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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O neoliberalismo em desencanto é o caldo de cultura que propiciou o fenômeno Bolsonaro

Quinta, 26 de outubro de 2017
Do Blogue Náufrago da Utopia


Assim o veem seus ultralimitados adoradores
O regime neoliberal operou uma profunda reestruturação social e econômica. Urdido a partir da desestruturação do Estado de bem-estar social, pregava a retirada de assistências sociais e a desregulamentação do mercado em nome da livre iniciativa empresarial.

Um dado importante para se notar no neoliberalismo é a crença no individualismo radical. Em sua visão, a sociedade seria feita apenas a partir de indivíduos isolados em competição uns com os outros. A mediação das relações entre tais indivíduos seria dada pelo mercado.
Deste modo, cada pessoa do mundo seria considerada compradora ou vendedora. O antigo ideal de cidadania, sustentado pelo welfare state, foi substituído pelos de empreendedor e consumidor.

Ontologicamente, esta reorganização social promovida pelo neoliberalismo levou a uma espécie de nominalismo social: não existiria nada de universal, apenas entidades particulares. O próprio Estado, antes considerado uma universalidade social, foi reduzido à categoria de mediador do mercado – com poderes de intervenção reduzidos – e transformado ele mesmo em mais uma entidade individual dentre outras.

Cogitou-se mesmo, nas versões radicalizadas do neoliberalismo – vulgarmente chamadas de anarcoliberalismo -, na extinção do Estado em prol da existência única dos indivíduos e sua relação no interior do mercado.

Na verdade, opera-se um processo de abstração da realidade social. A sociedade, enquanto realidade ontológica de atividade dos seres humanos, é substituída pelo mercado, abstração forjada pela troca entre sujeitos particulares. É como se não houvesse nenhuma realidade concreta além da particularidade dos indivíduos.
Estado de bem-estar social: em desestruturação.

Tal perspectiva é fortalecida por mudanças estruturais no sistema produtivo, com os trabalhadores ficando cada vez mais isolados uns dos outros; e no mercado de trabalho, com a competição intra trabalhadores intensificada. Além disso, a desestruturação do Estado de bem-estar social e sua substituição por serviços pagos leva à compreensão de que apenas a atividade individualizada é capaz de garantir qualidade de vida.

Para completar o quadro, as instituições políticas – partidos, sindicatos e movimentos populares em geral – são cooptados pelo sistema econômico, passando a cooperar na administração do regime de acumulação capitalista.

O impacto disto na consciência social será a constatação generalizada de que a política, com seus instrumentos tradicionais, não servem ao indivíduo comum, mas estão cooptadas por forças estranhas, pouco entendíveis. Aliada à compreensão de que a saída para se ter qualidade de vida só pode ser individual, tal consciência gera uma profunda rejeição da política e da vida pública.

Em resumo, o neoliberalismo instaura uma forma social de individualidades apartadas, interagindo apenas em função do mercado – compra e venda – e negadoras de qualquer ação que não passe estritamente pelo plano da iniciativa individual.

Porém, o neoliberalismo entrou em colapso. A crise de 2008 o colocou em xeque, mostrando que sua tônica de acumulação não era tão estável como propagado. De seus escombros surgiram inúmeros movimentos ao redor do planeta, levando a uns tantos movimentos revolucionários, em sua maioria fracassados ou apenas parcialmente vitoriosos.
Na verdade, a força dissipadora do neoliberalismo foi tão poderosa que as instituições políticas tradicionais foram aniquiladas em sua representatividade, deixando apenas um lastro de sujeitos monadológicos. 
França: foi grande o risco de retrocesso na última eleição.  
O resultado foi uma dificuldade em articular movimentos coerentes e levar a cabo as insurreições populares. Na maioria dos casos, elas se dissiparam ou foram absorvidas por projetos de cunho meramente politicista (caso da primavera árabe) ou até mesmo reacionários.

Mas, não são apenas os movimentos progressistas que ganharam força na desestruturação neoliberal. Grupos de extrema direita passaram a ter uma influência que não se via há décadas. Só para citar alguns exemplos, temos o Estado Islâmico no oriente médio, a vitória de Donald Trump nos EUA, um governo católico reacionário na Polônia, inúmeros governos ultradireitistas no leste europeu e a entrada no parlamento alemão de um partido de inspiração claramente nazista, algo inédito desde o fim da segunda guerra.
COMO TRUMP, ELE É LÍDER DE UM MOVIMENTO DESARTICULADO.

No Brasil não seria diferente. Sabemos que a extrema-direita teve papel importante no impeachment de Dilma. Certamente, em sua maioria esmagadora, a dita cuja foi representada por grupelhos insignificantes, cuja participação não passou de marchar na rua e fazer número. Contudo, o extinto grupo Revoltados online teve uma ação de massas considerável, mobilizando muita gente.
Contudo, o nome mais em voga atualmente é o de Jair Bolsonaro. Ex-capitão do exército, foi afastado da ativa depois de tentar levar a cabo atos de terrorismo na década de 80. Congressista há 26 anos, possui uma carreira política nula, para dizer o mínimo, tendo aprovado apenas dois projetos em todo esse tempo. Nunca teve atuação memorável em qualquer comissão ou em qualquer movimento. Ou seja, em política é um verdadeiro joão ninguém.

Apesar disso, seu nome aparece com destaque nas pesquisas de intenção de voto e ele conta com uma legião de adoradores (rigorosamente são isto mesmo) espalhados pelo país. Como explicar tal discrepância? De onde surgiu o fenômeno Bolsonaro?

Na verdade, as aparentes fraquezas de Bolsonaro são sua força. Sua nulidade política o torna um sujeito deslocado do regime político, identificando-o como alguém não cooptado pelas forças convencionais.

Ao mesmo tempo, seu discurso explosivo e tosco o torna simpático aos olhos de pessoas que possuem uma compreensão ultralimitada da realidade.
Moralismo rançoso expresso em frases estridentes

Uma característica importante do neoliberalismo foi a dissolução das compreensões totalizantes. A super-especialização e o pragmatismo radical passaram a ser a prática dominante. Neste aspecto, os sujeitos perderam a noção de um entendimento articulador, sendo condenados a uma visão ultra-limitada do mundo. Como consequência, explicações irracionais ou frases de efeito possuem força suficiente para vingarem.

Para completar, seu moralismo reacionário reverbera entre aqueles que se incomodam com as recentes mudanças da vida social, com o protagonismo feminino, a emancipação política dos LGBT's, o combate ao racismo, a ascensão social de grupos historicamente marginalizados, etc.

Há base para uma comparação dele com Trump. Certamente, as discrepâncias são maiores que as semelhanças, pois o presidente estadunidense é um empresário bilionário, tendo construído um império ao longo de décadas, bem ao contrário de um ex-militar encostado no Congresso. Porém, há um fato que os une: ambos são líderes de um movimento desarticulado.

Caso atentemos bem ao fenômeno Bolsonaro, veremos que ele não chefia nenhum agrupamento. Apenas possui simpatizantes que, de modo mais ou menos articulado, mobilizam seu nome. Do mesmo jeito, Trump não chefiava, ou chefia, qualquer tipo de movimento institucionalizado. Seus apoiadores – como também, diga-se, os de Sanders – são sujeitos dispersos e isolados, unidos por sua figura.

Na verdade, Bolsonaro se beneficia, ao mesmo tempo, do regime neoliberal e de sua dissolução.
Livro do torturador Brilhante Ustra: bíblia do Bolsonaro?

A dissolução ontológica do mundo social em indivíduos apartados torna extremamente difícil a articulação destes em torno de um projeto político organizado e coeso. Porém, a dissolução do neoliberalismo leva estes indivíduos a se insurgirem contra o regime que os deixou neste estado. Qual a alternativa, então? Focalizarem-se numa liderança que seja capaz de conduzir suas vontades.

Tal fenômeno já foi analisado por Marx no 18 de Brumário. Porém, se o filósofo alemão colocava a base política do sobrinho de Napoleão entre os camponeses isolados, agora o isolamento é generalizado no interior mesmo das classes burguesas e proletárias.

No caso do 18 de Brumário, eram a ascendência familiar do sobrinho do ex-imperador e as reminiscências dos camponeses em torno da época de ouro do bonapartismo que alavancavam a imagem de Luís Bonaparte.

No caso de Bolsonaro, é seu discurso reacionário em defesa de uma mitológica era de ouro do passado, era que ocorreu no período do regime militar. Supostamente, naquela época não existiriam crimes, desemprego, corrupção ou agitações sociais. Tudo perfeitamente falso, claro, mas que se vende num país ignorante de seu passado e cuja ditadura praticamente deu à luz o regime democrático, preservando seus criminosos e sustentadores.

O passado militar de Bolsonaro também lhe traz a áurea da defesa da ordem, algo aspirado por sujeitos cansados da anarquia social instituída primeiramente pelo neoliberalismo vitorioso (a concorrência generalizada entre os indivíduos) e depois pela sua dissolução (levantes, greves, ocupações, manifestações e ensaios revolucionários).
Em essência, podemos dizer que o fenômeno Bolsonaro é um fenômeno de reação ao neoliberalismo, em sua fase de dissolução, mas que opera esta reação por intermédio da extrema-direita, apostando no autoritarismo e na restauração de valores já superados enquanto meio de solucionar a situação atual. Nos marcos do pós-neoliberalismo, tal fenômeno age segundo as balizas de sua realidade ontológica: incapacidade de superar o isolamento monodológico, aversão à institucionalidade e à política tradicional, apego ao voluntarismo imediatista.

As vitórias da extrema-direita ao redor do mundo servem de alerta. Uma saída pela esquerda só será possível com a superação final das ilusões institucionais e o trabalho para romper com o isolamento instaurado pelo neoliberalismo. É preciso agir para evitar que o neoliberalismo em desencanto nos leve a uma era de completa e radical barbárie.

Autor: 
David
Emanuel
de Souza
Coelho.