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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Índice de vulnerabilidade piora em quatro capitais; Recife tem maior queda

Segunda, 28 de agosto de 2017
Sumaia Villela – Correspondente da Agência Brasil
Em um barraco de plástico, papelão e madeirite nas palafitas de Santo Amaro, bairro do Recife, dez pessoas dormem em um quarto estreito com quatro colchões velhos e um chão forrado com cobertor. Na sala, um sofá onde mal se pode sentar por causa dos buracos, e móveis tortos por sucessivas inundações do canal que fica abaixo da moradia. O banheiro é separado da cozinha por um lençol, com um chuveiro precário e um tonel aberto que faz as vezes de caixa d'água.

A chefe da família é Edna Maria de Santana, de 55 anos, a Nega. Ela cria três dos seis filhos e mais cinco netos, sozinha, com R$ 498 do Bolsa Família e mais uns trocados que ganha com eventuais bicos, cada vez mais raros. Do pai dos adolescentes não recebem nem um centavo de pensão. O último trabalho de Nega foi em 2011. Desde então, não consegue mais emprego, a não ser um trabalho voluntário como cozinheira que realiza diariamente em um projeto para jovens realizado na comunidade, o que lhe rende uma cesta básica mensal.

“Agora com a idade que eu tenho eles não dão prioridade. E eu sou analfabeta, aí não consigo. Agora estou fazendo um curso de costureira para trabalhar em uma cooperativa”, conta Nega, que sempre trabalhou com serviços gerais. Em 2012, ela saiu de uma casa de alvenaria na região onde cresceu e foi viver no barraco com o cheiro constante do esgoto, além da presença frequente de escorpiões e ratos. “Não tive mais condição de pagar aluguel. Teve a invasão aqui e eu vim. Os vizinhos arrumaram tábua, telha e eu fiz o barraco. Foi a única solução que eu achei”.

Na capital de Pernambuco há muitas Negas. Sua miséria virou número, é parte da estatística que dá ao Grande Recife o título de região metropolitana que mais piorou entre os anos de 2011 e 2015. De dez locais pesquisados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para a construção do novo Atlas da Vulnerabilidade Social, quatro apresentaram aumento do índice. A capital pernambucana e seu entorno dispararam e estavam 16,3% mais vulneráveis em 2015 do que em 2011. A piora no índice foi bem maior do que out ras capitais que também tiveram índices de vulnerabilidade pior em 2015, como São Paulo (2,4%), Fortaleza (3,9%) e Porto Alegre (0,4%).

O índice demonstra uma reversão na tendência observada na primeira série histórica do Atlas. Entre 2000 e 2010, o Grande Recife reduziu a vulnerabilidade social em 23,9%, época em que todas as outras regiões metropolitanas também alcançaram reduções superiores a 22%.

Nesta nova série histórica, segundo a análise do Ipea, todas as áreas pesquisadas apresentaram oscilação de índice a cada ano, diminuindo ou aumentando, “sem um padrão aparente”, conforme citado no estudo divulgado nesta semana. Se observado o índice nacional, no entanto, ainda existe uma tendência de redução da vulnerabilidade social, embora em menor proporção que na primeira série. A curva muda em 2014, quando houve aumento do Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) de 2%.

Para medir a vulnerabilidade social, o Ipea analisa características em três áreas: infraestrutura urbana, renda e trabalho e capital humano. De acordo com a coordenadora técnica do Atlas, Bárbara Oliveira Marguti, infraestrutura e renda e trabalho foram os piores indicadores da Região Metropolitana do Recife.

Desemprego e trabalho infantil
Na área de renda e trabalho houve 8% de piora no índice entre 2011 e 2015 para a Região Metropolitana do Recife. A taxa de desocupação de pessoas de 18 anos ou mais ficou 26% pior. O maior salto foi entre 2014 e 2015, de 45%. Em 2014, a taxa era de 9,96. Já em 2015, chegou 14,5 – maior até mesmo que a taxa de 2010 (13,49).

Bárbara Marguti destaca também o aumento da taxa de emprego infantil (10 a 14 anos). No período analisado pelo Ipea, a taxa quase triplicou: 1,06 em 2011 e 3,17 em 2015. Também existe um índice para jovens de 15 a 24 anos que não estudam, não trabalham e moram em um lar com renda por pessoa de até meio salário mínimo (valor de 2010: R$ 510). O percentual diminuiu sucessivamente de 2011 a 2014, quando atingiu 11,48%. No ano seguinte, subiu para 14,14%.

Erik Santana Gomes, de 17 anos, filho da dona Nega, é o exemplo desse índice. Passou dois anos como jovem aprendiz no Banco do Brasil, uma exceção entre os barracos de palafita onde vive. Ganhou a oportunidade quando, aos 15 anos, lavava carros e uma mulher que passou na rua o orientou a fazer a prova de seleção. Passado o tempo máximo de contrato, Erik foi desligado e hoje não trabalha.

Em 2016 ele abandonou o ensino médio, depois de mudar de escola porque a unidade Almirante Tamandaré, onde estudava, foi fechada pelo governo estadual. Hoje, faz planos para retomar os estudos e tenta conseguir um novo trabalho. Sem escolaridade, porém, não consegue ser selecionado. “Qualquer trabalho que vier eu faço, não tenho um sonho de profissão. Meu sonho é tirar minha mãe desse lugar, colocar ela em uma casa de alvenaria, junto com meus irmãos”, diz.

Mais tempo no trânsito
Na parte de infraestrutura, um dos fatores que mais contribuiu para o aumento da vulnerabilidade social na Região Metropolitana do Recife foi o percentaul de pessoas que moram em domicílios com renda por pessoa de até meio salário mínimo (com base no valor vigente em 2010) e que gastam mais de uma hora para chegar até o trabalho. Esse índice piorou 45%.

Mais pessoas se somam, assim, à rotina de Charles Alexandre da Silva, de 39 anos. O barman trabalha no Recife e mora no Paulista, município ao norte da região metropolitana. Ele passa no mínimo uma hora e meia para fazer o desloacamento de casa ao trabalho, e precisa pegar dois ônibus. Trabalhar longe de casa não é uma escolha, mas uma necessidade. “Eu trabalho em restaurante, e no Paulista essa área é muito fraca”, conta. Segundo ele, muitos vivem a mesma situação: “a maioria aqui da cidade é assim, todo mundo trabalha no Recife”.

Em 2015, uma pesquisa da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) já apontava para o problema no Grande Recife, classificado em quinto lugar na lista dos maiores tempos de deslocamento diários entre casa, trabalho e de volta para casa. A média registrada em 2012 era de duas horas nesse trajeto, valor 6% maior que no ano anterior.

Futuro incerto
Se em relação às capitais e regiões metropolitanas é difícil definir um padrão de desempenho, segundo a coordenadora técnica do Atlas, quando se observa o índice nacional é possível identificar uma “estagnação”. “A tendência de queda da vulnerabilidade no país como um todo parou. A gente identifica que esse é um momento de inflexão. Como se a gente tivesse parado, pensando para onde isso vai a partir de agora. Vai subir ou vai descer? A gente vinha numa curva descendente, a gente está num ponto de estagnação”, afirma Bárbara.

O presente guarda histórias como a de João Vitor Tavares da Cunha, de 26 anos. Entre 2011 e 2015, ele vivia a melhor fase de sua vida. Trabalhou fixo como auxiliar de serviços gerais até conquistar uma vaga em uma gráfica. Lá, aprendeu aos poucos funções mais complexas. Trabalhava com carteira assinada, ganhava mais de um salário mínimo e fazia planos para comprar um imóvel pelo Minha Casa Minha Vida. Em 2017, no entanto, João passou a engrossar as estatísticas de desemprego no país: perdeu o posto de trabalho em uma demissão em massa na gráfica onde estava havia 5 anos.

Recém-separado, João agora divide uma casa de um quarto com o irmão, que tem carteira assinada. Mora na Rua da Bola, em uma região de baixa renda do bairro de Santo Amaro, no Recife. Com uma filha de um ano para sustentar, ele corre contra o tempo em busca de outro emprego, antes que a última parcela do seguro desemprego acabe. Já tentou outras gráficas e até mesmo funções de serviços gerais e gari. Ainda não teve retorno positivo, a não ser a realização de bicos.

“Já estou agoniado, sem saber o que fazer”, diz. “Além da minha casa que eu tenho que pagar, das minhas coisas, eu tenho minha filha. Ela não quer saber se eu estou empregado, ela tem que ser alimentada, se vestir. A família da minha ex-esposa também não tem condições de dar o que ela precisa. Eu que sou o pai e tenho a responsabilidade de correr atrás dessas coisas também”, conta frustrado.