Domingo, 26 de novembro de 2017
O Banco Mundial pega uma pequena parcela dos estudantes e generaliza para o conjunto dos alunos. Isso é um erro lógico primário
Por Rebeca Letieri - Jornal do Brasil / Foto: commons.wikipedia.org
e Portal ContextoExato
“O que está em jogo é um duplo assalto: a desfiguração do ensino
superior público brasileiro, onde se produz ciência nesse país, e a
transformação em um sistema totalmente comandado pelos grandes
monopólios das universidades privadas lucrativas”, enfatizou o professor
de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), Wilson
Mesquita de Almeida. Ele está falando do recém-lançado relatório do
Banco Mundial, que sugere a adoção de um sistema semelhante ao Fundo de
Financiamento Estudantil (Fies) nas universidades públicas, com o fim da
gratuidade e criação de bolsas para quem não pode pagar.
O Fies é o programa do Ministério da Educação (MEC) que financia cursos
superiores não gratuitos e com avaliação positiva no Sistema Nacional
de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).
O relatório foi encomendado ao Banco Mundial pelo ex-ministro da
Fazenda Joaquim Levy, e entregue ao atual ministro Henrique Meirelles, e
do Planejamento, Dyogo Oliveira, na última terça-feira (21). O
documento analisa oito áreas do gasto público no Brasil, e afirma que,
nas últimas duas décadas, ele aumentou de forma “consistente”, colocando
em risco a sustentabilidade fiscal do país.
Na educação, o relatório aponta que as despesas com universidades
federais “equivalem a um subsídio regressivo à parcela mais rica da
população brasileira”. “O Governo Federal gasta aproximadamente 0,7% do
PIB com universidades federais. A análise de eficiência indica que
aproximadamente um quarto desse dinheiro é desperdiçado. Isso também se
reflete no fato que os níveis de gastos por aluno nas universidades
públicas são de duas a cinco vezes maior que o gasto por aluno em
universidade privadas. A limitação do financiamento a cada universidade
com base no número de estudantes geraria uma economia de aproximadamente
0,3% do PIB”, diz o documento, continuando: “Além disso, embora os
estudantes de universidades federais não paguem por sua educação, mais
de 65% deles pertencem aos 40% mais ricos da população”.
Especialistas, entretanto, rebatem os argumentos apontados pelo
relatório. Uma pesquisa do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos
Comunitários e Estudantis (Fonaprace), publicada em 2016, revela que, em
2014, 51,4% dos estudantes de graduação nas universidades públicas
federais pertenciam a famílias com renda bruta de até três salários
mínimos. O estudo do fórum revela ainda que apenas 10,6% integravam
famílias com renda bruta superior a dez salários mínimos.
“Nos últimos anos, nós tivemos uma mudança bastante considerável no
perfil dos alunos no ensino superior brasileiro. Isso porque, mesmo com a
gratuidade, houve uma série de políticas que fizeram aumentar o número
de alunos nas universidades públicas e privadas”, disse o professor de
economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Fábio Domingues
Waltenberg.
Outra pesquisa lançada no ano passado pela Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)
mostrou que a participação de estudantes de famílias cuja renda bruta
está entre nove e dez salários mínimos caiu no período de 2010 e 2014 de
6,57% para 2,96%. Já os alunos de famílias com renda bruta acima de dez
salários mínimos caíram no mesmo período de 16,72% para 10,6%.
Além da maior presença de estudantes de classes econômicas menos
privilegiadas, o estudo identificou um aumento da participação de alunos
autodeclarados negros e pardos, que representam 47,57% dos
entrevistados. Em 1997, 2,2% dos pardos e 1,8% dos negros entre 18 e 24
anos cursavam ou já haviam concluído um curso de graduação no país.
“Há diversas razões que podem ser apontadas nessa conta. Qualquer
família de classe média entende e espera que seu filho entre na
universidade. E isso não é obvio para as famílias mais pobres. Então
mesmo que a pessoa tenha a capacidade, não faz parte das aspirações
dessa classe”, disse Fábio, que continuou: “Para reverter isso, não
basta investir no público e gratuito, tem que criar políticas de
manutenção dessas pessoas na universidade. E conscientizar a população
de que a universidade é para todos”.
“Vivemos em um país grande e com diferenças regionais ainda marcantes.
Quando eu pego dados da região Nordeste, Norte e Centro-Oeste, o perfil
social é mais heterogêneo socialmente. O Banco Mundial pega uma pequena
parcela dos estudantes e generaliza para o conjunto dos alunos. Isso é
um erro lógico primário”, acrescentou.
Exemplos Internacionais
Entre os países mais ricos, há os que não cobram nada dos estudantes em
qualquer nível do ensino superior, como os nórdicos (Noruega,
Dinamarca, Finlândia e Suécia) e os eslavos (Eslováquia e Eslovênia), e
outros, onde mesmo nas instituições públicas os custos do ensino
superior são de milhares de dólares por ano, como nos Estados Unidos e
no Reino Unido.
“Na Suécia, eles não pagam a universidade. E, além disso, os alunos
recebem uma bolsa que serve para pagar transporte e moradia. Então você
entende a educação como um investimento do governo, e não um gasto. Essa
é a diferença na concepção desse relatório: a nossa premissa é outra”,
disse Fábio.
Arabela Campos é professora de sociologia da educação na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, e doutora pela Universidade de Londres, no
Reino Unido. Ela conta que, no ano passado, esteve nos Estados Unidos
fazendo um estudo sobre o ensino superior e políticas de inclusão de
estudantes, principalmente negros norte-americanos, a fim de oferecer
uma comparação com o modelo brasileiro.
“Nos EUA, houve um processo de concentração de renda muito profundo nas
últimas décadas, e os resultados disso foram uma matrícula cada vez
mais elevada; serviços oferecidos nos campus da universidade supérfluos;
e uma contração de dívidas imensas por parte daqueles que precisam
fazer empréstimo para pagar os estudos, o que compromete o futuro de
milhares de norte-americanos”, disse.
Ela explicou que mesmo nas universidades públicas - que no caso dos EUA
também são pagas -, há uma tendência em selecionar cada vez mais alunos
com alto poder aquisitivo, já que os recursos públicos estão
encolhendo, e em períodos de crise, são ainda menores.
“A universidade pública de Illinois, por exemplo, uma das mais
importantes do país, procura atrair estudantes estrangeiros – em 2016
eles correspondiam a 22% das matrículas -, principalmente asiáticos.
Volta e meia você vê um jovem de 17 anos com uma Mercedes Benz vermelha
circulando no campus. É gritante a ostentação. E o resultado disso é uma
minoria cada vez mais rara. Então nós temos que conhecer essa realidade
e pensar sobre, para saber se é isso que queremos para o nosso país”,
disse Arabela que estudou a vida toda na UFRS.
“As políticas de ação afirmativa acolhem estudantes de grupos
subrepresentados, e a presença deles é muito importante para oxigenar a
universidade, para que ela pulse e represente a nossa sociedade como ela
é”, finalizou.
O teto de gastos
O professor de economia da UFF, Fábio, argumenta que o Banco Mundial
trabalha em cima da lógica de um “orçamento fixo”, como a Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) aprovada ainda este ano pelo governo de
Michel Temer (PMDB) que limita os gastos públicos por 20 anos.
“Nesse caso, entra a questão do estado mínimo, da diminuição gradativa
das obrigações e deveres do Estado brasileiro. E com a aprovação da PEC
55 vem uma demanda grande por cortes cada vez maiores de recursos do
setor público. Se permitirmos isso, daqui a pouco nós vamos ver serviços
essenciais, que já estão sofrendo os efeitos dessa emenda, sendo
cortados também”, alertou a reitora da Unifesp, Soraya Smaili.
“É o pensamento de que nós temos um orçamento fixo e precisamos retirar
de alguma coisa para colocar em outra. Aí entra o argumento de que
precisamos tirar do ensino superior para investir no ensino básico”,
completou Fábio.
Apesar de ainda existir grande disparidade entre o gasto com aluno no
ensino básico e superior, dados do Inep/MEC mostram que desde 2000 a
diferença do investimento reduziu. Os últimos relatórios referentes a
2014 indicam que enquanto foram destinados R$ 21.875 (aumento de 6,6%)
para cada estudante no ensino superior ao ano, os alunos da educação
básica - infantil e fundamental - custaram R$ 5.935 (aumento de 206%).
De acordo com o último relatório da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) lançado este ano, no Brasil são
investidos, por ano e aluno do ensino superior público, apenas US$
3.439, enquanto no Chile são US$ 4.325, na França, US$ 9.825, Alemanha,
US$ 12.826, Coreia do Sul, US$ 8.159, e quando se tratam dos países
nórdicos europeus, como Noruega e Dinamarca, o patamar fica acima de US$
20 mil.
“É claro que precisamos melhorar muito ainda, mas é importante frisar
que universidade não é só a docência, a boa universidade dá ensino em
diferentes níveis e pesquisas. E, além disso, você tem toda a
retribuição para a sociedade. É natural que o gasto seja maior. Isso é
assim no mundo todo”, comentou Fábio, completando: “Precisamos encontrar
recursos para manter o ensino superior e aumentar o gasto com educação
básica. A lógica desse relatório e do governo atual é de não gastar
nenhum centavo a mais em educação”.
“Toda universidade pública possui custos com hospitais [que atende o
entorno local], restaurantes universitários com descontos ou subsídios
para alunos de baixa renda - os ditos "bandejões" ou RUs - museus,
rádios, salários de aposentados e laboratórios para pesquisa. As
privadas no Brasil, predominantemente voltadas para o lucro, não fazem
pesquisa, ou seja, produção de conhecimento novo. Inovações, vacinas,
dentre outras descobertas que auxiliarão a sociedade, são desenvolvidas,
sobretudo, nas universidades públicas, que o Banco Mundial quer
desfigurar”, completou Wilson.
“O efeito de mercantilização seria enorme. A prioridade seria destinar
recursos para cursos baratos e com retorno imediato. Sendo assim,
idiomas raros e faculdades de arte, para quê? E isso é importante a
longo prazo. Além do mais, quem garante que se reduzirem os recursos com
educação superior, eles irão para educação básica?”, questionou Fábio.
As instituições privadas
“O Banco Mundial, por meio de consultores e analistas, vem tentando
fazer isso desde a ditadura militar, fim dos anos 1960 para 1970,
justamente quando começam a construir o que eu chamo de ‘ensino superior
privado lucrativo’”, disse o professor Wilson Mesquita de Almeida.
O pesquisador investigou a privatização e a concentração de capital no
ensino superior. Em seu livro Prouni e o ensino superior privado
lucrativo em São Paulo: uma análise sociológica, ele faz uma análise do
universo do ensino superior privado brasileiro, que transita de pequenas
faculdades isoladas para grandes universidades, até chegar aos fundos
de investimento, com ações altamente cotadas na Bolsa de Valores.
“São instituições voltadas para obter lucro com a educação. Fato bem
diferente do que ocorre nos países desenvolvidos, onde não houve
estímulo estatal para a existência de empresários donos de
universidades”, pontua.
O que acontece, segundo ele, não é nada diferente do que ocorre no
capitalismo brasileiro: as universidades ligadas aos grandes grupos
educacionais – controlados pelos fundos de investimento – dispõem de
poder financeiro para comprar universidades grandes, médias e
pequenas, concentrando o mercado.
“Resultado disso: a proporção caminha em direção a quase 80% das
vagas da graduação brasileira sendo oriundas do setor privado, já que
esse setor é formado em sua quase totalidade por instituições
lucrativas, composto por uma minoria de instituições comunitárias e
fundações privadas, com caráter público [como a PUC]”, disse.
A reitora da Universidade Federal de São Paulo, Soraya Smaili, fez coro
ao professor acrescentando: “Existem hoje grandes conglomerados de
universidades que são quase cartéis. O grupo Kroton, que se juntou à
marca Anhanguera, e comanda outras tantas menores, tem 1,5 milhão de
estudantes. E a universidade pública com esse perfil sócio-econômico
atrapalha muito o negócio dessas instituições privadas. Porque são
recursos que, eventualmente, estariam de olho nesse filão do mercado e
não conseguem acessar. Além disso, apesar de todas as críticas, a
universidade pública ainda é muito procurada em qualidade. Todos os
membros da elite brasileira se formaram na pública, e não é à toa”,
disse.
“O primeiro capítulo do meu livro mostra como essas universidades
isoladas nos anos 1970 foram transformadas em grandes grupos hoje
[Estácio, Kroton, etc] com apoio e recurso estatal e com ajuda dos
consultores do Banco Mundial”, completou Wilson.
Sistema tributário
Os especialistas vão além, e sugerem, no lugar do que foi proposto pelo
relatório do Banco Mundial, uma reforma no sistema tributário do país.
“Os ricos devem pagar, sim, pelas universidades públicas, mas não
através da mensalidade, e sim por um sistema tributário mais justo. A
mensalidade apenas não basta. Só ela não seria suficiente para manter
tudo que a universidade agrega”, disse Arabela.
Segundo pesquisas do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a
parcela assalariada do país é responsável, atualmente, por 71,38% do
montante de impostos, contribuições e taxas. Só o pagamento de impostos
consome 32% da renda dos 10% mais pobres, enquanto sobre os 10% mais
ricos, são 21%, e sobre os chamados super-ricos, que representam 0,05%
da população, 6,7% da renda.
Enquanto isso, a predominante fonte de renda dos milionários
brasileiros, os lucros e dividendos, são isentos de tributação e somam
um montante de R$ 231 bilhões anuais, de acordo com dados da Receita
Federal. Entre os países da OCDE, além do Brasil somente a Estônia
oferece esse tipo de isenção tributária ao topo da pirâmide. Nos países
mais desenvolvidos, segundo a organização, a tributação sobre o
patrimônio e a renda corresponde a cerca de 2/3 da arrecadação.
Só essa conclusão viola o princípio da progressividade tributária,
segundo o qual o nível de tributação deve crescer com a renda. A
conclusão é de um artigo publicado em dezembro do ano passado pelo
Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG),
vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Diante deste quadro, especialistas da área econômica indicam que o
combate à concentração de renda deve estar aliado à realização de uma
reforma tributária que permita tratamento isonômico aos contribuintes.
“Uma família pobre paga 40% de imposto em luz, e não importa se ela
mora em uma casa pequena ou em um palacete. Eu acho que essa é a
discussão mais importante. As grandes fortunas são muito protegidas”,
completou Arabela.
“Quando você lê ou ouve as pessoas dizendo que é preciso acabar com a
gratuidade do ensino superior público porque é regressivo, você apela
para algo poderoso, que é a justiça social. O que me incomoda é que esse
argumento aparece nessa instância, mas é esquecido em outras, como o
nosso sistema tributário que é ruim, e pesa mais para as camadas mais
pobres da população. Ou seja, existe uma série de outros mecanismos que
poderia aumentar o nosso orçamento. E por que faríamos isso? Porque
estamos preocupados como justiça social, não é?”, questionou Fábio, que
vê a reforma tributária como condição primordial para discutir qualquer
mudança na educação.