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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Entre extremos de vinculação e discricionariedade, o SUS (des)caminha

Sexta, 18 de agosto de 2017
Nosso federalismo opera no limite da disfuncionalidade há décadas, mas, nas últimas semanas, o desvio das suas finalidades constitucionais superou todos os limites de razoabilidade.

por Élida Graziane Pinto*

Nosso federalismo opera no limite da disfuncionalidade há décadas, mas, nas últimas semanas, o desvio das suas finalidades constitucionais superou todos os limites de razoabilidade.

Nada justifica que emendas parlamentares ditas impositivas e repasses federativos vinculados a programas asseguradores de políticas públicas essenciais tenham sua execução orçamentária, no âmbito da União, condicionada à arbitrária pretensão do Poder Executivo de direcionar o sentido e mitigar o alcance da competência fiscalizatória do Poder Legislativo.

Em tempos de severo contingenciamento por força do regime de teto fiscal dado pela Emenda 95, a liberação repentina e desproporcionalmente alta de cerca de R$ 15 bilhões de programas e emendas em favor de estados e municípios soa, em vez da propalada austeridade, como fisiologismo fiscal.

Tamanha flexibilidade alocativa e igualmente assustadora facilidade com que foi feita tal liberação nos dão a impressão de que não era, de fato, necessário fixar o teto que congelará a partir de 2018, em valores reais, os pisos constitucionais em saúde e educação. Tal medida drástica, a bem da verdade, apenas conferiu ao governo federal, ao lado da majoração da DRU de 20 para 30% (por meio da Emenda 93/2016), uma expressiva ampliação do poder de gestão discricionária do orçamento público, ao arrepio das prioridades fixadas pelo texto permanente da Constituição brasileira.

Todavia, o manejo da discricionariedade de forma alheia às balizas legais, sem motivação e envolta em situações de desvio de finalidade nada mais é que mera arbitrariedade... Não há como reputar legítimo o fluxo da execução orçamentária federal que asfixia o cumprimento ordinário de programas sensíveis, diante dessa deliberada tentativa de captura de lealdades na relação entre Legislativo e Executivo.

A lesão perpetrada não é apenas ao princípio da separação de Poderes (que põe a perder a própria frágil justificação da existência das emendas impositivas), mas também agride frontalmente o pacto federativo e os direitos fundamentais. Ora, o que está em jogo é a consecução racional e estável das políticas públicas que asseguram tais direitos em uma tessitura de responsabilidades federativas, a qual pressupõe, por definição, repasses regulares e impessoais conforme o planejamento orçamentário e setorial que lhes orienta.

Todo o discurso da austeridade fiscal, bem como a busca pela qualidade dos gastos públicos, são rifados em meio a uma lógica de curto prazo que não se orienta pelo rol constitucional de prioridades alocativas do orçamento público. O resultado para o cidadão não é o alcance de maior eficiência na gestão dos escassos recursos governamentais, mas tão somente assistimos a uma manobra patrimonialista, a pretexto de discricionária.

Do ponto de vista federativo, historicamente o que temos visto é uma estratégia deliberada de omissões normativas e orçamentárias que põem em xeque, por exemplo, os pilares da educação básica obrigatória e do sistema único e universal de saúde. O padrão é de descentralização para os entes subnacionais de responsabilidades de gasto, sem correspondente regime de custeio pactuado de forma equitativa na federação.

De tanto nos deixarmos enredar pela sofreguidão do curto prazo que interessa apenas a interesses políticos de ocasião, há quase três décadas aguardamos o cumprimento dos deveres de rateio equitativo a que se referem o artigo 198, parágrafo 3º, II e o artigo 211, parágrafo 1º, ambos da Constituição de 1988. Até os presentes dias, não houve a regulamentação do padrão mínimo de qualidade da educação básica nacional, cuja dimensão operacional é referida ao custo aluno qualidade inicial (CAQi). Tampouco houve a definição e publicação anual, pelo Ministério da Saúde, dos montantes objetivos de repasse a serem feitos a cada estado, ao Distrito Federal e a cada município, conforme metodologia pactuada na comissão intergestores tripartite e aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, para custeio das ações e serviços públicos de saúde.

Mendicância política (“pires na mão”) é o padrão de relacionamento entre o governo federal e os entes subnacionais, intermediado por parlamentares que apresentam emendas desconectadas do planejamento setorial, por força da sua tendência ao atendimento de finalidades paroquiais. Não é de se estranhar que vivamos um agravamento sistêmico da má qualidade dos serviços públicos em tais políticas públicas sensíveis, vez que o planejamento setorial é dizimado pela discricionariedade de curto prazo e pelo subfinanciamento crônico trazido pela regressividade proporcional dos recursos federais no custeio federativo a que fazem jus.

O produto final para o cidadão é o de um Estado de Coisas Inconstitucional, haja vista a omissão estrutural do Estado quanto ao arranjo e ao funcionamento efetivo dessas nucleares políticas públicas. Reitero o sentimento de que se aplica à saúde e à educação públicas a síntese da medida cautelar deferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2015, quanto ao sistema prisional brasileiro:

“[Uma vez] presente [o] quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional[, o sistema educacional e o SUS] ser[em] caraterizado[s] como “estado de coisas inconstitucional”.

Em vez de impessoalidade, planejamento finalístico, previsibilidade e estabilidade nos repasses e, sobretudo, foco no atendimento às necessidades da população, o fisiologismo fiscal reproduz toda sorte de capturas e relações patrimoniais tendentes à má gestão e ao desvio dos recursos públicos. Daí é que decorre, como consequência funesta, o quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, cuja incidência é deveras majorada nos estados da federação já sujeitos ao regime de recuperação fiscal dado pela Lei Complementar 159, de 19 de maio deste ano.

Mais do que nunca, vemos como o paroquialismo orçamentário põe em risco a própria continuidade dos serviços públicos. Nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, é franca e notória a situação de desequilíbrio financeiro, cuja resolução ultrapassa os limites de um regime de recuperação fiscal, nos moldes da citada LC 159/2017. A descontinuidade dos serviços públicos essenciais no âmbito do SUS e da educação básica vivida pela população desses estados merece uma reflexão sistêmica em torno do alcance do instituto da intervenção a que se refere o artigo 34, VII, alínea “e” da nossa Constituição Cidadã.

Em vez de o governo federal se sentir livre para liberar verbas de forma arbitrária e fisiológica, precisamos retomar o sentido da responsabilidade solidária pela garantia dos direitos fundamentais à saúde e à educação.

Neste quadro atual de esfacelamento dos pilares constitucionais que sustentam a dignidade da pessoa humana, carecemos urgentemente ampliar a busca de soluções para manter a continuidade dos serviços públicos essenciais, haja vista a impossibilidade fática de o STF decretar intervenção federal no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul (mesmo que eles venham se recusando há anos ao cumprimento dos pisos constitucionais em saúde e educação).

Minha proposta, quiçá um convite ao diálogo prospectivo, é que, nos estados sujeitos ao regime de recuperação fiscal e que, portanto, já vivem sob um verdadeiro concurso de credores em suas combalidas contas públicas, a responsabilidade pela consecução imediata e pela continuidade dos serviços públicos (em sentido lato) de saúde e educação seja atribuída solidariamente aos municípios, com a majoração proporcional do dever de repasses suficientes pela União.

A conjugação dos esforços administrativos dos municípios diretamente com a ampliação da responsabilidade de custeio da União permitiria uma rota alternativa de intervenção atenta à primazia da dignidade da pessoa humana. Enquanto nossa realidade política se furta ao cumprimento do artigo 34 da Constituição, é imperativo refletir sobre a plausibilidade de uma intervenção de cunho operacional que vise à continuidade dos serviços de saúde e educação, na esteira da responsabilidade solidária que rege a garantia de tais políticas públicas, para que a população não fique refém dos recorrentes bloqueios e fragilidades profundas das contas governamentais cariocas, mineiras e gaúchas.

Ora, enquanto não enfrentamos a disfuncionalidade do nosso pacto federativo que perpetua o paroquialismo e o fisiologismo fiscal, talvez seja mesmo chegada a hora de pautarmos, acima de tudo, o conflito nuclear da descontinuidade dos serviços públicos em prol do cidadão que deles precisa. Intervir no ciclo das políticas públicas para reproduzir mais iniquidades é a praxe da nossa realidade governamental, mas e o contrário?

* Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonte: NCST