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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Copa do Mundo de 2014: Justiça manda Corinthians, Odebrecht e mais dois devolverem R$ 400 milhões

Quinta, 15 de fevereiro de 2018
Estádio foi inaugurado em 2014 e sediou a cerimônia de abertura da Copa do Mundo

Jornal do Brasil
e Portal ContextoExato

Um repasse milionário de dinheiro público, captado por uma empresa privada especialmente criada para este fim e com capital social no valor de R$ 1 mil, embasado em garantias incertas e que beneficiou, além de um time de futebol, uma construtora contratada sem licitação. Assim pode ser resumido, conforme sentença proferida pela 3ª Vara Federal de Porto Alegre, o negócio realizado entre a Caixa e a SPE Arena Itaquera S/A que possibilitou o empréstimo de R$ 400 milhões do BNDES para a construção da Arena Itaquera, estádio do Corinthians. Na decisão publicada no último dia 5, a juíza federal Maria Isabel Pezzi Klein determinou o ressarcimento do valor à Caixa.

A ação popular foi ajuizada em 2013 por um advogado gaúcho que questionava a legalidade do financiamento e pleiteava a sua nulidade. Segundo o autor, teria sido criada, em 2009, uma linha de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no valor total de R$ 4,8 bilhões para a construção e reforma de estádios da Copa de 2014. Os repasses seriam realizados por meio do Banco do Brasil. Onze projetos teriam sido aprovados, com exceção do que envolvia a Arena Itaquera. A negativa teria ocorrido em razão da ausência das garantias exigidas.

A Caixa, entretanto, teria aceitado financiar o projeto do estádio corintiano, assumindo os riscos da contratação como agente financeiro repassador. Para o advogado que ingressou com a ação, o negócio fechado em 2013 – quase três anos após o fim do prazo inicialmente previsto para as contratações – seria lesivo ao patrimônio público. Sob a sua ótica, a decisão do banco público teria sido tomada sob influência política, já que teria ocorrido fora do prazo previsto, por agente financeiro que não era o inicialmente autorizado e sem a exigência de sólidas garantias de que o empréstimo seria pago.

Em suas defesas, Caixa Econômica Federal (CEF), Sport Club Corinthians Paulista, Construtora Norberto Odebrecht S/A, Sociedade de Propósito Específico Arena Itaquera S/A e Jorge Fontes Hereda (presidente do banco público na época da assinatura do contrato) defenderam a regularidade da transação. Afirmaram a existência de garantias suficientes à satisfação do crédito e que a dívida, então de R$ 475 milhões, estaria sendo renegociada com base em receitas futuras. Alegaram, ainda, que o Tribunal de Contas da União (TCU) já teria analisado e aprovado a contratação.

Durante a tramitação processual, a magistrada requereu uma série de documentos aos réus e a órgãos como o TCU e o Ministério Público Federal, que acompanhou o processo. “Oportuno enfatizar que não se espera do Autor Popular, quando protocola sua inicial, a juntada de um acervo probatório tão consistente quanto o que se exige nas demais ações reguladas pelo Código de Processo Civil. Até porque o cidadão, via de regra, não tem chances reais de acessar a documentação pertinente. Foi o que aconteceu, neste caso, em que o pedido de informações feito pelo Autor Popular, perante a CEF, sequer obteve resposta”, esclareceu.

Responsabilidade dos bancos públicos

Em uma análise extensa e minuciosa do acervo probatório coletado, a magistrada abordou as diversas irregularidades que permearam o financiamento. Ela iniciou comentando o papel do BNDES e da Caixa enquanto instituições financeiras responsáveis pelo gerenciamento de verbas públicas e valores destinados à implantação de políticas sociais, ressaltando sua consequente subordinação aos princípios, valores e regras de regência do Direito Público. Ela também levantou questionamentos sobre a própria natureza do Programa BNDES ProCopa Arenas, que permitiu o deslocamento de expressivas somas de programas sociais relevantes, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), Seguro-Desemprego e PIS/PASEP, para obras em estádios pertencentes a clubes de futebol. “A princípio, não existe previsão legal que autorize concessões de verbas públicas para este segmento”, observou.

Em relação ao caso específico da Arena Itaquera, ela chamou a atenção para o fato de o empréstimo de R$ 400 milhões ter sido concedido a uma empresa – SPE Arena Itaquera S.A. – cujo capital social estimado, na época, era de R$ 1 mil. Outro ponto ressaltado foi sua composição societária, constituída pelas empresas Jequitibá Patrimonial S.A e Odebrecht Participações e Investimentos S/A (O.P.I S/A), sendo esta última integrante do Grupo Odebrecht S/A, mesmo proprietário da construtora contratada para realizar a obra.

“Na realidade, o dinheiro captado junto a CEF, pela SPE Arena Itaquera S.A., foi destinado não propriamente à contratação originária dos serviços de engenharia da Construtora Norberto Odebrecht S.A, na medida em que, em novembro de 2013, quando foi firmado formalmente o contrato de financiamento entre a SPE Arena Itaquera S.A. e a CEF, a obra já estava praticamente pronta (mais de 90% concluída). Contudo, o numerário foi repassado à referida construtora que, ao que tudo indica, contava com o referido aporte financeiro para concluir as obras relativas ao estádio de futebol do Sport Club Corinthians Paulista”, ponderou. Segundo informações prestadas pelo TCU, inicialmente orçado em R$ 899 milhões, o valor total do projeto ultrapassou R$ 1,2 bilhões.

Modelo de negócios baseado em expectativas

Sobre as garantias oferecidas e aceitas pela Caixa, a juíza considerou que consistiam, em grande parte, de expectativas, que dependiam do êxito da exploração comercial da Arena Itaquera para sua concretização. “O modelo de negócios (project finance) consistiu em conceder financiamento à SPE Arena Itaquera S/A, para que esta comprasse as quotas sêniores da Arena Fundo de Investimentos Imobiliários – FII -, sendo este Fundo responsável pela construção, operacionalização e comercialização da Arena Itaquera. A operacionalização e a comercialização da Arena gerariam receitas para o FII, que distribuiria o resultado para seus quotistas, prioritariamente, ao quotista sênior, ou seja, a SPE Arena Itaquera S/A, que pagaria o financiamento a CEF”, explicou.

As projeções de faturamento, entretanto, não se concretizaram. Dos R$ 400 milhões emprestados, pouco mais de R$ 14 milhões teriam sido amortizados em quatro anos. Com juros e correção, o saldo devedor, atualizado em maio de 2017, chegou a R$ 475 milhões.

O contrato ainda incluía como garantias a emissão de notas promissórias e a alienação fiduciária e hipoteca de imóveis do Parque São Jorge, já que o terreno sobre o qual foi erguida a Arena Itaquera pertence ao Município de São Paulo, tendo sido apenas cedido para uso do Sport Club Corinthians. “Quanto à consolidação da propriedade fiduciária de um dos bens imóveis dados em garantia, bem como a excussão da hipoteca do outro, do mesmo modo, correspondem a argumentos que parecem ignorar que as dívidas bancárias crescem exponencialmente se comparadas à valorização dos bens imóveis, em um mesmo período de tempo considerado. Até porque os imóveis padecem de inevitáveis depreciações com o passar do tempo”, avaliou a juíza.

Outra possibilidade em caso de inadimplência era o repasse, para a Caixa, de ações da SPE Arena Itaquera e da Arena Fundo de Investimento Imobiliário. “Não menos surpreendente é a afirmação de que, caso se torne inviável uma renegociação do passivo, a CEF poderá consolidar a propriedade fiduciária das ações da SPE Arena Itaquera S.A. e das Quotas do Fundo de Investimento, passando, ela mesma, a administrar o estádio de futebol”, comentou. “Tal hipótese, na realidade, corresponde a uma proposta de assunção, pela CEF, de uma imensa dívida impaga, acrescida da responsabilidade de devolver ao BNDES todo o valor emprestado, ficando com o prejuízo. Dizer que ela poderá, se quiser, administrar o próprio clube de futebol e, desse modo, reaver as importâncias despendidas, corresponde a um argumento totalmente dissociado da realidade jurídica que rege a ação da CEF”, disse.

Ausência de licitação

Outro ponto abordado foi a necessidade de licitação prévia para a escolha das construtoras que executariam as obras financiadas com dinheiro público. “É graças à existência do certame, que convoca os interessados na realização de obras, que a sociedade organizada pode ter acesso às informações relativas ao dispêndio de recursos públicos”, lembrou. “Fico aqui me perguntando, como seria possível, no contexto do Direito Público brasileiro, contratar uma obra, injetando nela verbas públicas, sem que tenha havido a fase pré-contratual da licitação, a qual é exigida por qualquer um dos diplomas que regula as contratações com o Poder Público ou contratações que envolvam o aporte de recursos públicos”, declarou.

Aparência de legalidade

A magistrada concluiu que a transferência de recursos foi ofensiva aos princípios, valores e regras elementares do Direito Público, causando prejuízos decorrentes do mau uso de recursos públicos federais. “Ao fim de quatro anos, apenas, pequena parcela do principal foi paga, restando uma imensa dívida impontual, em evidentes prejuízos a CEF. E, é claro, porque estamos falando de recursos públicos federais, a maior prejudicada é, sem dúvida, a União Federal”, pontuou.

A simples anulação do contrato, entretanto, não foi considerada a melhor solução, tendo em vista que o dinheiro foi efetivamente repassado e utilizado apesar de todas as irregularidades contratuais. “Não existe, assim, nenhuma possibilidade, no âmbito do Regime Jurídico Administrativo, de se aceitar o referido contexto contratual, muito menos a sua continuidade pela via de novos pactos e aditivos, já que este, desde a sua origem, ignorou toda uma sólida e necessária legislação de Direito Público, tratando a negociação, como se ela estivesse ocorrendo entre agentes privados”, mencionou.

Ana Maria determinou a aplicação da cláusula contratual que prevê o vencimento antecipado da dívida, condenando a Construtora Norberto Odebrecht S/A, o ex-presidente da CEF Jorge Fontes Hereda, a SPE Arena Itaquera S/A e Sport Club Corinthians Paulista ao pagamento solidário do valor consolidado do débito, em favor da CEF. O prazo fixado foi de 10 dias após a certificação do trânsito em julgado da ação. Cabe recurso ao TRF4.