CARTA DE BAURU – 30
ANOS
Há 30 anos, aqui em Bauru,
denunciamos o papel de agentes da exclusão designado aos trabalhadores de saúde
mental; afirmamos a defesa intransigente dos direitos humanos e da cidadania
dos chamados loucos; compreendemos que a nossa luta faz parte da luta por uma
transformação social ampla e verdadeira; reafirmamos o manicômio como mais uma
forma de opressão da sociedade. Uma escolha foi feita e decidimos a nossa
direção: rumo à uma sociedade sem manicômios!
Movidos pela alegre energia de um
tempo tão fecundo, quando a democracia brasileira se afirmava nos movimentos e
nas ruas, seguimos fielmente o rumo desejado. Tomando a palavra, as pessoas em
sofrimento psíquico defenderam seu direito de viver, trabalhar, conviver e
criar nos espaços das cidades; organizados em movimento social, trabalhadores,
estudantes, usuários e familiares sustentam unidos, desde então, a Luta
Antimanicomial.
Cientes de que a nossa causa era
justa, fomos incansáveis ao lutar por ela. Construímos o projeto de lei
antimanicomial, e trabalhamos por sua aprovação no Congresso Nacional. No
desafio da implementação do SUS, construímos passo a passo, com efetiva
participação social, expressas em quatro Conferências Nacionais, uma nova
Política Nacional de Saúde Mental. Realizamos marchas, manifestações,
passeatas, ofertando à sociedade brasileira o alegre sabor da liberdade ainda
que tam tam.
Descontruindo o modelo asilar,
reduzimos significativamente os leitos em hospitais psiquiátricos, exercendo no
território o cuidado em liberdade. Inventamos novos serviços e redes, arranjos
e experiências, que gritam com voz forte a potência deste cuidado. Combatemos a
cada dia o manicômio em suas várias formas, do hospital psiquiátrico à
comunidade terapêutica, incluindo o manicômio judiciário; e a lógica manicomial
que disputa o funcionamento de todos os espaços do viver. Gravamos, em corpos e
mentes, a certeza de que toda a vida vale a pena, a ser vivida em sua
pluralidade, diversidade e plenitude. Temos orgulho das conquistas que
garantiram a transformação da atenção pública em saúde mental em todos os
quadrantes de nosso país: milhares de CAPS, ações na atenção básica, o Programa
de Volta Pra Casa, novos modos de trabalhar e produzir, múltiplos projetos de
arte, cultura, economia solidária, geração de trabalho e renda e protagonismo.
Assumimos o desafio de construir
uma política de cuidado às pessoas em uso de álcool e outras drogas, como uma
política para as pessoas, antiproibicionista e pela legalização do uso, na
perspectiva da redução de danos, produzindo uma atenção intrinsicamente
conectada com a defesa de seus direitos.
Com a exigência do cuidado para a
infância e juventude, enfrentamos a medicalização das crianças e a
criminalização dos jovens. A presença protagonista de crianças e adolescentes e
seus familiares nesse Encontro é um marco histórico e indica a importância da
continuidade e avanço das políticas públicas de saúde mental intersetoriais
para crianças e adolescentes na perspectiva do cuidado sem controle, garantindo
seu direito à voz para a construção de uma sociedade livre de manicômios.
Cuidar da infância e da adolescência em liberdade é fundamental na nossa luta!
Nestes 30 anos, entretanto, o
mundo viveu a globalização e a hegemonia da ideologia neoliberal, produzindo
uma gritante desigualdade: 1% da população mundial tem mais riquezas que os
outros 99%. Isto conduziu a uma ruptura do pacto civilizatório contido na
Declaração Universal dos Direitos Humanos: quando os interesses do capital tudo
dominam, não há direito que se respeite nem vida que tenha valor. No Brasil, um
processo de redução das desigualdades sociais, iniciado nos anos 2000, foi
brutalmente interrompido pelo golpe de 2016; golpe que resultou, dentre tantos
outros efeitos deletérios, na ampliação do processo vigente de privatização e
na redução de recursos para as políticas públicas sociais, como moradia,
transporte, previdência, educação, trabalho e renda e saúde. Vivemos um
violento ataque ao SUS, com a diminuição do financiamento e a desfiguração de
seus princípios de universalidade, equidade e integralidade. Nossa democracia,
ferida, vive hoje sob constante e forte ameaça. Precisamos fortalecer a luta
por um processo de educação permanente, por nenhum serviço a menos, nenhum
trabalhador a menos e nenhum direito a menos.
Apesar desses graves retrocessos e
dos riscos crescentes, os efeitos destes anos de livre e amoroso cuidado são
indeléveis e duradouros. Acesa e viva, mantém-se a nossa disposição de lutar
contra tudo aquilo que é intolerável para a dignidade das pessoas e nefasto
para o seu convívio enquanto iguais: a exploração e a ganância, o manicômio e a
tortura, o autoritarismo e o Estado de exceção. Tecemos laços de afeto e de
solidariedade que nos acolhem na dor e nos protegem no abandono - sustentando o
delicado equilíbrio da esperança em nossos corações. Portanto, prosseguimos,
com o mesmo empenho tenaz, na luta por uma sociedade sem manicômios.
Não podemos deixar de frisar o
avanço do conservadorismo e da criminalização dos movimentos sociais,
defendemos a diversidade sexual e de gênero, as pautas feministas, a
igualdade racial. Somos radicalmente
contra o genocídio e a criminalização da juventude negra, a redução da
maioridade penal, a intolerância religiosa e todas as formas de manicômio, que
seguem oprimindo e aprisionando sujeitos e subjetividades. Apontamos a
necessidade urgente de articulação da Luta Antimanicomial com os movimentos
feministas, negro, LGBTTQI, movimento da população de rua, por trabalho,
moradia, indígena entre outros, a fim de construirmos lutas conjuntas.
A conjuntura presente, que
intensifica o risco das conquistas duramente obtidas, exige um posicionamento
que reafirme e radicalize nossos horizontes. É preciso sustentar que uma
sociedade sem manicômios reconhece a legitimidade incondicional do outro como o
fundamento da liberdade para todos e cada um; que a vida é o valor fundamental;
que a sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, socialista e
anticapitalista.
NENHUM PASSO ATRÁS: MANICÔMIO
NUNCA MAIS!
POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS!
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Bauru, dezembro de 2017
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