionários a cada 100 empregados. Em nações como Dinamarca e
Noruega, mais de um terço da população economicamente ativa está empregada no
serviço público” (https://goo.gl/0oIHkC).
Existem graves problemas a serem equacionados nessa área com impactos na
redução de despesas e atuação republicana da máquina estatal. Entre outros,
destacam-se os seguintes: a) necessidade de redução drástica (quase completa)
de cargos comissionados; b) supressão de benefícios indevidos (como o
auxílio-moradia no Judiciário e no Ministério Público, utilização de carros
oficiais e aviões da FAB, nos três Poderes, etc) e c) fixação dos padrões
remuneratórios das principais carreiras do serviço público (nos três Poderes e
nas Funções Essenciais à Justiça) de forma conjunta, com definição das relações
existentes entre elas e com sensibilidade social para os patamares fixados.
Reclamações crescentes são ouvidas
acerca do custo de manutenção do Legislativo e do Judiciário. O relatório
resumido da execução orçamentária da União em 2016 consigna gastos de: a) 7
bilhões de reais com a função Legislativa e b) 31,2 bilhões de reais com a
função Judiciária. Esses valores são pouquíssimos expressivos ante uma despesa global
da ordem de 1,8 trilhão de reais. As razões para racionalização de despesas do
âmbito do Legislativo e do Judiciário passam por: a) supressão de privilégios e
distorções; b) redução de estruturas excessivas e desnecessárias e c) adoção de
padrões republicanos de funcionamento da máquina estatal. A vertente da redução
de despesas públicas é evidentemente secundária nessas searas.
Segundo estudo realizado pela Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), o custo médio estimado da
corrupção no Brasil está localizado entre 1,38% a 2,3% do PIB (https://goo.gl/hFYxoj).
Tomando o PIB de 2016 como parâmetro, teríamos algo na casa de 86 a 143 bilhões
de reais em termos de corrupção. Essa projeção, importa destacar, envolve o numerário
efetivamente empregado em práticas ilegais, os recursos que as empresas deixam
de investir em atividades produtivas e a fuga de capitais. Entre outras medidas
estruturais para uma enorme redução das práticas de corrupção estão: a) a
supressão quase completa das cadeias de comando e obediência definidas pelas
nomeações políticas para cargos comissionados e b) o fortalecimento
significativo de medidas
preventivas, como aquelas efetivadas pelos controles internos e pela advocacia pública.
preventivas, como aquelas efetivadas pelos controles internos e pela advocacia pública.
As bilionárias despesas com o serviço
da dívida pública são praticamente “esquecidas” no debate realizado pela grande
imprensa, pelo governo e pelo parlamento. Nesse campo, registra-se o pagamento
de cerca de 511 bilhões de reais em juros (nominais) pela União em 2016 (8,1%
do PIB). Em 2015, o valor desembolsado foi de aproximadamente 446 bilhões de reais
(7,4% do PIB). Já em 2014, o montante gasto foi de cerca de 313 bilhões de
reais (5,4% do PIB). Os dados foram obtidos no site do Banco Central do Brasil (https://goo.gl/gBhrpQ).
Decididamente, a administração da dívida pública e suas adjacências financeiras
reclamam presença destacada na discussão em torno da despesa pública. Entre outras
medidas, voltadas para a redução do estoque e do serviço, deveriam ser
consideradas e submetidas a irrestrita transparência e controle social: a) uma
séria auditoria (exigência do art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias); b) a gestão de sua evolução, inclusive com a supressão de
mecanismos indevidos que viabilizam o seu contínuo crescimento; c) a fixação da
taxa de juros SELIC (somente a manutenção de uma brutal transferência de renda
da maioria da população para segmentos sociais extremamente minoritários
justifica o patamar atual); d) a gestão responsável das reservas monetárias
internacionais e e) a revisão da política de realização de operações
compromissadas e todas as formas de “ajuste de liquidez”.
A sonegação tributária, segundo vários
estudos e análises, como aquele que sustenta o sonegômetro do Sindicato
Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (SINPROFAZ) (https://goo.gl/wMWAI),
atinge o patamar de 500 bilhões de reais por ano. Uma atuação planejada,
organizada e enérgica nessa área certamente produziria um fluxo considerável de
recursos novos para o caixa do Poder Público.
As renúncias de receitas tributárias em
conjunto (realizadas e projetadas), entre os anos de 2010 e 2018, alcançarão o
patamar de 501,4 bilhões de reais. Somente no ano de 2015, as desonerações
observadas representaram aproximadamente 106,7 bilhões de reais. Esses dados constam
de análises efetivadas pela Receita Federal do Brasil. Os subsídios de várias naturezas concedidos
pelo governo constituem um capítulo especial em matéria de gastos públicos. A
maior parte desses benefícios não aparecem expressamente no orçamento discutido
e aprovado no Congresso Nacional. “Segundo o Ministério da Fazenda, de 2003 a
2016 os subsídios embutidos em operações de crédito e financeiras somaram quase
R$ 1 trilhão – 420 bilhões do total foram para o setor produtivo” (Folha de São
Paulo, dia 6 de agosto de 2017). Essa revelação rendeu a seguinte e inusitada
manifestação da jornalista Míriam Leitão: “Governo transfere mais recursos para
os ricos do que para os pobres./As evidências se acumulam. Novos levantamentos
esclarecem o grande problema do Brasil. Aqui, a transferência de dinheiro
público beneficia especialmente os mais ricos, as grandes empresas. Mesmo o
governo que falava em justiça social manteve a política e a ampliou quando
esteve no poder. A falta de transparência é outro problema./(...) Esse sempre
foi um problema no Brasil: o governo transfere mais recursos aos ricos do que
aos pobres, e em geral de forma pouco transparente. Isso é preciso entender.
Até o governo que chegou falando em reduzir a desigualdade social fez o mesmo
de sempre, e até em maior escala./É assim que o Brasil se torna um dos mais
desiguais do mundo. Dinheiro público, dinheiro do trabalhador é transferido
paras empresas. Às vezes na base de propina” (https://goo.gl/KNgTrF).
Esses quatro últimos elementos, entre
outros também relevantes, praticamente somem do debate travado no seio da
sociedade. Os “bois de piranha” representados pelas despesas previdenciárias,
remuneratórias e com esquemas de corrupção consomem praticamente todo o tempo
utilizado pela grande mídia e pelo governo. Essas outras questões, igualmente relevantes
ou mais importantes, literalmente desaparecem do radar do cidadão e seus
beneficiários agradecem efusivamente.
O equacionamento responsável da despesa
pública no Brasil reclama uma atenção cuidadosa para todos os principais itens
relacionados com os gastos públicos, sem esquecer ou desconsiderar nenhum
deles. Com certeza, existe muito trabalho e margem de redução de dispêndios, de
forma republicana, sensata e razoável, em todas as principais searas (sem
exceções) de efetivação do gasto público (direto ou na forma de redutores das
receitas).
*Aldemario Araujo Castro é Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de
Brasília
Brasília, 10 de agosto de 2017