Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Eu sou minha cidade

Segunda, 9 de outubro de 2017

*Marcelo Pires Mendonça
            Pediram-me para escrever algo sobre a minha cidade. Cresci com ela e imaginei que fosse fácil, pensei em um artigo, talvez um poema ou uma simples declaração de amor. Amor? Mas como desvendar um amor em meio às armações de concreto, piso pichado, larguras sem fim, robôs em aço, árvores elétricas, almas inquietas e corações secos?! Sinto falta de uma bebida...

            Lamento, mas esqueci, de que estamos falando mesmo? Ah, sim, da minha cidade. Mas, o que é uma cidade, senão nós mesmos, despidos e enxutos, de ideia e matéria. Falo da minha cidade a partir do que sou, do que fui e ainda tento controlar-me para não cair nos braços da parcialidade, para não descrever um sonho, uma utopia que um dia atirou-me em um céu infernal. Bom, se tiverem paciência, quem sabe organizo meus pensamentos e escrevo. Sinto falta de um cigarro...

            Sinto muito por não termos mais dias empoeirados ardendo os olhos da molecada batendo uma pelada com bola de plástico. Detestava poeira, e hoje sei que eu, quanto mais empoeirado, mais perto de mim estava, dialogava com a minha essência e não sabia, pois a terra fina que subia aos olhos e endurecia meus cabelos é a mesma que brotaria a vida, que se escondia nas entranhas do meu sangue. Ando desviando meu caminho para encontrar minha cidade avermelhada. Sinto falta de poeira...

            Ouço muitas músicas compostas pela minha cidade e volto a pensar em declarações de amor, em almas calmas e corações molhados. Mas também encontro palavras inventivas, instigantes, que repudiam e desobedecem, promovendo um reboliço nas engrenagens da cidade, decretando o novo ao velho. Sinto falta de mais poesia...

            De pé em pé a bola embala, balança a rede de amigos que bebem a vida em volta de uma mesa redonda, assim como a terra, a terra casa, morada, namorada. Lembro-me dos campinhos de terra, com pedras marcando o gol, pés cascudos e uma pelota iluminada. A felicidade estava ali e nem percebi. Hoje a minha cidade se deita em um imenso tapete verde e rebola, rebola muito, mas o gol não sai, roubaram meu time. Sinto falta de uma bola...

            Tenho um coração que insiste em acreditar, se ilude fácil e é encantado, quanto mais amores ele guarda mais sangra, se desmancha sempre e se reconstrói numa velocidade estupenda. Na minha cidade tem quadras que escondem versos lindos, músicas suaves, belos romances, gemidos murmurados e filmes inquietantes. Sinto falta de um amor...

            A minha cidade é assim: se embriaga, transcende, arde, rebola e ama. E eu, que vivo e sinto, partilho sua história com a minha vida, imbricadas que estão. Sinto falta de mim, sinto falta do Gama.

*Marcelo Pires Mendonça,
é professor de História e Geografia da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal e filho do Gama.

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Comentário do Gama Livre: a cidade do Gama completa 57 anos neste dia 12 de outubro.