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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 10 de julho de 2018

Como socializar o setor bancário

Terça, 10 de julho de 2018

Do


Por

Eric ToussaintPatrick Saurin

Como os capitalistas demonstraram a que ponto são capazes de cometer delitos e incorrer em riscos – dos quais recusam assumir as consequências – com o único fim de aumentar os seus lucros, como as suas actividades implicam periodicamente um custo extremamente pesado para a colectividade, como a sociedade que queremos construir tem de ser orientada para a procura do bem comum, da justiça social e da reconstituição duma relação equilibrada entre os seres humanos e as outras componentes da natureza, é absolutamente necessário socializar o sector bancário. Tal como propõe Frédéric Lordon, trata-se de realizar «uma desprivatização integral do sector bancário». [1]
Subtrair os cidadãos e os poderes públicos à manipulação dos mercados financeiros
Socializar o sector bancário significa: 
- expropriar sem indenizar (ou mediante uma indenização simbólica) os grandes accionistas (os pequenos accionistas devem ser indenizados); 
- atribuir ao sector público o monopólio da actividade bancária, com uma excepção: a existência de um sector bancário cooperativo de pequena dimensão (submetido às mesmas regras fundamentais do sector público); 
- definir – com participação cidadã – uma carta sobre os objectivos a alcançar e sobre as missões a cumprir, que permita pôr o serviço público de poupanças, de crédito e de investimento ao serviço das prioridades definidas segundo um processo de planificação democrática; 
- dar transparência às contas que devem ser apresentadas ao público, num formato compreensível; 
- criar um serviço público de poupanças, de crédito e de investimento, duplamente estruturado, tendo por um lado uma rede de pequenas implantações próximas dos cidadãos, e por outro lado organismos especializados, encarregados da gestão de fundos e do financiamento de investimentos que não sejam assegurados pelos ministérios que tutelam a saúde pública, a educação nacional, a energia, os transportes públicos, as pensões de reforma, a transição ecológica, etc. Os ministérios deverão ser dotados do orçamento necessário ao financiamento dos investimentos relevantes às suas atribuições. Os organismos especializados intervirão nos domínios e nas actividades que excedem as competências e esferas de acção dos ministérios, a fim de assegurar o bom funcionamento conjunto.

Imaginemos o que isto significa, em termos concretos: os bancos privados desaparecem, ou seja, após a expropriação (com indenização dos pequenos accionistas), os seus trabalhadores são reafectados ao serviço público bancário, mantendo os direitos de antiguidade, o salário (até um máximo regulado, a fim de limitar fortemente os salários demasiado elevados e aumentar os salários baixos, de forma a reduzir o leque salarial) e com melhoria das condições de trabalho (abandono do benchmarking [2] e das práticas de venda obrigatória). É posto em prática um novo sistema de contratação que respeite as normas de contratação dos funcionários públicos.


Bancos ao serviço dos cidadãos
Trata-se de pôr fim a uma situação em que abunda a concorrência de agências bancárias nas grandes metrópoles e faltam sucursais nas pequenas cidades, vilas e bairros populares; de desenvolver uma rede densa de agências locais, a fim de melhorar bastante o acesso aos serviços bancários e de seguros, com pessoal competente para responder às necessidades dos utilizadores, de acordo com as missões do serviço público. Ninguém poderá ser excluído do acesso ao serviço público bancário, que deve ser gratuito.
As agências locais de serviço público ficarão encarregues de gerir as contas correntes e receberão as poupanças dos utilizadores, que serão plenamente garantidas. As poupanças serão geridas sem incorrer em riscos; serão afectadas, sob controlo cidadão, ao financiamento de projectos locais e de investimentos de maior porte orientados para a melhoria das condições de vida, para a luta contra as mudanças climáticas, o abandono das energias nucleares, o desenvolvimento dos circuitos de proximidade, o financiamento do ordenamento do território com respeito rigoroso pelas normas sociais e ambientais, etc. Os aforradores poderão escolher os projectos que gostariam de financiar com as suas poupanças.
As agências locais concederão créditos isentos de risco às pessoas, às famílias, às pequenas e médias empresas (PME) e a estruturas privadas locais, a associações, colectividades locais e estabelecimentos públicos. Poderão afectar uma parte dos seus recursos a projectos de maior escala que os de nível local, naturalmente dentro do quadro de uma política concertada.


Bancos ao serviço da colectividade
O facto de as agências locais gerirem meios financeiros de volume considerável, para aplicação local ou para projectos mais vastos que serão apresentados de forma precisa (sendo estabelecido um calendário de programação e instrumentos de acompanhamento que permitam controlar com clareza o uso dos fundos e a boa execução dos projectos) irá facilitar o controlo dos diversos protagonistas.
Os projectos locais a financiar serão definidos de forma democrática, com o máximo de participação cidadã.
As agências locais terão igualmente o encargo de fazer contratos de seguros a pessoas colectivas e individuais.


Apoiar a transição para uma economia social, sustentável e ecológica
Por seu lado, os ministérios encarregados da saúde pública, da educação nacional, da energia, dos transportes públicos, das reformas, da transição ecológica, etc., deverão dispor de meios de financiamento provenientes do orçamento de Estado.
Instituições transversais especializadas intervirão nos domínios e nas actividades que excedam as competências e as esferas de acção de cada ministério. Competir-lhes-á assegurar missões específicas ou transversais definidas com participação cidadã, como no caso do abandono total do programa nuclear, incluindo o tratamento seguro dos desperdícios nucleares a longo prazo.
O sector bancário socializado permitirá reconstituir um circuito virtuoso de financiamento dos poderes públicos: estes poderão emitir títulos, que serão adquiridos pelo serviço público sem passar pelos ditames dos mercados financeiros.
Muitos aspectos do projecto que ficam agora por elaborar devem ser decididos colectivamente, estamos apenas na fase preparatória da montagem de um sistema completamente novo. Isto exige um ambicioso trabalho colectivo que ponha em cima da mesa ideias e propostas. É um trabalho que ainda mal começou.


Controlo cidadão a todos os níveis
Controlo cidadão: controlo exercido pelos trabalhadores, utentes, eleitos locais, representantes das pequenas, médias e microempresas, artesãos e outros trabalhadores independentes, delegados do sector associativo.
A este controlo cidadão junta-se o controlo exercido pelas autoridades de regulação bancária.
Preferimos a palavra «socialização» à palavra «nacionalização» ou «estatização» para indicar claramente a que ponto é essencial o controle cidadão, com partilha de decisões entre dirigentes, representantes dos assalariados, clientes, associações, eleitos locais, que vêm completar o controlo dos representantes das instâncias bancárias públicas nacionais e regionais. Por isso é preciso definir de maneira democrática o exercício de um controlo cidadão activo. Além disso é preciso encorajar o exercício de um controlo das actividades da banca pelos trabalhadores do sector bancário e a sua participação activa na organização do trabalho. É necessário que as direcções dos bancos emitam anualmente um relatório público da sua gestão, apresentando-o de forma transparente e compreensível. É preciso privilegiar um serviço de proximidade e de qualidade que rompa com as políticas de terceirização [recurso a serviços externos] actualmente praticadas. É preciso encorajar o pessoal dos estabelecimentos financeiros a assegurar à sua clientela um autêntico serviço de aconselhamento e erradicar as políticas comerciais de venda forçada.
A socialização do sector bancário e dos seguros e a sua integração nos serviços públicos permitirá: 
- subtrair os cidadãos e os poderes públicos à manápula dos mercados financeiros; 
- financiar os projectos dos cidadãos e dos poderes públicos; 
- dedicar a actividade bancária ao bem comum, tendo por missão, entre outras, facilitar a transição de uma economia capitalista, produtivista e prejudicial à economia social, para uma economia social, sustentável e ecológica.

Por considerarmos que a moeda, as poupanças, o crédito, a segurança dos saldos monetários e a preservação da integridade dos sistemas de pagamento têm a ver com o interesse geral, preconizamos a criação de um serviço público bancário por meio da socialização da totalidade das empresas do sector bancário e dos seguros.
Como os bancos são hoje em dia um instrumento essencial do sistema capitalista e de um modo de produção que saqueia o planeta, gera uma distribuição desigual dos recursos, provoca guerras, aumenta a pobreza, corrói a cada dia que passa os direitos sociais e ataca as instituições e as práticas democráticas, é essencial arrebatar o seu controlo e transformá-los em instrumentos úteis ao serviço da colectividade.
A socialização do sector bancário não pode ser vista como um slogan ou uma reivindicação auto-suficiente, graças à qual as administrações se dedicariam depois de terem entendido o seu sentido e bondade. Tem de ser concebida como um objectivo político a alcançar no quadro de um processo que envolve a dinâmica cidadã. É preciso não só que os movimentos sociais organizados (entre os quais os sindicatos) façam dele uma prioridade das suas agendas e que os diversos sectores (colectividades locais, pequenas e médias empresas, associações de consumidores, etc.) caminhem nesse sentido, mas também – e sobretudo – que os empregados e empregadas da banca sejam sensibilizados para o papel do seu ofício e para o interesse que teriam em ver os bancos socializados; que os utentes sejam informados no local onde se encontram (exemplo: ocupação de agências bancárias por toda a parte no mesmo dia), a fim de participarem directamente na definição do que deve ser a banca.


A socialização do sector bancário e o apoio popular, condições necessárias à mudança de modelo
Só as mobilizações de grande dimensão podem garantir que a socialização do sector bancário é realizada na prática, pois essa medida afecta o coração do sistema capitalista.
Se um governo de esquerda se abstiver de tomar tal medida, a sua acção não poderá provocar uma verdadeira mudança radical, necessária para acabar com a lógica do sistema capitalista e desencadear um novo processo de emancipação. A subtracção do sector bancário aos capitais privados é uma incontornável condição prévia à aplicação de um programa económico que rompa com o capitalismo e a sua lógica.
A socialização do sector bancário e dos seguros é um ponto fundamental de um projecto muito mais vasto, que inclui outras medidas que permitem desencadear a transição para um modelo pós-capitalista e pós-produtivista. Tal programa deveria ter uma dimensão europeia, mesmo que o seu arranque apenas partisse de um pequeno número de países. Esse programa incluiria nomeadamente o abandono das políticas de austeridade, a anulação das dívidas ilegítimas, a aplicação de uma reforma fiscal, juntamente com uma forte taxação do capital, a redução generalizada do tempo de trabalho (com contratações compensatórias e manutenção do salário), a socialização do sector energético, da água e da saúde, medidas para assegurar a igualdade entre homens e mulheres, o desenvolvimento dos serviços públicos e a protecção social, assim como a execução de uma política resoluta de transição ecológica.
Hoje em dia, a socialização integral do sistema bancário e de seguros é uma urgente necessidade económica, social, política e democrática.
Tradução: Rui Viana Pereira

Notas
[1] Frédéric Lordon, «L’effarante passivité de la “re-régulation financière”», in Changer d’économie, dos economistas aterrados, Les Liens Qui Libèrent, 2011, 242 p. Acrescentemos que a socialização integral do sector bancário é reconizada pelo sindicato francês Sud BPCE.
[2] benchmarking é um instrumento de vigilância cujos resultados, acessíveis a todos em permanência, são comparados continuamente através de uma classificação que estigmatiza os trabalhadores acusados de menor desempenho. É uma técnica de administração pelo stress, muito praticada nas grandes empresas, com vista a gerar uma competição malsã.
Eric Toussaint 
docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional. 
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011. 
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015. Após a sua dissolução, anunciada a 12/11/2015 pelo novo presidente do Parlamento grego, a ex-Comissão prosseguiu o trabalho sob o estatuto legal de associação sem fins lucrativos.

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