Instituto Humanitas Unisinos
O filósofo da USP duvida da realização de eleições em 2018 e afirma que o campo progressista ainda não sabe o que oferecer aos brasileiros.
A entrevista é de Sergio Lirio, publicada por Carta Capital, 03-09-2019.
A política caminhou em direção aos extremos. O eixo de mobilização foi para as pontas
Após incursões em sua área de formação, a Filosofia, Vladimir Safatle volta a se concentrar no debate político contemporâneo. O título de seu mais recente livro, Só mais um esforço, a ser lançado no início de setembro, é uma referência a uma famosa frase do Marquês de Sade de estímulo aos concidadãos desanimados com os rumos da Revolução Francesa.
Há, portanto, no âmago da análise, uma mensagem de esperança em relação
ao futuro do Brasil, erguida sobre camadas de críticas agudas aos rumos
da esquerda, ao chamado lulismo e à eterna conciliação das elites.
Convidado do “Direto da Redação”, programa de entrevistas do site de CartaCapital transmitido pelo Facebook e pelo YouTube, o professor da USP explicou as teses do livro e respondeu a perguntas dos “sócios” e “sócias” da revista. Safatle
duvida da realização de eleições em 2018 (“quem deu o golpe não vai
correr o risco de perder o poder”) e critica o campo progressista por
apostar todas as fichas na incerta disputa eleitoral do próximo ano.
“Frente de esquerda para quê?”, indaga a certa altura. Segundo ele,
antes de pensar em uma ampla união eleitoral, as lideranças
progressistas e os movimentos sociais precisam descobrir o que tem a
dizer de novo aos eleitores.
Eis a entrevista.
Seu novo livro se chama “Só mais um esforço”. Por que escolheu esse título?
É uma referência a uma famosa frase do Marquês de Sade. Quando ele lançou “Filosofia da Alcova”,
havia no interior do livro um panfleto que afirmava: “Franceses, só
mais um esforço se quiserem ser republicanos”. Foi uma maneira de dizer
aos leitores que, para estarem à altura dos processos de transformação
em curso, no caso a Revolução Francesa, seria
necessário um pouco mais de fôlego e compreensão. Muitas vezes esses
momentos podem parecer complicados, mas tem potencialidades a serem
exploradas. Achei interessante e válido de se lembrar neste nosso
momento.
Por quê?
Estamos sob o domínio de uma ‘cleptocracia’
Entendo a leitura melancólica
atual, devido ao tipo de catástrofe que vivemos, ao fato de o Estado
brasileiro ter rompido todos os vínculos com a democracia formal e de
estarmos sob o domínio de uma cleptocracia. Pode
estimular a sensação de beco sem saída. Insisto, porém, que essa
percepção não deve ser tomada como uma verdade absoluta. Há
potencialidades a serem exploradas. Existem condições para alcançarmos
um outro momento da nossa história. Mas, para tanto, é preciso entender o
que de fato aconteceu. Falta, a meu ver, um esforço da intelectualidade
para interpretar esse momento.
No livro, o senhor se esforça para localizar o Brasil nos
fenômenos mundiais. Ou seja, o que acontece aqui não seria um episódio
isolado.
Pretendi me contrapor a essa visão de que o Brasil é
a maior ilha do mundo, como se todos os processos sociais e históricos
fossem endógenos, não houvesse uma articulação do País com o que se
passa no resto do planeta. Acho bem provável que tenha se desenrolado
aqui o último capítulo da história da esquerda do século XX.
De que maneira?
Limitar as discussões às eleições do próximo ano paralisou o campo progressista
A esquerda durante o século XX, em especial após a Segunda Guerra,
tentou operar no interior dos sistemas de acordo da democracia liberal
como uma potência de transformação paulatina, a começar pela construção
do Estado de bem-estar social. De uma certa maneira, a esquerda da América Latina também atua nesses limites. No momento em que a socialdemocracia entra em colapso na Europa, seu berço, ela ganha espaço na América Latina. No Brasil, o PT
não nasceu como um partido socialdemocrata, mas assim se consolidou com
o passar do tempo e durante sua experiência no governo. Portanto, o
fracasso recente no País não é só nosso. Representa o fracasso de um
modelo da esquerda mundial, que havia se tornado hegemônico no Ocidente a
partir da segunda metade do século XX. Como sempre, a América Latina
entra de forma retardatária nesse processo, por conta de seus enormes
déficits de democracia e participação popular.
Há condições de se criar uma frente de esquerda para disputar as próximas eleições?
Há potencialidades a serem exploradas. Existem
condições para alcançarmos um outro momento da nossa história. Mas,
para tanto, é preciso entender o que de fato aconteceu. Falta um esforço
da intelectualidade para interpretar esse momento.
A consolidação das estruturas populares exige uma mudança no jogo
político. A esquerda não pode imaginar que irá governar de fato em um
horizonte no qual as forças hegemônicas se mobilizam para imobilizá-la.
Por que a Nova República foi construída sobre o presidencialismo de coalizão? Por ter sido montada para impedir a esquerda de governar.
Se um presidente progressista for eleito em 2018, o que ele precisaria fazer de diferente?
Não acredito em eleições em 2018 (risos). E há várias maneiras de se bloquear um processo minimamente democrático. Temos o exemplo da Bielorrússia,
uma disputa na qual todos os “indesejáveis” são excluídos do jogo
eleitoral. Acredito que esta será a primeira estratégia adotada por quem
está no poder. Se não der certo, existe a possibilidade de modificar
completamente o sistema eleitoral. Em resumo: implementar o parlamentarismo. No caso brasileiro, não existe pior saída. Os eleitores já recusaram o parlamentarismo duas vezes em plebiscito. O Parlamento do Brasil, todo mundo sabe, não é o da Alemanha.
É uma caixa de ressonância dos piores interesses oligárquicos. Criaram
um sistema casuísta para vencer em qualquer circunstância. Se ainda
assim não vingar, não descarto uma guinada ainda mais autoritária.
Limitar as discussões às eleições do próximo ano paralisou o campo
progressista.
Como?
Volto a uma pergunta anterior. Fala-se em uma frente de esquerda,
mas para quê? Não está claro. O que se quer? O objetivo é retomar o que
foi feito antes, com um ajuste aqui e outro ali? Ou seria fazer
diferente? Mas o quê? Seria bom discutir outros questões mais
elementares. O que a esquerda tem hoje a oferecer ao
Brasil, a não ser resistências pontuais: dizer não a esta ou àquela
reforma? Sem respostas a estes pontos, sua força de mobilização diminui
substancialmente. Ninguém vai às ruas apenas para dizer não. Você
mobiliza quando é capaz de levar os cidadãos a pensar em uma
possibilidade que ainda não se configurou, mas é viável.
No livro, o senhor reforça suas críticas ao chamado lulismo. Pode explicar sua interpretação do fenômeno?
Lulismo - Faltou uma política de combate à desigualdade. Ocorreu, na verdade, uma capitalização dos pobres
O lulismo consolidou pela primeira vez um sistema
mínimo de seguridade social no País e reconstituiu o capitalismo de
Estado. Por um certo tempo, ocorreu um processo de inclusão social
considerável, 42 milhões de brasileiros experimentaram essa ascensão. O
problema é que havia uma data de validade. Foram vários os entraves.
Faltou uma política de combate à desigualdade. Ocorreu,
na verdade, uma capitalização dos pobres. Este mecanismo não reduz as
diferenças e causa um paradoxo: os mais ricos continuam a ganhar muito e
acabam por puxar os preços da economia para cima, encarecendo a vida
nas cidades, principalmente nas metrópoles. Isso não aconteceu apenas no
Brasil. Luanda, em Angola, padeceu do mesmo efeito. Não à toa, entre 2008 e 2014, o valor dos imóveis em São Paulo
triplicou. A consequência é que o ganho dos mais pobres é corroído com o
passar o tempo. Chega um momento no qual quem está no poder é obrigado a
gerir a paralisia.
Foi o que aconteceu com Dilma Rousseff, certo?
Sim. O lulismo tinha uma trava. Ele reproduziu em boa medida o populismo getulista, fundado na ideia de que governar é administrar coalizões. Não demonizo o populismo,
apenas o analiso aqui. Os liberais valem-se da estratégia de trata-lo
não como um conceito descritivo, mas como injúria. Associam o termo à
irracionalidade. Não é o meu caso.
Não existe 2018, não vejo a mínima
possibilidade de quem deu o golpe abrir mão do poder tão facilmente.
Eles não vão embora, não vão aceitar perder. O único modo de combater é
consolidar um processo de mobilização
Dá para imaginar um neolulismo? O senhor acredita nessa possibilidade?
Mais importante é saber se o Lula acredita. Suas
participações políticas recentes não estimulam a aposta nessa hipótese.
Se querem fazer o mesmo de novo, o melhor seria não insistir nesse
debate sobre uma frente de esquerda. Isso demonstra a incapacidade de reorganização do campo progressista sob outras bases. É verdade que o Lula
lidera todas as pesquisas. Impressiona-me, porém, que muitos estejam
preocupados apenas com o horizonte eleitoral e não gastem energia para
criar uma nova hegemonia a partir da força das suas ideias. Insisto: não
existe 2018, não vejo a mínima possibilidade de quem
deu o golpe abrir mão do poder tão facilmente. Eles não vão embora, não
vão aceitar perder. O único modo de combater é consolidar um processo de
mobilização.
Quanto o momento atual é fruto das manifestações de 2013?
Considero 2013 a maior oportunidade perdida pela esquerda. O embate
ideológico, que estava recalcado, floresceu. O campo progressista
deveria estar à altura do que as ruas pediam naquele momento.
E o que as ruas pediam?
Acho bem provável que tenha se desenrolado no Brasil o último capítulo da história da esquerda do século XX
A começar, uma transformação da experiência política. Ficou evidente a
crise da representação. E não só dos partidos. A mídia, os sindicatos,
as organizações foram colocados em xeque. E depois, a insatisfação
diante da interrupção do processo de ascensão social. Basta lembrar do
slogan: “Quero escola padrão Fifa”.
Muitos daqueles que experimentaram essa ascensão tiraram os filhos da
escola pública e transferiram para uma instituição privada. Durante os
anos do PT, 24 milhões de alunos deixaram o sistema público. Também abriram mão do SUS e adquiriram planos de saúde. Por fim, compraram carros.
Junte os três gastos. Os ganhos de renda acabaram corroídos por eles. O
nível de frustração foi elevadíssimo. Em 2010, 2011, o mundo inteiro
celebrava o Brasil. Seríamos a quinta maior economia do planeta,
projetava-se. A Copa do Mundo prometia repaginar as nossas metrópoles. E, de repente, começou-se a perceber que nada acontecia mais.
É a pior frustração.
O conceito vem do Alexis de Tocqueville. As
revoluções, dizia, não são feitas pelos mais pobres, mas por quem está
em ascensão e se vê frustrado pela interrupção desse processo. Por
aqueles que percebem não haver mais futuro. O Brasil de 2013
assistiu à explosão desse tipo de frustração. Era uma grande
oportunidade para o campo progressista abraçar essa pauta e romper com
certas alianças que sempre a impediram de transformar a realidade. Mas
todas as agremiações de esquerda, todas, sem exceção, demonstraram um
arcaísmo inacreditável naquele momento.
A Nova República chegou ao fim?
2013. Todas as agremiações de esquerda, todas, sem exceção, demonstraram um arcaísmo inacreditável naquele momento
O PT foi o último fiador do modelo de conciliação da Nova República.
Acreditou na perenidade de um sistema de resolução de conflitos
políticos minimamente democrático. Que não haveria mais golpes de
Estado. Que existia uma ala racional no PSDB. Uma visão, nota-se agora, completamente falha. Não há mais conciliação possível. Essa promessa da Nova República não pode mais se realizar. É preciso saber acionar os extremos. O conflito de classe no Brasil nunca foi assumido enquanto tal. Foram 14 anos de um governo que aplicou o programa clássico de esquerda, socialdemocrata,
e nem assim foi tolerado. Não se conseguiu fazer nenhuma discussão
séria sobre uma reforma tributária de verdade, para criar um sistema de
impostos progressivo, que não onerasse tanto os trabalhadores e os mais
pobres. Para não citar outros exemplos.
A disputa política nos próximos tempos, tanto no Brasil quanto no mundo, se dará entre os extremos?
O mundo tem confirmado essa hipótese de maneira incontestável. A
política caminhou em direção aos extremos. O eixo de mobilização foi
para as pontas. Alguém pode dizer que a França conseguiu reconstituir o centro com a eleição do Emmanuel Macron, mas foi graças ao extremo, a Marine Le Pen,
que se projetava como uma sombra. O problema está no fato de a
extrema-direita, atualmente, ter se tornado esse eixo mobilizador. A
esquerda ainda não conseguiu se reorganizar.
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