Sexta, 22 de setembro de 2017
Do Blog Náufrago da Utopia
Celso Lungaretti
Um excelente livro de Dino Buzzati, que foi levado às telas (*)
magnificamente por Valerio Zurlini em 1976, ajuda bem mais a
entendermos a mentalidade militar do que a montoeira de textos
alarmistas em circulação nas redes sociais desde que um general sem
tropas desembestou a falar inconveniências golpistas para os maçons.
Trata-se de O deserto dos tártaros.
Começa
com um jovem oficial indo iniciar sua carreira numa fortaleza perdida
no meio do nada, cuja única utilidade é servir como primeira linha de
defesa contra uma invasão dos tártaros que ninguém sabe ao certo se um
dia será tentada ou não.
Mostra
aqueles infelizes consumindo suas vidas numa espera sem fim, sonhando
com a aparição dos inimigos que daria sentido ao seu sacrifício e
procurando preencher o tempo da melhor forma possível.
Quando
chega o momento de trocarem posto tão sem atrativos por alguma unidade
melhor, quase todos preferem ficar, sempre na esperança de que os
tártaros e o fragor das batalhas estejam próximos. Fazem planos, tomam
medidas na suposição de que um dia venham a se justificar e esperam.
Esperam. Esperam.
Os
altos escalões privam cada vez mais a fortaleza de recursos e homens,
mas não a ousam desativar por completo. A jornada dos efetivos
remanescentes se torna cada vez mais penosa, cada um cumprindo as
tarefas de dois ou três. Ainda assim, esperam.
Até
que, quando os tártaros finalmente surgem, o outrora jovem oficial está
sendo conduzido numa ambulância de volta para a civilização, doente e
envelhecido. Desperdiçara sua vida adulta inteira e a miragem que
perseguia, dissipou-se no momento em que estava prestes a alcançá-la.
Num
país que não trava guerras desde que seus pracinhas foram servir de
bucha de canhão na luta contra o nazifascismo nos campos de batalha da
Itália, o que faz o Alto Comando do Exército? Uma infinidade de planos
de contingência para invasões de tártaros, tipo como reagir a uma incursão paraguaia ou o que fazer se a Venezuela se esfarelar.
No
meio de tudo isso, certamente terão estudado linhas de ação para o caso
de ocorrer um vazio de poder em nosso país, o que não passaria de outra
invasão de tártaros a lhes ocupar o tempo ocioso. Nada indica que haja uma verdadeira articulação golpista em curso,
como havia no início dos anos 60, quando o golpe foi tentado já na
renúncia do Jânio Quadros (25 de agosto de 1961), fracassou mas deixou
lições valiosas para os conspiradores melhorarem seu desempenho na
chance seguinte, o 1º de abril de 1964 (a pior mentira já socada goela
dos brasileiros adentro!).
A
seis meses de trocar a farda pelo pijama, relegado a uma atividade
burocrática para não contaminar a tropa com seus delírios, o general
Antonio Hamilton Mourão recebeu finalmente alguma atenção, graças a um
convite da Maçonaria com todas as característica de provocação. E,
claro, desandou a falar o que deveria estar entalado na sua garganta há
quase dois anos.
O
sensato seria os civis não o levarmos a sério, pois na caserna também
ele está longe de representar o sentimento das fileiras, tanto que sua
punição no final de 2015 suscitou um pouco de blablablá e nenhuma
reação efetiva.
Mas, os que querem exatamente criar um clima golpista, estão investindo na tempestade em copo d'água.
Outros,
paradoxalmente, temem uma quartelada, querem alertar contra ela,
colocam suas apreensões em artigos... mas acabam cumprindo o papel de
inocentes úteis, ao darem quilometragem a uma pseudo-crise que tem, isto
sim, de ser esvaziada. Já se falou nela muito mais do que o
justificável.
As
pressões dos paisanos por punição são praticamente a única
possibilidade de o general Antonio Hamilton Mourão tornar-se influente
na caserna, pois a corporação tende sempre a ser solidária com os seus
que estão sob fogo externo.
Deixarmos
as coisas como o comandante do Exército decidiu, com a anuência do
ministro da Defesa, fará com que o factoide seja rapidamente superado,
sem maiores consequências.
A
insistência em superdimensionar-se a incontinência do veterano
ultradireitista pode gerar uma crise militar onde até agora não havia
nenhuma.
As
coisas já andam suficientemente ruins, por que piorá-las em função de
fantasmas tão remotos quanto os tártaros do livro do Buzzati?
* para quem quiser conhecer o filme do Buzzati, recomendo este link.