Segunda, 7 de agosto de 2017
Do El País Brasil
Os motivos para salvar ou condenar o presidente Michel Temer quase nunca mencionavam se ele era inocente ou culpado
Juan Arias
Periodista y escritor
Ao desligar a televisão, na quarta-feira passada, a tarde do processo
contra Temer no Congresso brasileiro, tive a sensação de que as
obras-primas da literatura e da arte mundial, como as dos escritores
Kafka e Gabriel García Márquez e do cineasta Luis Buñuel, amigo de
Lorca, não são mais surreais que o vivido ali.
Ninguém sabia se se tratava de uma festa ou de um funeral.
Alguns se debulhavam, gritando ao pronunciar seu “não” para acabar com
Temer, e outros pareciam estar nas pontas dos pés, sussurrando um “sim”
para salvá-lo, como se estivessem no quarto de um doente em coma ou tivessem vergonha de seu voto.
Ninguém entendia nada, como no Processo de Kafka, porque era
difícil saber se se tratava de salvar um inocente ou de aniquilar um
criminoso, porque todos dizia o mesmo para bendizê-lo ou maldizê-lo.
Uns queriam que Temer não fosse investigado “pelo bem do Brasil”,
e outros, também por esse mesmo ânimo, preferiam que fosse. Os que
queriam salvá-lo pronunciavam um “sim” seco, quase com medo de ser
descobertos, e os que queriam tirá-lo bradavam como para reforçar com
seus gritos uma derrota anunciada.
Os motivos para salvar ou condenar o presidente quase nunca mencionavam se ele era inocente ou culpado. Eram a economia, as reformas, a estabilidade do país ou a maldade da direita, que odeia os pobres. Temer era como um fantasma que ninguém sabia para que servia.
A noite kafkiana parecia também uma reencarnação do filme de
Buñuel O Discreto Charme da Burguesia, no qual, dentro de uma sala em
que se desenrola toda a trama, todos se odeiam enquanto fingem ser
amigos, em que todos vão a lugar nenhum, em que se escondem atrás de
religião ou da ideologia para que não apareçam seus lados podres.
Naquela noite de Temer, o surrealismo atingiu seu ápice
quando um deputado sobre o qual pesam graves suspeitas de crimes cravou
um “voto ‘sim’ contra a corrupção”. Disse-o com tanta convicção que
quase se sufocou.
Ganha o prêmio milionário quem for capaz, depois daquela
tarde de realismo mágico à García Márquez, de entender o que se passa
hoje na política brasileira, da qual a tarde do Congresso foi símbolo e
emblema.
Acho que o escritor colombiano poderia reescrever Cem Anos
de Solidão, revisado à brasileira, porque, queira ou não, o Brasil é
parte do continente do realismo mágico, no qual é difícil distinguir o
que é real ou imaginário.
Caso se contasse, por exemplo, no exterior, que na tarde do
processo kafkiano de Temer, os discípulos do Partido dos Trabalhadores
(PT), que despojavam a gritos o presidente corrupto, provavelmente o
preferem de pé até 2018, para que chegue ao fim exangue e exausto e
possa ser usado eleitoralmente, ninguém acreditaria. Mas por que o PT,
mestre em mover as ruas, não levou a Brasília nenhum dos seus para gritar “Fora Temer”? E o silêncio de Lula?
Por que parecem se tornar amigos de repente, mesmo que seja
nas sombras dos bastidores, governo e oposição, como no processo contra
Cristo, toda a velha guarda dos principais partidos, junto com o poder
econômico e com os outros poderes fáticos? Parecem unidos num abraço
para evitar que em 2018 possa surgir alguma novidade nas urnas que
quebre o poder cristalizado da velha política desgastada e acima de tudo
que possa não comungar desta anistia geral aos corruptos e não esteja
disposta a terminar a Lava Jato.
Confesso que estamos diante de um novo surrealismo do
processo kafkiano, no qual não se sabe onde está o culpado ou o inocente
nem o que significam as palavras esquerda e direita, que mais parecem
uma noz oca.
E se há algo de absurdo e de labiríntico, em que a política
se envolve em si mesmo e nos obriga a apelar à pureza da arte e da
literatura para desentranhá-la como um novelo embaraçado, é o divórcio entre a rua e o palácio, entre as pessoas e os políticos, como ficou evidenciado na longa, sombria e surrealista tarde do kafkiano processo contra Temer.