Wagner Schwartz durante apresentação no 35º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna.
Blog do Sakamoto/Foto: divulgação / Blog do Sombra
Quando uma turba resolve fazer Justiça com as próprias mãos e parte
para o linchamento de uma pessoa acusada de cometer um crime, usa – não
raro – o discurso de que as instituições públicas não conseguem dar
respostas satisfatórias para punir ou prevenir.
Afirmam, dessa forma, que estão resolvendo – como policial, promotor,
juiz, júri e carrasco – o que o poder público não foi capaz de fazer,
baseado em um entendimento limitado do que é certo e do que é errado. Do
que é moral, imoral ou amoral. Do que é aceitável ou inaceitável. Mesmo
que, ao final do dia, isso os transforme em criminosos mais vis do
alguém que comete um furto, por exemplo – uma vez que a vida vale mais
que um produto e não existe pena de morte no Brasil. Em tese, claro.
Portanto, é triste que turbas estejam despontando, aqui e ali,
resolvendo fazer ''Justiça com as próprias mãos'', acusando pessoas ou
instituições não de estuprar, roubar ou matar, mas de difundir uma ideia
ou se manifestar artisticamente. Adotam a difamação e virulentos
ataques virtuais – que, não raro, deixam traumas e sequelas nos moldes
das agressões físicas – como modo de ação. Continuando nesse ritmo,
passaremos para o linchamento muito em breve.
Não é à toa que esta situação remete a momentos da Inquisição que pensávamos ter deixado para trás.
Durante a Contra-Reforma, lideranças lançavam ao fogo quem questionava
sua interpretação das palavras do Deus cristão. No fundo, não era a fé e
sua doutrina que estavam defendendo, mas a manutenção de sua hegemonia
sobre a população. Pois quem detém a interpretação sobre como deve ser a
morte, a vida e, mais importante, a vida após a morte, controla o
mundo.
Esse processo se repete ainda hoje com pessoas e movimentos que usam a
justificativa da ''moralidade'' para atacar manifestações artísticas em
desacordo com sua visão de mundo. Os mais inocentes acham que estão
atuando em nome da vontade de Deus ou em defesa da família. Os mais
espertos, que comandam o show ou sabem como dele se apropriar, querem
promover sua imagem como ''guardiães dos valores'' de um determinado
naco da população e serem vistos como sua ''consciência crítica''. Para
quê? Ter poder sobre esse naco, aumentar sua capacidade de construir
significados e sentidos coletivos. Mas também a fim de ajudar um
político-amigo a se eleger ou contribuir com um empresário-amigo em sua
empreitada contra os direitos trabalhistas.
No fundo, ninguém se importa em entender o sentido de uma notícia de
jornal ou de uma mostra artística. Muito menos se promovia realmente a
''pedofilia''. Os líderes da turba despejam o significado que desejarem
no alvo do ataque, conectando-o a ódios ancestrais e tabus. A turba, a
partir daí, segue a lógica do linchamento. Ou seja, não importa o que
aconteceu de verdade, se alguém está apanhando da turba é porque é
culpado de algo.
Durante o ápice do processo de impeachment de Dilma Rousseff, pessoas
foram obrigadas a tirar camisetas vermelhas e bonés de movimentos
sociais de esquerda sob o risco de apanharem de turbas enfurecidas na
rua. Outras acabaram sendo agredidas. Ações, antes restritas ao ambiente
digital, foram ganhando escolas, locais de trabalho e salas de jantar,
fomentada por lideranças digitais e pela ausência de uma cultura
política do debate, da tolerância e da noção de limites.
À medida em que avançamos em direção ao processo eleitoral de 2018,
políticos vêm perdendo o pouco pudor que tinham. Enxergando-se como
seres acima do bem e do mal e não aceitando a circulação de qualquer
notícia negativa sobre eles, soltam fortes declarações, muitas vezes
grávidas de ódio. Estas acabam por dar à luz a campanhas digitais
organizadas contra profissionais de imprensa ou formadores de opinião
através de um ecossistema de sites anônimos e páginas em redes sociais
simpáticos aos políticos em questão.
O direito ao livre exercício de pensamento e à liberdade de expressão
são garantidos pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais
que o país assinou. Por qualquer grupo, movimento, exposição. Mas a
liberdade de expressão não é direito fundamental absoluto, porque não há
direitos absolutos. Você não pode usar sua liberdade de expressão, por
exemplo, para forçar que outra pessoa não possa efetivar a sua liberdade
de expressão.
Ou seja, aproveitando-se de uma interpretação errônea das liberdades
individuais, como se elas não tivessem limites ou demandassem
responsabilidades, grupos operando como milícias digitais usam as
proteções ao direito à livre expressão para subverter a própria
democracia, moldá-la ou destruí-la.
O exercício das liberdades pressupõe responsabilidade e limites. Quem
não consegue conviver com isso, não deveria nem fazer parte do debate
público, recolhendo-se, junto à sua incapacidade de viver em sociedade,
ao seu cantinho.
Vale lembrar que, por vezes, não são os organizadores de ações desse
tipo que ameaçam, esmurram, esfaqueiam e atiram, mas é a sobreposicão de
seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de
atacar, esfaquear e atirar banais. Ou, melhor dizendo, “necessários''
para tirar o país do caos e levá-lo à ordem. Acabam por alimentar a
intolerância, que depois será consumida por seus seguidores malucos que
fazem o serviço sujo.
Não podemos esquecer que já linchamos sistematicamente pessoas cujo
crime do qual são acusadas é o de criar rupturas em uma suposta harmonia
da sociedade ao tentarem ser simplesmente quem são. O receio constante
de apanhar ou ser maltratado não é novidade para muitos gays, lésbicas,
transexuais, travestis, negros (principalmente jovens), indígenas,
mulheres. Ou seja, cidadãos tratados como se fossem de segunda classe.
Seguindo essa toada, quando começaremos a amarrar pessoas em postes para linchamentos ideológicos?
O que a maior parte das hordas que adotam o terror como modelo de
atuação não sabem é que não se mata uma ideia calando quem a carrega.
Porque uma ideia não pertence a uma única pessoa ou instituição. Ela,
parida pela somatória das experiências de vida individuais e pela ação
da razão, passa a pertencer à sociedade e ao seu tempo histórico.
Ou seja, uma ideia não morre simplesmente junto com uma pessoa que a
defende. Queimada na fogueira ou agredida em praça pública, ela se
multiplica. E, com isso, transforma, para melhor, a vida de todos os
envolvidos. Mesmo que eles não reconheçam isso.