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(Millôr Fernandes)

domingo, 17 de setembro de 2017

Há 46 anos o comandante Carlos Lamarca era covardemente executado

Domingo, 17 de setembro de 2017
Do blogue Náufrago da Utopia
Por Celso Lungaretti


O comandante Carlos Lamarca – que nem mesmo presidentes da República tidos como esquerdistas ousaram propor  que fosse incluído no Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria, embora haja sido um dos três maiores, ao lado de Carlos Marighella e do único reconhecido, Tiradentes – estava debilitado e indefeso quando a repressão ditatorial o abateu no sertão baiano, em 17 de setembro de 1971, numa típica  vendetta  de gangstêres.

O que há, ainda, para se dizer sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por história de vida e pela forma como encontrou a morte?

Foi, acima de tudo, um homem que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço altíssimo pela opção que fez.

Teve enormes acertos e também cometeu graves erros(*), praticamente inevitáveis numa luta travada com tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas.

Mas, nunca impôs a ninguém sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os companheiros – via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável ao de quem acaba de perder um ente querido.

Dos seus melhores momentos, houve dois que me sensibilizaram particularmente.

Logo depois do Congresso de Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de quedas em cascata, o caixa estava a zero e a rede de militantes, clandestinos em sua maioria, carecia desesperadamente de dinheiro para manter as respectivas fachadas – qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis.

Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas.
Então, quando se planejou a expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o pessoal experiente que sobrara não bastava para levá-la a cabo.

Eu e os sete companheiros secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos escalados – na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando,  que me designou para criar e coordenar um setor de Inteligência, então fiquei de fora.

Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu batismo de fogo. Os outros quatro comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a tropa nele falava mais alto.
Depois de muita discussão, chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências, mas ficaria observando à distância, pronto para intervir caso houvesse necessidade.
Houve: um guarda de trânsito, alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.

Lamarca, que tomava café num bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano longo de competição, mirar e desferir um tiro dificílimo – tão prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um atirador de elite seria capaz de acertar. [Foi, disse-nos depois, a primeira vez em que atirou num ser humano. Temendo não haver acertado, fez um segundo disparo. Pelos jornais ficamos sabendo que ambos atingiram o policial em cheio.] 

Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o inimigo público nº 1 – e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à exaustão, obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia plástica.

Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.

Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante – afinal, as dantescas circunstâncias reais da morte do Bacuri ficaram conhecidas na Organização ("Além de hematomas, escoriações, cortes profundos e queimaduras por toda a parte, apresentava dentes arrancados, orelhas decepadas e os olhos vazados", segundo a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos). 

Mesmo assim Lamarca não arredou pé, usando sua autoridade até o limite para evitar que a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que ele acabou deixando a VPR.

E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros – quanto à sua salvação.

Pressionaram-no muito para que saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo virara um matadouro.

Conhecendo-o como conheci, tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta milagrosa. Em termos militares, suas análises eram das mais realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.
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O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a ideia de fuga com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.

Doeu – e como! – vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.

Mas, ele havia conquistado plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir apenas como homem se preferia viver ou morrer.
Merece, como poucos, nosso respeito e admiração. (Celso Lungaretti)


Assista na íntegra a cinebiografia dirigida por Sérgio Rezende, com Paulo Betti no papel do comandante Carlos Lamarca. .
Evidentemente, jamais concordarei com sua opção de atirar-me publicamente a culpa pela delação da área de treinamento guerrilheiro em Registro, embora ele soubesse muito bem que a responsabilidade era de pessoa que ocupava um degrau superior ao meu na hierarquia da VPR. Num primeiro momento fiquei transtornado e desnorteado, pois sentia como se a minha vida estivesse terminando aos 19 anos.

Acabei, contudo, dando a volta por cima 34 anos depois, quando minha inocência ficou provada e o nome de quem realmente delatou se tornou um segredo de Polichinelo nas fileiras da esquerda. Aí passei a encarar o episódio com menos emoção e mais compreensão; afinal, naquele ano de derrocada da luta armada (1970), seria mesmo desastroso para o prestígio da VPR se a verdade se tornasse conhecida.

Quando alguém com tamanha importância para uma Organização age daquela forma, passa a impressão de que a mesma está desmoronando (e estava mesmo!). Mas, claro, inculpar um bode expiatório não era opção aceitável, mesmo em circunstâncias extremas. 

Enfim, quando houve em 2007 uma formidável grita da direita contra a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça de conceder à família de Lamarca uma reparação equivalente à de um general-de-brigada, decidi assumir a defesa da corajosa medida na batalha de opinião, confrontando os principais veículos da grande imprensa e seus editoriais falaciosos. Por quê? Porque alguém precisava fazê-lo. Foi o momento em que sepultei definitivamente as mágoas do passado.