Segunda, 4 de setembro de 2017
A definição do modelo ideal para os
tribunais de Contas é uma missão que, embora seja desafiadora, não pode
se transformar em utopia.
Por Lucieni Pereira-Revista Consultor Jurídico/Foto: Correio Braziliense
e Blog do Sombra
Muito se discute sobre uma reforma ideal para aperfeiçoar os tribunais
de Contas, de forma a garantir os meios necessários para o pleno
exercício de sua missão institucional, com imparcialidade e desassombro.
Os fatos revelados na operação "lava jato" e seus desdobramentos nos
estados atestam a necessidade de destravar o debate nas comissões do
Congresso Nacional, com vistas a criar o ambiente favorável para a
construção de uma proposta de consenso.
Dentre as inúmeras propostas de emenda constitucional que tramitam no
Congresso Nacional, três delas têm sido discutidas com frequência pelas
associações nacionais que representam procuradores de Contas, auditores
de controle externo e conselheiros titulares e substitutos: PECs
329/2013-CD, 40/2016-SF e 22/2017-SF — a primeira em tramitação na
Câmara dos Deputados; as demais, no Senado Federal.
Não se pode deixar de citar a PEC 75/2007-CD, cujo escopo tem por
finalidade remodelar, substancialmente, o figurino institucional dos
tribunais de Contas e que, nos termos atuais, não apresenta sinais de
consenso entre as associações nacionais, o que levou a autora da
proposta a sinalizar com a sua disposição de trabalhar um texto
substitutivo.
A definição do modelo ideal para os tribunais de Contas é uma missão
que, embora seja desafiadora, não pode se transformar em utopia. Há, na
própria Constituição de 1988, parâmetros fundamentais que podem conferir
racionalidade ao debate e destravar a tramitação das propostas nas
comissões do Congresso Nacional, onde se encontram paralisadas.
A necessidade de aperfeiçoamento com vistas a objetivar os atuais
critérios de indicação e escolha dos membros, assim como a padronização
nacional do processo de controle externo e do funcionamento dos órgãos
de fiscalização (auditoria de controle externo), colegiados e Ministério
Público de Contas parecem temas de consenso entre as associações de
classe de âmbito nacional, congressistas, academia e sociedade civil,
constituindo esses pontos mais de 2/3 do que é emergencial aperfeiçoar.
O debate, assim, parece travado por dois pontos aparentemente
controversos: o primeiro diz respeito à composição dos tribunais de
Contas; o segundo refere-se ao controle disciplinar dos ministros,
conselheiros e procuradores de Contas, assim como ao controle da gestão
administrativo-financeira dos tribunais e Ministério Público de Contas.
Sobre a composição dos tribunais de Contas, todas as propostas
mencionadas apresentam avanços e desafios que merecem ser amplamente
discutidos no fórum adequado, que é a Comissão Especial da Câmara dos
Deputados. Para que isso aconteça, é necessário que a Comissão de
Constituição e Justiça aprecie a admissibilidade da PEC 329/2013-CD,
eleita prioritária por formadores de opinião, por se tratar de
iniciativa suprapartidária da Frente Parlamentar de Combate à Corrupção,
que dispõe de amplo apoio de segmentos importantes da sociedade civil.
Resta, portanto, enfrentar as controvérsias referentes aos controles
disciplinar das autoridades e administrativo-financeiro dos tribunais.
Sobre tais controles, a Associação da Auditoria de Controle Externo do
Tribunal de Contas da União (AUD-TCU) se manifestou formalmente no
processo administrativo que tramita no Tribunal de Contas da União para
apreciar a PEC 329/2013-CD.
A Associação Nacional dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil
(Atricon) defende a criação do terceiro conselho nacional específico
para 33 tribunais de Contas (CNTC), à semelhança dos Conselhos Nacionais
de Justiça e do Ministério Público (CNMP). Na Câmara dos Deputados,
tramita a PEC 28/2007, com tal propósito. No Senado Federal, sobressaem
as PECs 30/2007, 6/2013 e 22/2017.
As propostas que versam sobre a criação de mais um conselho nacional
com poder de autogoverno se demonstram controversas sob dois prismas:
institucional e fiscal.
As digressões sobre aspectos institucionais devem ser analisadas à luz
da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que é pacífica no sentido
de que os tribunais de Contas não mantêm qualquer relação de
subordinação com as Casas Legislativas. Os tribunais, embora estejam
previstos na Seção IX do Capítulo I do Título IV da Constituição de
1988, são instituições que devem observar, por imperativo
constitucional, a mesma organicidade dos tribunais do Poder Judiciário,
operando à sua semelhança.
O objetivo do constituinte originário não foi outro senão o de garantir
a eficácia de salvaguardas efetivas ao erário e o devido processo legal
na esfera de controle externo, mediante conformação institucional
prevista para o TCU semelhante à dos tribunais do Poder Judiciário
(artigo 73 c/c artigo 96).
A primeira observação necessária é que o constituinte tratou a
fiscalização contábil, financeira e orçamentária em seção específica,
para que o exercício dessa função não se confunda com a atividade
tipicamente legiferante, própria dos parlamentares que integram as Casas
Legislativas.
O segundo ponto a destacar refere-se à inequívoca intenção do
constituinte de assegurar que a judicatura de contas se processe segundo
a mesma organicidade do Poder Judiciário. Para tanto, os magistrados de
Contas estão sujeitos à mesma lei complementar prevista no artigo 93 da
Carta Política (Lei Orgânica da Magistratura – Loman), que institui os
pilares para as ações disciplinares e correcionais.
A modelagem constitucional com vistas a dar concretude ao devido
processo legal na esfera de controle externo, o que pressupõe assegurar
garantias aos jurisdicionados sujeitos à fiscalização em tal esfera,
completa-se com a previsão de um Ministério Público de Contas (artigo
130), órgão especializado e essencial à judicatura de contas, sem
qualquer paralelo nas Casas Legislativas.
A compreensão do figurino constitucional previsto para a fiscalização e
o julgamento na esfera de controle externo requer leitura sistemática,
pois as previsões estão esparsas na Lei Maior.
Esse figurino específico, para não dizer anômalo, tem uma razão de ser:
assegurar o devido processo legal na esfera de controle externo. No
exercício de sua missão institucional, os tribunais de Contas podem
julgar contas anuais ou ao longo da execução orçamentária para assegurar
o ressarcimento do dano ao erário, aplicar sanções e determinar
restrições a direitos, cujas decisões têm eficácia de título executivo,
ou seja, não precisam de apreciação de mérito do Poder Judiciário para
serem cobradas. São essas as competências institucionais que aproximam e
exigem do TCU conformação análoga aos tribunais do Poder Judiciário.
Se, por um lado, o constituinte dispôs sobre a competência do TCU no
capítulo do Poder Legislativo (Capítulo I - referente à função controle
externo), por outro conferiu à corte de Contas a mesma organicidade do
Poder Judiciário (Capítulo III) ao dispor, em duas passagens
fundamentais, sobre a mesma tipologia organizacional do Poder Judiciário
(artigo 96) e prerrogativas dos membros do Superior Tribunal de Justiça
(artigo 93).
Pois bem. Se a organicidade dos tribunais de Contas não chega a ser
anômala, pode-se afirmar ao menos que é atípica, razão pela qual as
discussões sobre as cortes de Contas impõem uma leitura sistemática da
Constituição de 1988.
No sistema constitucional de repartição de competências típicas, o
controle exercido pelos tribunais de Contas deve ser feito de forma
técnica, com equilíbrio e imparcialidade, sem as paixões inerentes aos
debates parlamentares e aos interesses político-partidários que são
próprios do funcionamento das Casas Legislativas.
Com essa conformação, demonstra-se harmônica com a Constituição de 1988
a inclusão dos tribunais de Contas no raio de abrangência disciplinar
do CNJ, já que a Loman se aplica, sem distinção, a todos os magistrados,
os quais detêm as mesmas prerrogativas (porte de arma para defesa
pessoal, uso de toga, regras específicas para ser ouvido como testemunha
e de prisão e carteira funcional especial, dentre outras prerrogativas
previstas no artigo 33), garantias (vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de subsídio), vantagens (subsídios e auxílio-moradia em
valores idênticos aos fixados para ministros do STJ e desembargadores
dos tribunais de Justiça), devendo, consequentemente, se sujeitar aos
mesmos impedimentos e vedações, inclusive os magistrados de Contas.
Prerrogativa de magistrado, controle de magistrado!
Por maior razão, devem os procuradores de Contas se sujeitar ao CNMP.
Não há fundamento plausível, sob a ótica da razoabilidade operacional e
racionalidade fiscal, para a União manter dois conselhos nacionais
destinados ao controle de magistrados (CNJ e CNTC) e mais dois para
membros do Ministério Público (CNMP e CNMPC), perfazendo quatro
estruturas nacionais. O risco de sobreposição de funções é enorme,
criando ambiente fértil para decisões assimétricas sobre a aplicação das
normas gerais que regem tais agentes públicos ocupantes de cargos
vitalícios.
Nesse cenário de multiplicidade, há que se considerar o risco de
proliferação de conselhos nacionais à semelhança do CNJ para interpretar
a mesma norma disciplinar.
Convém relembrar que CNJ e o CNMP foram criados como resultado da
legítima manifestação popular pelo fim da impunidade. O CNJ exerce o
controle administrativo sobre a atuação de 94 tribunais e conselhos
integrados de mais de 16,8 mil magistrados, segundo o censo[1]realizado
em 2014, o que justificou a criação dos mecanismos de controle e
accountability específicos.
Sendo o Judiciário a última trincheira da cidadania e o Ministério
Público a instituição com competência privativa para oferecer denúncia
contra crimes contra administração pública e improbidade administrativa,
a inércia proposital ou a baixa efetividade dessas instituições para
punir seus próprios membros por desvios de conduta constitui fator
crítico para reduzir o índice elevado de percepção de impunidade. Sem a
ação do Ministério Público em determinadas infrações, por autoproteção
da classe, o Judiciário não tem como processar e julgar.
Essa não é, nem de longe, a realidade dos 32 tribunais de Contas
estaduais e municipais, que dispõem de 224 conselheiros titulares, todos
sujeitos ao controle da Procuradoria-Geral da República (em razão do
foro por prerrogativa de função no STJ) e do Poder Judiciário da União, o
que confere equilíbrio ao sistema de forças estaduais. Todavia, é
oportuno aumentar o controle disciplinar sobre os membros dos tribunais e
Ministério Público de Contas, o que não tem se demonstrado efetivo
pelas Corregedorias locais, razão pela qual é salutar a proposta da PEC
329/2013, que elege o CNJ e o CNMP para tal função.
Sob o ponto de vista fiscal, não são menores os desafios decorrentes da
criação do CNTC. Com deficit primário de R$ 139 bilhões para 2017 e
previsão de deficit de R$ 131,3 bilhões para 2018, a União não ostenta
condições fiscais favoráveis para criar novos órgãos com poder de
autogoverno na administração pública federal.
A proposta que visa à criação de um novo conselho nacional também não
considera as restrições a que estão submetidas as instituições federais
em decorrência do longo período de vigência do novo regime fiscal,
inclusive o TCU.
Soma-se a esse fato crítico a necessidade de redistribuir, a cada
criação de conselho nacional com poder de autogoverno, os limites
fixados para despesa com pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A
criação do CNTC, assim, implicaria a necessária redução dos limites de
pessoal da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do próprio TCU, o
que, por sua vez, pode comprometer a condução da política econômica caso
haja descumprimento de um desses limites.
A PEC 22/2017 traz, ainda, um novo componente, que consiste na previsão
de uniformização de jurisprudência em matéria de controle externo pelo
CNTC, órgão de controle interno de natureza administrativo-disciplinar. O
risco da proposta é elevado, uma vez que a União ficaria refém de
demandas estaduais e municipais se as decisões do TCU em matéria de
controle externo fossem vinculadas às deliberações do conselho nacional
de índole administrativa.
Sob o ângulo constitucional, proposta com esse escopo rompe com a noção
de República federativa, em que a União deve exercer papel definidor
das normas gerais para toda federação, não o inverso. Não é plausível
sujeitar os Poderes e as políticas públicas a cargo da União, dentre
elas a política macroeconômica, a decisões do TCU vinculadas a
deliberações de conselho administrativo como CNTC, cuja composição será
majoritariamente de integrantes de órgãos estaduais e municipais.
Mais emergencial do que a criação de novas estruturas de controle, os
tribunais de Contas carecem de instrumentos padronizados de
accountability, que não são sinônimos, sendo o primeiro um dos
componentes do segundo.
A instituição de um padrão mínimo nacional de organização e
funcionamento de tais instituições de controle externo é o primeiro
passo, mediante a instituição das condições constitucionais para edição,
pela União, da lei orgânica nacional e do código nacional de processo
de controle externo. É a lei orgânica nacional que poderá assegurar um
padrão mínimo institucional nos 33 tribunais de Contas em toda
federação.
Para além do desafio presente nas indicações, há um problema de base em
vários tribunais estaduais e municipais, que é a falta de um quadro
técnico de carreira e com independência profissional — de fato e de
direito — garantida para o exercício das funções de auditoria.
O excesso de cargos comissionados nos tribunais estaduais e municipais —
em total descompasso com as salvaguardas estatuídas na Lei Orgânica do
TCU — associado ao valor injustificadamente desproporcional da
retribuição de cargos em comissão e funções gratificadas (que pode
chegar a R$ 21,3 mil no Rio de Janeiro contra R$ 4,9 mil no TCU), criam
um quadro de dependência financeira propositada, o que faz da
independência profissional dos auditores de controle externo "letra
morta em papel".
A permissividade com a participação de comissionados sem vínculo,
servidores cedidos de órgãos fiscalizados pelo tribunal, servidores do
próprio tribunal em desvio de função e até alocação de agentes
terceirizados na execução da atividade finalística de controle externo
também são fatores críticos que precisam ser superados, o que a PEC
40/2016-SF se propõe a reverter.
Para efetivação da accountability, contribuiria a instituição e
manutenção, pela União, de um portal nacional de transparência e
visibilidade, da Ouvidoria nacional, sendo bem-vinda a previsão em lei
de um conselho ou colégio de presidentes dos tribunais de Contas, com
vistas a promover a articulação entre tais instituições, criar uma
instância permanente de debate sobre matérias de controle externo e
interagir com a sociedade.
Também contribuiria para a efetivação da accountability a
institucionalização de indicadores sobre o funcionamento efetivo dos
tribunais de Contas, pactuados entre o colégio de presidentes com a
participação da sociedade civil, constituindo mecanismo importante para
avaliar se a padronização institucional reflete-se em uniformidade de
procedimentos asseguradores das garantias processuais e de resultados.
Longe de constituir uma proposta de reforma ideal, o texto substitutivo
elaborado pela AUD-TCU para subsidiar a discussão das PECs 329/2013-CD,
40/2016-SF e 22/2017-SF supera boa parte dos fatores críticos que,
apesar dos inegáveis esforços empreendidos nos últimos anos, ainda
comprometem a credibilidade da atuação dos tribunais de Contas, o que,
por si só, justifica a urgência de destravar o debate sobre a PEC
329/2013 na CCJ/CD.
[1] www.cnj.jus.br/images/dpj/CensoJudiciario.final.pdf
Lucieni Pereira é auditora federal de Controle Externo do Tribunal de
Contas da União, professora de Finanças Públicas e presidente da
Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da
União (AUD-TCU).