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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 27 de março de 2018

Polícia prende e juiz solta? O que acontece nas audiências de custódia

Terça, 27 de março de 2018
Da

27/03/18  Por Maria Tereza Cruz

Criadas para garantir direitos essenciais, as audiências de custódia são chamadas de ‘festa da impunidade’ por políticos, jornalistas e parte do Judiciário e do MP. A Ponte assistiu a 40 dessas audiências e conta o que viu

Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
“Edna, você foi para a delegacia quando era menor?”
“Sim”, responde.
Edna mantém a mesma postura de quase todos os que se sentam na cadeira destinada aos réus em uma das salas de audiências do Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste da cidade de São Paulo. Cabeça baixa, mãos unidas pelas algemas, dedos entrelaçados na tentativa de uma segurança. Diante de seus olhos, ela enfrenta duas miras: o olhar do juiz e a câmera que grava todas as audiências, disposta bem na direção dela.
“Por quê?”, prossegue o juiz.
“Furto.”
“E não aprendeu ainda, Edna?”
“Aprendi.”
“Quando?”
Silêncio.
Edna foi pega pela terceira vez furtando. Dessa vez, foram um xampu, um condicionador e outros produtos de higiene, que totalizam 93 reais em uma dessas grandes redes de farmácia. Negra, ela veste uma calça legging, chinelos e uma blusa de frio. O juiz não perguntou a idade dela, mas aparenta menos de 30 anos. A renda, segundo ela, não é regular, porque faz faxina semanalmente na casa da amiga da mãe em Guarulhos, na Grande SP.

Distante pouco mais de cinco metros da ré, está o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo. Branco, de gravata e terno, está em um nível mais alto que os demais presentes: o promotor, o escrivão, o defensor e os policiais militares. O julgador prossegue:
“Sabe que furto em cima de furto, uma hora vira uma pena grande…”
“Sei, sim.”
“Eu não vou deixar a senhora presa por causa de um xampu, de um condicionador. Eu vou te liberar, mas eu não quero mais te ver aqui, combinado?”
Na mesma quarta-feira de setembro, além de Edna, outro caso de furto passa pela audiência de custódia. Joana, de 20 anos, também negra, usa sandálias, que mostram as unhas dos pés pintadas de dourado. A acusação? Furtar um pacote de café avaliado em 9 reais.
Joana conta, de cara, que está desempregada. Antes da entrada de Joana, o juiz Marcos Vieira de Moraes havia dito, embora a ficha dela fosse extensa, “com vários furtos e até roubo [que, diferente do furto, é praticado com uso de violência ou ameaça grave]”, dessa vez havia sido um pacote de café e não seria nada razoável mantê-la presa. “Eu tenho procurado avaliar e considerar a periculosidade e tipo de crime para tomar uma decisão. Não é pelo delito em si, mas existe o custo social de uma prisão como essa”, pondera Vieira de Moraes, ao explicar que a jovem tem filhos para criar.
“Sua prisão será considerada irregular e você será colocada em liberdade”, sentencia o juiz. “Boa sorte, Joana”.
Ela chora e coloca as mãos, com certa dificuldade por causa das algemas, no rosto. Fica com a cabeça levemente abaixada, mas os olhos, vivos, fitam o teto. Agradece a Deus.

Audiências de custódia no banco dos réus

Edna e Joana voltaram para casa na mesma quarta-feira de setembro, após ficarem frente a frente com juízes que avaliaram seus casos e concluíram que elas poderiam aguardar em liberdade até serem julgadas. Até três anos atrás, é provável que ambas aguardassem presas durante semanas ou meses até terem o primeiro contato com uma autoridade judicial.
O instrumento que as livrou de permanecerem presas antes mesmo de o Estado decidir se eram culpadas ou inocentes é a audiência de custódia, introduzida em 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo.
A medida serve para analisar se determinada prisão é legal, evitando o encarceramento desnecessário e optando, por exemplo, por conceder liberdade provisória até que a pessoa seja julgada, atendendo a uma prerrogativa do artigo 5º da Constituição, a da presunção de inocência. Segundo o CNJ, o juiz pode decidir pela prisão ou pela eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de medidas cautelares — ou alternativas, como comparecimento periódico ao fórum ou multa — e também tem condição de avaliar “eventuais ocorrências de tortura ou maus tratos, entre outras irregularidades”.
A implementação das audiências de custódia está prevista em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizada em 1969, na Costa Rica, e que gerou um documento que ficou conhecido como Pacto de São José. O artigo 7 do documento versa sobre o “direito à liberdade pessoal” e o item 6 diz que “toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais”.
O primeiro estado a começar a realizar as audiências foi São Paulo, em 2015, por meio de acordo assinado entre o CNJ, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito à Defesa (IDDD) para incentivar a difusão do projeto para todos os estados do País. De acordo com dados mais recentes, até julho do ano passado, mais de 258 mil audiências tinham sido realizadas: em 55,32% dos casos o flagrante foi convertido em prisão preventiva e 44,68% resultaram em liberdade. No total, 12.667 pessoas relataram que houve violência no ato da prisão e em pouco mais de 10% dos casos houve encaminhamento social/assistencial, por considerar, por exemplo, o uso de drogas ou a situação de vulnerabilidade.
Desde que foram implantadas, as audiências de custódia vêm sendo atacadas por grupos ligados a políticos de extrema-direita, programas policialescos de tevê e setores do próprio Judiciário e do Ministério Público. Para esses grupos, as audiências de custódia institucionalizaram uma situação em que “a polícia prende e a justiça solta”.

Uma reportagem do programa Brasil Urgente, da TV Band, veiculada em julho de 2016, chama as audiências de custódia de “festa da impunidade” e ouve apenas vozes contrárias à medida: o jurista Luiz Flavio Gomes declara que “quando o Estado falha e solta essas pessoas, a população vê o Estado como inimigo” e a promotora Mildred de Assis Gonzalez afirma que as audiências são uma manobra criada por um pacto entre Justiça e Poder Executivo para para diminuir a superlotação dos presídios.
A família Bolsonaro é outra voz crítica da medida. “O que o policial precisa, além de uma boa retaguarda jurídica, é de juízes que tratem bandidos como bandidos”, afirma o presidenciável Jair Bolsonaro (PSC) em um de seus vídeos. Seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSC-RJ), é autor do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 317/16, que propõe invalidar a resolução do CNJ que instituiu a realização das audiências de custódia. No texto da proposta, o deputado afirma que as audiências “agravaram a sensação de impunidade ao estabelecer uma inversão de valores e papéis em que os investigados passaram a ser, prioritariamente, os agentes policiais responsáveis pelas prisões, e os criminosos de fato foram travestidos de vítimas em potencial, independente da natureza ou gravidade da infração penal praticada”. A última tramitação do projeto data de dezembro do ano passado, quando foi devolvido ao relator,  Delegado Éder Mauro (PSD-PA), após passar pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara.
Os ataques vêm também de dentro do Judiciário. Em 2017, promotores lançaram um manifesto intitulado “Você está sendo enganado!”. Assinado por representantes do Ministério Público Estadual, Federal e Militar — a maior parte do Rio Grande do Sul —, um juiz de direito e nove advogados, o texto faz um apelo contra o desencarceramento e o que chamam de “bandidolatria”. Em um trecho do manifesto, os signatários afirmam o seguinte: “Você pensa que eles se preocupam com sua vida, mas criaram uma audiência que resultou no aumento daqueles casos em que o marginal perigoso é imediatamente solto e faz outras vítimas nos dias seguintes. É O QUE ELES CHAMAM DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA”.
Para conhecer a realidade das audiências de custódia além dos números dos relatórios e das polêmicas de internet, a Ponte Jornalismo acompanhou 40 audiências, na última semana de julho e na primeira semana de setembro do ano passado. E conta o que viu.

O ritual das audiências de custódia

O relógio marca 14h15. O sol não deu as caras nesse 6 de setembro. Entro no Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo. Detector de metal, abro a bolsa, passo por revista. Na entrada ao lado, de pessoas comuns, uma fila gigantesca de histórias. Desço a rampa e sigo as placas indicando onde acontecem as audiências de custódia. Assim como do lado de fora, está nublado do lado de dentro. A atmosfera é tensa. Todos que estão chegando, de uma forma ou de outra, infringiram a lei.
Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
Em um corredor monocromático iluminado por lâmpadas frias estão dispostas seis salas que funcionam simultaneamente. Desde agosto, as audiências passaram a acontecer, além de em dias úteis, também aos sábados.
Os primeiros presos começam a chegar por volta das 10h. No período da tarde, as sessões vão até um pouco depois das 17h. Àquela hora, 14h30, a movimentação já é intensa no corredor. A cerca de 2 metros de cada porta, do lado de fora, há um detido algemado com as mãos para frente, olhando para a parede e escoltado por um ou dois policiais militares. Ele aguarda a defesa, em esmagadora maioria feita por defensores públicos. Das 40 audiências acompanhadas pela Ponte Jornalismo, apenas em 3 o indiciado constituiu advogado próprio. E isso é um reflexo claro do público das audiências de custódia: negro, jovem, periférico, reincidente e desempregado. No último relatório de monitoramento das audiências de custódia divulgado pelo IDDD, o instituto aponta justamente que a maioria dos acusados não conta com defesa particular e acaba precisando do trabalho da Defensoria Pública. Os dados se referem a análise em São Paulo, onde em 80% dos casos acompanhados, a defesa foi realizada pela Defensoria e, em apenas 2%, por advogado.
O mesmo estudo aponta a necessidade de melhorar a relação entre acusado e defensor, já que esse contato acontece da seguinte forma: de posse da cópia do flagrante, o defensor sai para encontrar o cliente e tem algo como 3 minutos para entender qual crime foi cometido. Não consigo acompanhar o diálogo todo, porque não me é permitido. Mas consigo ouvir, de soslaio, parte dele.
“O que aconteceu?”, interpela o defensor.
“Eu precisava comer, entrei no mercado, ninguém olhou, acabei pegando”, diz o acusado.
“Então você furtou mesmo o pacote de bolacha?”
“Sim, mas nunca tinha feito isso antes. Foi necessidade, doutor”.
Essas conversas curtas são o contato imediato da defesa com o acusado para tentar entender o que, de fato, aconteceu.
Acusado e defesa entram na sala e o juiz começa a audiência com a frase: “Boa tarde, fulano de tal, eu não estou aqui para julgar o que você fez. Estou aqui apenas para julgar se você deve ficar preso preventivamente ou responder ao processo em liberdade”.
A regra, segundo a Constituição Federal, em seu artigo 5º, é a liberdade. Uma pessoa é inocente até que se prove o contrário. Na prática, segundo dados mais recentes do Infopen, 40% dos presos são provisórios, ou seja, estão presos sem terem sido julgados.
Os que são levados para a audiência de custódia foram pegos em flagrante delito, ou seja, em um contexto no qual se configura a suspeita de cometimento de um crime. Por isso o termo “prisão em flagrante”. O juiz da custódia vai, a partir dos indícios apresentados — boletim de ocorrência, provas de acusação e defesa, oitiva do custodiado, MP e defensor — decidir se aquela pessoa será colocada em liberdade ou irá para a prisão. O magistrado não julga o mérito da questão, ou seja, não decide se o preso é culpado ou inocente. Os resultados possíveis são: relaxamento, que é quando o juiz considera o flagrante ilegal (porque a denúncia apresenta inconsistência ou mesmo por falta de provas, e, portanto, sem efeito); e liberdade provisória, ou seja, a pessoa não se livra da acusação e do processo e pode, caso cometa algum outro tipo de crime nesse período, ser presa, mas aguardará o julgamento em liberdade. Em muitos casos, o juiz pede, junto com essa decisão, uma medida cautelar, como comparecer ao fórum periodicamente ou ter que avisar a Justiça caso deixe a cidade por mais de 10 dias, por exemplo. Essa medida pode ser aplicada com ou sem fiança, ou seja, uma multa.
A prisão provisória pode ser flagrante, preventiva e temporária. Nas audiências de custódia, quando o juiz determina conversão de flagrante em prisão, ela é preventiva, ou seja, vai durar até que a pessoa seja julgada, conforme previsto no terceiro capítulo do Código de Processo Penal. A prisão temporária é regulamentada pela Lei 7.960/89. Com prazo de duração de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco, ela ocorre durante a fase de investigação do inquérito policial. É utilizada para que a polícia ou o Ministério Público colete provas para, depois, pedir a prisão preventiva do suspeito em questão. Não é uma opção nas audiências de custódia.
A prisão domiciliar consiste no recolhimento do acusado em sua residência, só podendo sair dela com autorização judicial. Por fim, há casos em que o juiz entende que o acusado não responde por seus atos por estar em uma situação de drogadição, por exemplo, ou mesmo por situação de vulnerabilidade social. Nesses casos, o magistrado libera o acusado e o envia para algum tipo de atendimento psicossocial, geralmente da administração municipal.
Pesam alguns fatores para que as decisões acima sejam tomadas. Dois e dois não são quatro em audiências de custódia. As avaliações de risco à sociedade, de reincidência, do tipo de crime do qual a pessoa é acusada, o contexto social, entre outras circunstâncias, são colocadas à mesa para que a decisão seja tomada.
Muitos estão descalços, outros de chinelo. Os que usam tênis estão sem cadarço. “Para evitar que se enforquem”, diz um policial, como em um cochicho, para mim. Alguns choram e, antes mesmo de o juiz começar, se declaram inocentes de todas as acusações.
Como em um script, as perguntas se repetem: “Você usa drogas?”, “Sofreu violência policial na hora do flagrante?”, “Tem endereço fixo?”, “Trabalha?”, “Por que fez isso?”, entre outras. A maioria tem endereço fixo. Alguns fornecem número de telefone de familiares quando questionados pelo juiz. A ficha corrida do custodiado é objeto de discussão e análise das partes.
Contudo, não cabe ao juiz julgar o motivo da prisão.

“O senhor fala português?”

“É do jeito que a rua traz”, me diz o juiz Rubens Pedreiro Lopes antes de mais uma audiência. Ele é um dos que compõem o Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), responsável pela realização e gestão das audiências de custódia. “Diferente das varas, em que o réu vem do CDP [Centro de Detenção Provisória, para presos que aguardam julgamento], arrumadinho, trocado, de banho tomado, aqui é do jeito que foi pego”.
Questiono se, pela experiência dele, a determinação do próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de que o flagrado deve ser levado ao encontro do juiz em até 24 horas tem sido cumprido. “A média não passa de 24 horas”, avalia. “Depende bastante da distância. Tem delegacias que trazem no mesmo dia. A da Casa Verde [13º DP], por exemplo, faz o flagrante às 9h, às 14h o cara já está aqui. São Paulo é dividido por 8 seccionais, que é delegacia de trânsito, onde o bonde que traz para cá passa. Entre o início da lavratura do flagrante até o final, existe um lapso considerável. O tráfico, por exemplo. Os policiais apresentam o flagrado para a autoridade policial. Eles precisam fazer um laudo no IC [Instituto de Criminalística] para provar que aquilo é droga, porque você não pode instaurar inquérito sem materialidade. Isso pode levar mais de 3 horas. Mas dificilmente chega a passar de 24 horas”, explica.
Marcelo, morador de rua, negro. Está descalço e por isso posso ver os pés muito sujos e as unhas podres. Quase não tem dentes. Exala um odor de muitos dias – talvez semanas ou meses – sem banho. Apresenta dificuldade para falar. A acusação é bastante básica dentre moradores de rua e usuários de crack: furto. Contudo, acena negativamente com a cabeça quando questionado se usa drogas. Parece confuso, porque na sequência, também acenando sim ou não com a cabeça, responde ao juiz que já frequentou o Cratod (Centro de Referência em atenção Psicossocial), um programa do município que existe para redução de danos na região da Luz.
Já foram mais de dez perguntas feitas pelo juiz, todas respondidas apenas com acenos de cabeça, sem palavras. Por fim, o juiz Rodrigo Tellini pergunta:
“O senhor fala português?”
“Ohurm… uchinhãr… ahrm…”, o réu responde. Apenas grunhidos.
O juiz decide liberar o homem da prisão e faz um encaminhamento para que retorne ao Cratod a fim de encontrar auxílio médico. Por entender que existe uma situação de vulnerabilidade e que o crime não envolveu grave ameaça, dispensa a prisão preventiva. Quando o acusado sai, o juiz me conta que no boletim de ocorrência havia a indicação de que o delegado não havia conseguido estabelecer qualquer diálogo inteligível com o flagrado.
Luciano tem apenas 21 anos, mas parece ter mais de 30. É morador de um albergue na avenida Zachi Narchi, na zona norte de São Paulo, mas acabou perdendo a vaga porque se ausentou da apresentação no horário determinado por dois dias. Não voltou para o abrigo, porque teve uma recaída no crack. Juiz pede encaminhamento para tratamento em algum Caps ou Cratod. “Não tem como mandar esse cara para a prisão. Não faz sentido. Ele está doente e precisa de atendimento de saúde e não de cadeia”, afirma o juiz.
Fernando não sabe quantos anos tem. Afirma ser usuário de crack e álcool e diz que está com duas doenças: sífilis e hepatite — muito comuns em população de rua. Para se ter uma ideia, um morador de rua tem 28 vezes mais chance de contrair doenças como hepatite e tuberculose, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Era a quinta visita à audiência de custódia — e a segunda com o mesmo juiz — em seis meses. “O último B.O. [Boletim de Ocorrência] eu assinei contrariado”, reclama Fernando. Ele vai para a preventiva.
“É uma situação de vulnerabilidade. É a quinta vez que ele passa na custódia só esse ano. A gente sabe que a situação desse cidadão é muito mais social do que prisional, mas a gente também precisa brecar aqui, dar uma resposta. A gente não tá aqui julgando para a sociedade, mas a gente tem que fazer essa ponderação”, explica um outro magistrado da DIPO.
Três casos, decisões distintas, ponderações feitas à luz do que a lei oferece como instrumento e uma única certeza: Marcelo, Luciano e Fernando voltarão mais um sem número de vezes às audiências de custódia.

O agressor de Odete 


O olho direito roxo chama atenção de todos que estão na sala. Nilson é branco e tem 32 anos, mas aparenta ter 50. As mãos inchadas denotam que bebe com frequência. Tinha, inclusive, bebido na data do crime.
“Bebi só um pouquinho, né, doutor?! Já tinha jantado.”
Analfabeto, faz bico de servente de pedreiro, vive com a esposa e tem dois filhos, mas desconhece a idade deles. Nilson foi preso em flagrante, porque bateu na companheira. Na delegacia, foi enquadrado por violência doméstica.
“O que aconteceu?”, indaga o juiz.
“Eu bati nela na frente da polícia. Esse foi meu erro. Eu errei nisso. Eu não deveria ter feito isso na frente da polícia.”
“Teve violência policial?”
“Não. É que foi assim…”
“E esse olho?”
“Isso foi ela que fez.”
“Ela quem?”
“A Odete.”
“O senhor está dizendo que a Odete, senhora sua esposa, te bateu?”
“Sim, senhor.”
Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
O promotor pede o enquadramento na lei Maria da Penha, solicitando, dessa forma, uma medida protetiva em favor da vítima. Não entende que haja necessidade de converter o flagrante de Nilson em preventiva. A Defensoria acompanha o que o Ministério Público fala sem qualquer objeção.
O juiz concede liberdade provisória e explica:
“Senhor, Nilson, é o seguinte: eu vou deferir a liberdade provisória ao senhor, mas com algumas condições: a primeira é que o senhor não poderá sair de cidade, nem viajar para fora da capital por mais de dez dias sem pedir autorização lá no Fórum de São Miguel, que é onde vai correr o seu processo. Vai ter que pedir pro juiz e explicar os motivos. O senhor por enquanto também não vai poder voltar para a residência da Odete. O senhor vai ter que manter um afastamento de 300 metros, não pode se comunicar com ela, não pode ligar, mandar e-mail, Whatsapp, cartinha, em nenhuma hipótese. Se o senhor descumprir alguma dessas determinações, o senhor poderá voltar para a prisão. O senhor vai pedir para alguém pegar as suas coisas. Se vocês se reconciliarem e você voltar para a casa amanhã ou depois, eu não tenho como fiscalizar. Mas, cuidado: se houver uma nova discussão e a polícia for acionada, não tem desculpa, o senhor vai ficar preso.”
A liberdade provisória sem pagamento de fiança concedida a Nilson para casos de violência doméstica é uma tendência. Analisando os meses do ano passado, com poucas variações, entre 75% e 78% dos casos o flagrante é convertido em liberdade provisória sem qualquer pagamento de fiança. Geralmente, se for reincidente na agressão contra a mulher, o juiz entende pela conversão em preventiva. Mas, nesse caso, o magistrado considerou que a liberdade provisória combinado a uma medida protetiva para a vítima caberiam melhor.
As mulheres são minoria e a maior parte delas está envolvida em furto ou tráfico. Os juízes ponderam se são mães e isso acaba pesando na decisão, ainda mais se admitem que a subsistência do filho depende única e exclusivamente delas. Ainda sobre o recorte de gênero, os crimes contra a mulher que aparecem são estupro e violência doméstica. No mês de setembro, por exemplo, segundo dados internos do Tribunal de Justiça, das 1915 audiências realizadas, 42 diziam respeito a agressão contra mulher. Apenas 9 flagrantes foram convertidos em prisão preventiva. Os outros 33 foram beneficiados pela liberdade provisória sem fiança. No caso de estupro, no mesmo mês aconteceram 9. Em um dos casos, o juiz relaxou o flagrante e outro foi liberado sem pagamento de fiança.

A filha que ficou presa

“Inventaram coisas aí”, diz a moça loura, branca, antes mesmo de sentar.
O juiz ignora e segue o rito de todo início de audiência:
“Você mora com quem?”
“Com minha mãe e meu irmão.”
“Você tem filhos?”
“Tenho um filho, dois anos e sete meses, mas não tenho condição de criar.”
“Estudou até que série?”
“Segundo grau.”
“Você trabalha?”
“Não trabalho, porque acabei de sair de uma clínica.”
Aos 32 anos, Renata é alcoólatra e passou pela segunda internação, que durou um mês e quinze dias. Ao ser perguntada se usa drogas, não reconhece a bebida como tal e nem os remédios que toma, como Diazepam, complexo B e Tiamina. Renata foi presa em flagrante, acusada de ferir o irmão e tentar cortar o pescoço da própria mãe com um caco de vidro. Na versão dela, foi a mistura da bebida com esse coquetel que provocou um surto. Contudo, ela nega que tenha tentado assassinar a mãe.
“Quem te internou?”, pergunta o juiz.
“Meus irmãos, minha família.”
“Além desse irmão…”
“Tem mais dois. A minha família é um pouco conturbada, doutor. Eu não tenho culpa.”
“A sua família?”
Ela começa a chorar.
“É. Eles são viciados.”
“A sua mãe é viciada?”
“Ela fuma muito e bebe cerveja.”
“Maconha?”
“Cigarro. Mas mesmo assim, né, doutor? A minha mãe tem um senhor que leva ela todo final de semana para tomar cerveja. Meu irmão chega e coloca música funk alta.”
Renata conta que é uma vendedora muito experiente, embora esteja desempregada, e diz que foi bem tratada pelos policiais.
“Me trataram muito bem, até porque eles sabem, né? O jeito da pessoa… eu tenho esse problema com álcool, mas não sou uma mulher, assim, que fala gíria.”
O juiz interrompe e pergunta do relacionamento dela com os irmãos. Renata, então, começa a falar de uma irmã mais nova, não mencionada até então, que seria evangélica e que certamente iria acolhê-la. Diz que está determinada a se converter à religião e se tratar de uma vez por todas:
“Quero ter uma nova vida.”
O promotor lê a acusação de homicídio tentado e lesão corporal. Pede a conversão do flagrante em prisão preventiva:
“A indiciada teria com um caco de vidro tentado acertar o pescoço da mãe, em região vital, e golpeado o irmão na perna duas vezes. Por causa disso, entendo que qualquer medida cautelar é insuficiente, visto o histórico de violência que a mãe…”
Renata interrompe:
“Não é verdade. Isso é mentira.”
“Eu peço que você se cale, agora não é hora de falar, agora você vai ouvir”, repreende o juiz.
“Faz apenas dois meses que Renata avançou na mãe com uma faca. Por causa disso, entendo que é preciso mantê-la presa”, conclui o promotor.
O defensor destaca que há um contexto de violência doméstica e conflito familiar, mas ressalta que a indiciada é primária e nunca se envolveu com atividade ilícita, sendo assim pede medidas protetivas para a mãe dela. Em menos de dois minutos, a decisão está tomada:
“Eu converto a prisão em flagrante em preventiva.”
“Mas por que, doutor, se eu não fiz isso?”
“A senhora vai ter oportunidade de dizer isso para o juiz que vai julgar o seu caso. Por enquanto a senhora vai permanecer presa. Tenha uma boa tarde.”
Diferente de Nilson, enquadrado na Lei Maria da Penha e liberado porque o juiz entendeu que ele não oferece risco, Renata, na avaliação do magistrado, poderia, sim, matar a mãe se houvesse uma terceira tentativa.
“Tinha um laudo dela de alcoolismo, mas nada que apontasse uma necessidade de internação. Aqui dificilmente a gente consegue resolver, porque a gente não tem muitos documentos. Às vezes vem familiar, advogado constituído do indiciado e traz algum documento novo que, por exemplo, prova que ela tem uma filha e que é capaz de cuidar dela, comprova o endereço e a gente pode reavaliar a decisão. Isso pode acontecer, sim”, confidencia a mim, depois que Renata sai da sala, o juiz que presidia a sessão.

O peso das algemas

No portal do CNJ, há estatísticas de cada estado mostrando que, de uma forma geral, há mais prisões preventivas do que liberação de acusados. Chama atenção o número de prisões preventivas no Rio Grande do Sul, que chegam a 87%. Já na Bahia é o contrário. Os juízes decidiram pela liberdade em mais 61% dos casos. No Amapá, um cenário bem semelhante: 57,86%.
Em 2017, de acordo com dados do Tribunal de Justiça de São Paulo, foram realizadas 22.542 audiências de custódia. Em 1.738 casos, houve relaxamento do flagrante. 9.742 pessoas foram liberadas provisoriamente sem fiança, 1.599 foram liberadas mediante pagamento de alguma multa. Foram para a preventiva 9.464 pessoas e 2.216 foram encaminhadas para algum tipo de programa assistencial. A taxa de conversão do flagrante em prisão preventiva é de 49,3% e de liberdade é de 50,7%. O mês de março do ano passado foi o que teve mais audiências: 2.388 chegando a 79 sessões por dia.
Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
Ilustração feita durante audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda | Crédito: Junião/Ponte
Um traço em comum a boa parte das audiências observadas pela Ponte foi a imposição de algemas aos réus. Isso apesar de uma determinação do Supremo Tribunal Federal, a súmula vinculante 11, de 10 anos atrás, ter estabelecido o uso de algemas apenas quando houver resistência ou risco à integridade física de quem foi preso ou de terceiros.
No entanto, internamente entre os juízes, havia uma discussão sobre abolir o uso do instrumento. Segundo o juiz Marcos Vieira, os magistrados da DIPO, em setembro, começavam a discutir e reavaliar o uso de algemas, primeiro pela previsão legal, segundo porque, na visão dele, se mostrava “como um exagero, já que a pessoa chega ao Fórum repleta de mecanismos de vigia e, inclusive, com escolta policial”.
No levantamento do IDDD, o cenário observado pela reportagem em São Paulo se mostra em números: com exceção dos estados Pernambuco e Rondônia, o uso de algemas é regra absoluta. Em São Paulo e Rio de Janeiro, os índices chegam a 100%, em Minas Gerais de 99,8% e no Distrito Federal de 98,6%.

Os meninos do Jardim Pantanal

Eles entram algemados um ao outro. São quatro os meninos, todos com olhar assustado.
Três negros, um branco. Todos, com exceção do branco, exibem tatuagens. Três deles estavam apenas com meias. Um com Havaianas.
Augusto começa falando. Conta que é ajudante de pedreiro e ganha mensalmente de 800 a 900 reais. No dia 12 de fevereiro, foi preso em um desmanche de carro. O alvará de soltura expedido na época deixava claro: não poderia ser pego novamente. Não poderia reincidir. Isso não aconteceu. Disse também que estudou até o primeiro colegial e que fuma maconha. Ele fala em alto e bom som o endereço: uma rua perto da linha do trem no jardim Pantanal, zona leste de São Paulo.
Elton tem 26 anos e não trabalha. Estudou também até o primeiro colegial, na mesma escola de Augusto. Já foi preso por tráfico e saiu no dia 10 de outubro de 2015.
Já Roberto, 18 anos, mora com a mãe na última casa da mesma rua que Augusto. O pai ele nunca conheceu. Conta ao juiz que estudou até a 4ª série e diz que fuma maconha. Passou pela Fundação Casa porque era aviãozinho (pequeno traficante) ali no bairro.
O quarto é Gerson, que vive com a esposa. Estudou até a sétima série e, assim como Roberto, passou pela Fundação Casa na mesma época. Eles foram pegos juntos. O endereço é o mesmo que o dos outros três. Assemelham-se também na falta de oportunidade e na infância provavelmente difícil no bairro campeão de alagamentos na cidade de São Paulo. Os meninos do Jardim Pantanal viram, ao longo da vida, os sonhos, assim como as ruas do bairro, naufragarem na falta de oportunidade e “nas escolhas erradas”, como um deles disse ao juiz em certo momento da conversa. Dois deles, além de vizinhos, dividem a ficha de antecedentes.
Elton me olha disfarçadamente. Eu fico constrangida com aquele olhar, porque, de certa forma, por mais que me esforce, o meu olhar observador de jornalista não está imune do julgamento moral. Imediatamente penso nos privilégios que tive na vida que me colocam em absoluta posição de vantagem com relação a Elton: ao contrário dele – e dos outros três, diga-se — concluí o ensino médio, ainda tive oportunidade de cursar uma boa faculdade e nunca passei nem perto da atual Fundação Casa — que na minha época ainda era Febem — a não ser para fazer reportagens. Tenho desejo de saber mais dos sonhos que ficaram pelo caminho desses meninos do jardim Pantanal, mas não posso perguntar nada naquele momento. O artificial rio que corta o jardim Pantanal toda vez que chove me faz lembrar do rio do lugar onde eu nasci, que tem até música em homenagem, que é fonte de trabalho para população ribeirinha e onde ainda é possível brincar e nadar. Fiquei pensando que os meninos do Jardim Pantanal não conseguiam nadar no rio pluvial, porque provavelmente estavam ajudando a família a retirar os móveis que não foram arrastados pelo alagamento. Também não conseguiram, porque em alguns dias de chuva estavam encarcerados na Fundação Casa cumprindo medida socioeducativa. Fiquei pensando na expressão “curva de rio” usada para definir um local onde tudo de ruim para. Fiquei pensando quantas curvas de rio existiram na vida desses meninos e quanto pneu e lixo em vez de peixe conseguiram pescar. Voltei a pensar no Jardim Pantanal, para onde fui também apenas como repórter, quando a voz do juiz interrompe o fluxo de pensamento.
O juiz lê a acusação que pesa sobre os quatro: todos foram enquadrados por roubo de carro e receptação. Eles foram pegos na garagem da casa de Gerson, durante o desmanche de um veículo que estava sendo buscado pelo dono há dois meses.
“Nós estávamos mesmo desmanchando, mas não roubamos o carro, não, doutor”, diz Elton.
Os outros três fazem positivo com a cabeça.
Não ser primário pesou e o juiz decide que Augusto e Elton vão para a preventiva. Os dois se olham e baixam a cabeça.
Roberto e Gregório têm uma sorte melhor: são liberados com a condição de comparecerem ao fórum mensalmente para assinar um documento e ter o acompanhamento da justiça para ver “se vão andar na linha”, como diz o juiz. Os dois trocam um olhar de cumplicidade. Roberto quase sorri, Gregório baixa a cabeça.
Os policiais conduzem os quatro ainda algemados para finalizar o processo: expedir o alvará de soltura para dois deles e encaminhar para o CDP os outros dois.

Tortura passa batido

Além de evitar prisões cautelares desnecessárias, a audiência de custódia também foi criada para detectar situações de tortura e outros abusos. A pergunta sobre tortura em delegacia ou violência policial no momento do flagrante foi feita em 100% das audiências acompanhadas pela Ponte. Apenas um rapaz, preso por receptação de peças roubadas, disse que foi agredido por um policial. Contudo, o juiz perguntou se ele poderia identificar o PM. O custodiado, então, hesitou. E o que poderia ser denúncia ficou por isso mesmo.
Numa conversa informal entre uma audiência e outro, um dos juízes do Dipo deixou claro que, mesmo nas raras ocasiões em que um réu tem coragem de denunciar agressões, a palavra dele é vista com reserva: “Eu tenho o cuidado de, quando o preso denuncia agressão na hora da prisão, de fazer o máximo de perguntas, de entender, por exemplo, se a pessoa tem possibilidade de reconhecer o autor da agressão, de entender como é que ocorreram essas agressões, também para ver se os exames correspondem a essa agressão”.
Em recente apresentação do estudo Audiências de custódia – Panorama Nacional, feito pelo IDDD, uma explicação pode ajudar a elucidar esse baixo índice de registro de violação de direitos no momento da detenção e mesmo no atendimento da ocorrência: para uma denúncia virar investigação, o flagrado precisa dizer o nome e sobrenome do agente do Estado que cometeu a violência. Só depois disso a denúncia vai para o sistema dos tribunais de justiça, chamado Sistac. Durante o estudo do IDDD, além de acompanhar as audiências, o instituto fazia entrevistas com os detidos ao final da audiência e cruzou com os resultados do Sistac. No Ceará, por exemplo, segundo dados do IDDD, houve relato de violência em 30,2% das prisões. Para o Sistac, foram só 6%. Em São Paulo, foram 23,98% contra 7%. E, no Rio de Janeiro, foram 34,25% contra 2%.
Um detalhe importante destacado por Carolina Costa Ferreira, líder do Grupo de Pesquisa “Criminologia do Enfrentamento” e doutora em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília (UnB), que participou do levantamento,  é que no Sistac só constam os casos que geram algum tipo de protocolo, ou seja, que vão para a investigação. “Isso também acaba por aumentar essa invisibilidade com relação aos casos de tortura. O sistema só considera que houve violência se a vítima souber o nome e sobrenome de quem a praticou”, disse à Ponte.
Notei, ainda, outro fator que compromete qualquer crítica à atuação da polícia: a presença ostensiva de policiais durante todo o processo da custódia. Os presos são trazidos por policiais e ficam o tempo todo escoltado por policiais, alguns que podem, inclusive, ter participado da sua detenção. Durante a conversa com o juiz, há, no mínimo, a presença de um PM na sala de audiência.
Vi algumas audiências em que havia um policial por custodiado dentro da sala, ou seja, enquanto quatro pessoas passavam pela avaliação do magistrado, quatro policiais se mantinham dentro da sala, em uma posição de clara vantagem em relação ao detido: em pé, armado, ante uma pessoa algemada, sentada, de cabeça baixa e, muitas vezes, com roupas puídas e sem nem vestir um calçado.

O playboy da Liberdade

O choro chegou antes do emissor. Entram na sala um jovem algemado, cabeça baixa, cabelo loiro com algumas entradas. Ao lado dele, um policial e três advogados. O defensor público é dispensado. Aos 36 anos, o educador físico João foi pego com maconha logo depois de sair de casa com a namorada. Ele havia comprado a droga um dia antes em uma biqueira na favela de Heliópolis, na zona sul. Ele assumiu o B.O. e a namorada foi liberada do flagrante.
Professor de futebol para crianças e técnico de manutenção de elevadores nas horas vagas para complementar renda, mora em um apartamento próprio com os pais na Liberdade, região central de São Paulo.
“Você tem filhos?”
“Tenho. Um de 13 anos.”
“Você já foi processado anteriormente?”
“Já. Quando eu tinha uns 20 anos, por causa de nota falsa, não lembro o ano…”
“2002”, interrompe o juiz Marcos Vieira, ao ler a ficha de antecedentes.
“Você é usuário de drogas?”
“Sim. Uso maconha.”
“Com relação aos fatos, o senhor quer falar alguma coisa?”
“Sim. Foi assim: eu peguei minha namorada segunda-feira no trabalho, passamos no Heliópolis e compramos as coisas, e fomos para a casa dela que ela mora na Vila Alpina, ali perto de onde a polícia nos parou. Aí a gente acordou, saímos da casa dela, fizemos um cigarro e fomos fumando. Tinha um policial no meio da rua que nos parou. Eu logo disse: “estou fumando, senhor”. Ele falou: ‘tem coisa no carro?’. Eu mostrei e ele disse: ‘só isso?’. Aí fomos todos para a delegacia e fui enquadrado em tráfico de…”
E começa a chorar.
“Mas quanto você comprou? Quantos gramas de maconha? Aqui tá dizendo maconha e haxixe…”
“Isso, haxixe também. Eu fumo haxixe. Não sei quantas gramas certas… eu sei que gastei uns mil reais nisso.”
“Mas, João, se você é usuário de drogas, sabe quanto é. Você sabe se foi 200 gramas, 300 gramas…”
“É menos, é pouco. De haxixe tinha uns 7 gramas, porque eu fumo bastante, senhor. Desde que eu tenho 17 anos de idade.”
O advogado intervém e alega que a pesagem que consta no boletim de ocorrência inclui a quantidade da droga acrescido do peso do recipiente onde estava acondicionada.
“Tinha no máximo 12 gramas.”
“Você está dizendo que não é traficante e que a droga era para seu uso próprio?”
“Então, você está negando que seja traficante e está reconhecendo que estava com drogas e era para uso próprio?”
O rapaz chora. O advogado dá um leve soquinho no braço dele, como que o estimulando a terminar logo com aquilo tudo.
“Sim”, diz, envergonhado.
João continua a chorar enquanto a promotora lê a acusação:
“Trata-se de auto de prisão em flagrante pela suposta prática do crime inscrito no artigo 33 da lei de 11.343/2006. Tendo em vista a quantidade de drogas e as circunstâncias do crime entendo que não há indícios que autorizem a conclusão pela traficância. Dessa forma, em virtude do que consta nos autos, em que pese a materialidade, entendo que é o caso de relaxamento da prisão.”
“Meritíssimo juiz”, afirma o defensor, “indo ao encontro das alegações da representante do MP, trata-se de um usuário, de um dependente químico, de forma que eu acompanho o que foi dito e sou pelo relaxamento…”
Indiciado interrompe o próprio advogado:
“Eu posso ir para uma clínica, ir pra internação…”
“…de forma que eu acompanho e sou pelo relaxamento da prisão. E, oportunamente, tem o registro do veículo que ele dirigia…”
O juiz interrompe:
“Isso é outro momento, em que terá oportunamente para apresentar para o juiz. A questão aqui é a seguinte: eu vou acolher a manifestação da douta promotora e vou relaxar a prisão em flagrante por tráfico, pelo contexto, pela quantidade, por não ter investigação prévia que não te apontava como traficante e não ter ato de mercancia [comércio]. Não tinha dinheiro em seu poder. Isso é uma avaliação preliminar, ou seja, pode ser que o promotor natural entenda que tem indícios para enquadrar no tráfico. Como tem o delito do artigo 28, eu vou relaxar o flagrante, mas vou impor o seguinte: comparecimento aos autos do processo, proibição de se ausentar mais de dez dias e eventual mudança de endereço deve ser comunicada ao juízo.”
“Mas eu posso viajar?”
“Pode, mas se você for se ausentar mais de dez dias é bom pedir autorização, porque às vezes você pode ter que ser ouvido.”
“Porque eu tenho um sítio em Jacareí, minha mãe tem uma casa em Paraty…”
“Só comunicar. E outra coisa, João, toma cuidado. Se você for pego em outro contexto, com outra quantidade, dá pra te segurar no tráfico.”
“Não, não, não… eu aprendi.”
“Outra coisa: essa avaliação é provisória. Pode ser que o promotor analise e diga: ‘ah, apesar de a promotora da custódia ter relaxado, acho que dá pra colocar no 33. E você pode ser denunciado….”
Ele nada diz, chora, respira fundo e apenas faz sinal positivo com a cabeça. Um dos três advogados de defesa toma à frente e fala do registro em carteira do cliente, que vai juntar nos autos. O outro advogado da um beijo na cabeça dele, dá três tapinhas no ombro e diz:
“Pronto, vai dormir em casa hoje.”
O outro aconselha:
“Você ainda tá muito agitado, não fala mais nada não. O pior já passou, então segura.”
Todos saem da sala. Eu me dirijo ao juiz Marcos Vieira:
“Doutor, [essa é] diferente das que a gente está acompanhando…um ponto fora da curva”, questiono.
“Diferente, sim. É que o tráfico, se você olhar de uma forma preconceituosa, você vai cometer injustiças. Você tem gente em condição mais precária que pode ser como ele. Você pega um morador de rua com 5 parangas e não pode enquadrar como tráfico, no meu ponto de vista, seria uma injustiça. O que precisa ter, e que a promotora foi bem na manifestação, é o seguinte: a quantidade por si só é insuficiente. Quando a quantidade não é grande, a pessoa tem uma condição melhor, não tem ato de venda, não tem quantidade de venda, não tem denúncia anônima, você não pode presumir que é traficante.

Condições piores

Fico pensando sobre a expressão “condição melhor”. Lembro da audiência do Marcos, 33 anos, que tinha acompanhado em outra sala alguns dias antes. Não havia droga com ele, mas ficou preso preventivamente, porque foi pego em um quarto de hotel daqueles da rua Helvétia, na Luz, região do centro apelidada de “cracolândia”, com uma balança de precisão e alguns bons reais no bolso.
Também lembro do Vinicius, morador do Itaim Paulista, na zona leste, que foi pego com 2 quilos de maconha. Ele assumiu que estava repassando, porque estava desempregado e tinha que comprar leite para o filho pequeno, mas se indignou quando foi questionado sobre a atividade de tráfico: “Não sou traficante”, disse. O problema é que Vinicius, dois meses antes, esteve na audiência de custódia pelo mesmo motivo e foi liberado, porque era primário. Agora, já não era mais e, por isso, foi preso preventivamente.
E ainda teve mais uma audiência de tráfico que me marcou: a dos amigos Gabriel e José. O primeiro, dono de um salão de festas e que vive de aluguel de duas casas. O outro é artesão, confecciona chinelos bordados. Os dois são primários.
“Estava tendo a festa no meu salão e eu desci, porque ouvi um barulho”, diz Gabriel, tentando se retirar da cena do crime.
A promotoria lê a acusação que pesa sobre os dois: artigos 33 e 35 da lei 11.343/2006, ou seja, tráfico de drogas e associação ao tráfico.
“De acordo com o presente expediente verifica-se a regularidade no flagrante e na prisão”, lê o promotor. “Portavam uma quantidade de drogas que estava no veículo para posterior embalagem e venda. Ambos estavam associados para o tráfico de drogas, havia uma clara divisão de tarefas e a versão por eles apresentada não merece credibilidade. Ambos aguardavam pelo caminhão. Alia-se o fato da quantidade de drogas encontrada, já que eram 221 tabletes de maconha totalizando a quantia de 242 quilos do referido entorpecente”.
E pede a conversão do flagrante em preventiva.
Gabriel tem advogado particular, José está sendo defendido pelo defensor público. O advogado afirma que faltam provas de que aquela droga pertencia ao cliente. Ambos pedem que os dois sejam liberados mediante alguma medida cautelar a ser decidida pelo juiz – multa, tratamento, enfim.
“Vocês são primários, têm bons antecedentes, mas, rapaz, com 240 quilos de maconha, ninguém se livra da cadeia. O processo de vocês corre na 4ª Vara é lá que vocês vão apresentar a defesa”, diz o juiz Rodrigo Tellini. E acrescenta: “Boa sorte”.
(*)  Essa reportagem especial foi financiada por você. A equipe envolvida foi remunerada com os valores do projeto de financiamento coletivo Fortaleça a Ponte