Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 29 de abril de 2018

Jânio Ferreira Soares, no Bahia em Pauta: O Rio São Francisco, mesmo com milhões de metros cúbicos sem oxigênio, manda de Paulo Afonso um recado de vida e resistência

Domingo, 29 de abril de 2018
Do Blog Bahia em Pauta, editado pelo jornalista Vitor Hugo Soares
Resultado de imagem para rIO sÃO fRANCISCO EM pAULO aFONSO
Paulo Afonso: cânion do Rio São Francisco.

Resultado de imagem para Janio Ferreira Soares em A Tarde
 CRÔNICA                         
Se meu rio falasse
Janio Ferreira Soares
Nesses tempos de ministros do STF comprometidos até o talo da toga – e ainda por cima falando um juridiquês que mais confunde do que explica -, melhor ouvir o CD do baiano Giovani Cidreira ou então a voz desse pedaço de rio agonizando em minha frente, que se falasse diria algo mais ou menos assim.
“Olá, antes de entrar no assunto que me trouxe até aqui, gostaria de me apresentar, embora a maioria já deva ter ouvido falar de mim e de meus remansos. Me chamo Francisco, assim como o Papa, o ex-sogro de Carlinhos Brown e o santo gente boa nascido em Assis, na Itália, cujo nome inspirou o meu.
Apelidos não tenho, apesar de muitos que nunca me viram mais largo insistirem em me chamar de Velho Chico, provavelmente querendo uma intimidade que jamais lhes dei, até porque, se o próprio ribeirinho que me vê todo santo dia nunca me tratou assim, por que diabos um estrangeiro haveria de?
Oficialmente tenho 516 anos, mas, como naquela música que gosto muito e que a moçada canta em minhas margens quando luas me lampejam, eu nasci há uns 10 mil anos atrás e, do mesmo modo que o velhinho sentado na calçada com uma cuia de esmola e uma viola na mão citado por Raul no começo da canção, não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais.
De extensão eu tinha 2.700 Km, mas com os desvios que alongaram meu curso e duplicaram meu tormento, perdi as contas. De afluentes devo continuar com os 168 que os livros de geografia cravam, embora só uns 36 me irriguem pra valer. Já de velhas promessas de me revitalizarem ou coisa assim, ah!, seu moço e dona moça, isso é conversa pra Nego D’água dormir.
Como vocês sabem, broto lá em Minas e passeio por alguns estados do Nordeste, onde, nos bons tempos pré-barragens, despencava nos cânions de Paulo Afonso que nem trovoada de verão e depois seguia até bater de frente com o oceano, numa peleja bonita de se ver. Já hoje, completamente poluído pelas Baronesas que se alimentam dos esgotos que caem em minhas águas (e separado pelas hidroelétricas de Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Complexo Moxotó e Xingó – que me dividiram em várias partes tornando-me uma espécie de esquartejado líquido), chego tão desnutrido no final de minha jornada que o mar já penetra alguns quilômetros dentro do meu leito, trazendo com ele mariscos, pescadas e robalos que, queira Deus, convivam em harmonia com minhas traíras e surubins.
Agradeço do fundo de meus peraus sua atenção e me despeço dizendo que mesmo com milhões de metros cúbicos sem oxigênio, partes de mim ainda resistem à espera de algum milagre ou, quem sabe, de ventos do Norte mais constantes, que pelo menos possam provocar um rodízio na minha agonia. Agora me dê licença que os meninos já vão começar a sessão Beatles. Fui!”.
Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afonso, na beira baiana do Rio São Francisco.
===========
O Gama Livre recomenda também a leitura de: 

Os mercadores de sonho e a transposição do rio São Francisco. Bem social, direito de todos, transformado em bem econômico, direito de alguns. Entrevista especial com Dom Luiz Flávio Cappio

Vídeo publicado no Youtube em junho de 2017

Uma campanha contra a transposição do Rio da Unidade Nacional. A música é cantada por Carlos Pita: Nas águas do São Francisco