*Marcelo Pires Mendonça
Pediram-me
para escrever algo sobre a minha cidade. Cresci com ela e imaginei que fosse
fácil, pensei em um artigo, talvez um poema ou uma simples declaração de amor.
Amor? Mas como desvendar um amor em meio às armações de concreto, piso pichado,
larguras sem fim, robôs em aço, árvores elétricas, almas inquietas e corações
secos?! Sinto falta de uma bebida...
Lamento,
mas esqueci, de que estamos falando mesmo? Ah, sim, da minha cidade. Mas, o que
é uma cidade, senão nós mesmos, despidos e enxutos, de ideia e matéria. Falo da
minha cidade a partir do que sou, do que fui e ainda tento controlar-me para
não cair nos braços da parcialidade, para não descrever um sonho, uma utopia
que um dia atirou-me em um céu infernal. Bom, se tiverem paciência, quem sabe
organizo meus pensamentos e escrevo. Sinto falta de um cigarro...
Sinto
muito por não termos mais dias empoeirados ardendo os olhos da molecada batendo
uma pelada com bola de plástico. Detestava poeira, e hoje sei que eu, quanto
mais empoeirado, mais perto de mim estava, dialogava com a minha essência e não
sabia, pois a terra fina que subia aos olhos e endurecia meus cabelos é a mesma
que brotaria a vida, que se escondia nas entranhas do meu sangue. Ando
desviando meu caminho para encontrar minha cidade avermelhada. Sinto falta de
poeira...
Ouço
muitas músicas compostas pela minha cidade e volto a pensar em declarações de
amor, em almas calmas e corações molhados. Mas também encontro palavras
inventivas, instigantes, que repudiam e desobedecem, promovendo um reboliço nas
engrenagens da cidade, decretando o novo ao velho. Sinto falta de mais poesia...
De
pé em pé a bola embala, balança a rede de amigos que bebem a vida em volta de
uma mesa redonda, assim como a terra, a terra casa, morada, namorada. Lembro-me
dos campinhos de terra, com pedras marcando o gol, pés cascudos e uma pelota
iluminada. A felicidade estava ali e nem percebi. Hoje a minha cidade se deita
em um imenso tapete verde e rebola, rebola muito, mas o gol não sai, roubaram
meu time. Sinto falta de uma bola...
Tenho
um coração que insiste em acreditar, se ilude fácil e é encantado, quanto mais
amores ele guarda mais sangra, se desmancha sempre e se reconstrói numa
velocidade estupenda. Na minha cidade tem quadras que escondem versos lindos,
músicas suaves, belos romances, gemidos murmurados e filmes inquietantes. Sinto
falta de um amor...
A
minha cidade é assim: se embriaga, transcende, arde, rebola e ama. E eu, que
vivo e sinto, partilho sua história com a minha vida, imbricadas que estão.
Sinto falta de mim, sinto falta do Gama.
*Marcelo Pires Mendonça,
é professor de História e Geografia da Rede
Pública de Ensino do Distrito Federal e filho do Gama.
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Comentário do Gama Livre: a cidade do Gama completa 57 anos neste dia 12 de outubro.