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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 5 de julho de 2018

MPF denuncia ex-agente do Doi-Codi por assassinato de militante cujos restos mortais não foram identificados por 47 anos

Quinta, 5 de julho de 2018
Do MPF
O militar e o legista que falsificou dados da necrópsia de Dimas Casemiro também são acusados por ocultação de cadáver
Reprodução de foto preto-e-branca mostra a vítima, Dimas Casemiro, quando jovem.
Dimas Casemiro iniciou-se na política ainda adolescente, no movimento estudantil em Votuporanga (SP). Ele foi assassinado em São Paulo, aos 25 anos de idade Foto: acervo Comissão da Verdade de São Paulo

O Ministério Público Federal denunciou o ex-suboficial do Exército, Carlos Setembrino da Silveira, pelo assassinato do dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes, Dimas Antônio Casemiro, em 17 de abril de 1971, em São Paulo. Também foi denunciado, por falsidade ideológica, o ex-médico legista Abeylard de Queiroz Orsini, que omitiu informações no laudo necroscópico da vítima.
Ambos os denunciados também são acusados por ocultação de cadáver. Segundo a denúncia do MPF, ambos contribuíram para o desaparecimento de Casemiro, enterrado como indigente no cemitério de Perus, na zona norte de São Paulo. Posteriormente, em 1975, os restos mortais da vítima foram exumados e enterrados numa vala clandestina, aberta em 1990, que ficou conhecida como a Vala de Perus. Os restos mortais que poderiam ser de Dimas foram indicados no mesmo ano, contudo, um resultado conclusivo, de um exame de DNA realizado por especialistas na Bósnia, só foi possível em fevereiro deste ano, quase 47 anos após o assassinato. 

Dimas era dirigente do pequeno grupo de oposição à ditadura Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), apontado pela repressão como responsável pelo assassinato do industrial Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragás, dirigente da Fiesp e um dos principais financiadores da Operação Bandeirante, o primeiro aparato extraoficial criado pela repressão para eliminar opositores. O órgão foi posteriormente substituído pelo Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna).

O assassinato de Boilesen aconteceu em 15 de abril de 1971 e a repressão o associou ao MRT e à Ação Libertadora Nacional (ALN), que teriam feito o justiçamento para retaliar o assassinato do dirigente do MRT Devanir José de Carvalho. 

Família torturada - Seguindo essa pista, o aparato repressivo se articulou para destruir o MRT. No dia 16 de abril de 1971, outros dois integrantes do grupo foram presos: o metalúrgico Joaquim Alencar de Seixas e seu filho, Ivan Seixas, ainda menor de idade. Também foram presas Fanny, esposa de Joaquim, e as filhas dele, Iara e Ieda. Toda a família foi torturada. 

Segundo o depoimento de Ieda ao MPF, ela foi levada por Setembrino, que integrava uma equipe de busca do Doi-Codi, em um carro descaracterizado com mais um agente da repressão. Ela foi forçada a participar de tal ação pois já havia estado no “aparelho” (imóvel usado por militantes políticos clandestinos) e poderia, na visão dos militares, ajudar os agentes do Doi a localizar a casa de Dimas. 

Apesar de ela ter sido levada ao aparelho por militantes do MRT vendada (uma medida de segurança para ela, em caso de prisão, e para a organização), Ieda sabia que o local era na Saúde. Ela relata que carros do Doi que estavam circulando pelo bairro localizaram o aparelho ao identificar Maria Helena, mulher de Dimas, brincando com o filho do casal na rua. Setembrino deu a volta com o carro e parou numa rua transversal à casa de Dimas, dando apoio a toda operação. 

Tiros nas costas - O agente que acompanhava o militar desceu do veículo e junto com outros militares mandaram Maria Helena e o filho para dentro da casa. O plano era matar Dimas assim que ele entrasse. Ao não ver a mulher na janela, o militante estranhou, pulou o muro e saiu correndo, sendo seguido pelos agentes, armados com fuzis e outras armas de longo alcance. 

Segundo a testemunha, pelo menos três tiros o atingiram nas costas e o dirigente do MRT, que estava apenas com um revólver calibre 38, caiu morto num monte de cascalho, ao lado do carro onde estava Ieda. A versão divulgada pela ditadura, no dia do tiroteio, foi a de que Dimas foi morto ao reagir à prisão.

O corpo de Dimas foi apresentado ao IML para a realização de exame necroscópico somente no dia 19 de abril, dois dias após o assassinato. Para o MPF, não é possível afirmar onde esteve o corpo neste intervalo. Na sua investigação, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos aventou a hipótese de que a vítima sobreviveu aos disparos e foi torturada entre 17 e 19 de abril. Contudo, o MPF requereu a elaboração de um contra-laudo ao IML, com base em reproduções das fotos do corpo feitas na época, mas a perícia não foi conclusiva quanto à tortura devido à má qualidade das imagens.

A requisição de laudo necroscópico da vítima foi distribuída para os legistas Orsini e João Pagenotto (já falecido). Apesar de o militante ter sido qualificado corretamente na requisição para elaboração de exame de corpo delito, o pedido foi assinalado com a letra T, de terrorista. Em vários casos em que a requisição de necrópsia foi sinalizada dessa forma, laudos omitiram ou forjaram informações e o acesso da família da vítima ao corpo foi dificultado. 

Laudo omite tiros - No laudo que Orsini e Pagenotto assinaram são omitidos os disparos que atingiram Dimas pelas costas. Para o procurador da República Andrey Borges Mendonça, autor da denúncia, a informação foi omitida “para ocultar a execução sumária da vítima. Isto porque é evidente que a versão de `resistência seguida de morte´ não se mostraria plausível se houvesse menção aos disparos, no mínimo três, que a vítima sofreu pelas costas”. 

O MPF cita na denúncia o processo que Orsini sofreu no Conselho Regional de Medicina de São Paulo, nos anos 90. O legista perdeu o direito de exercer a medicina, pois vários dos laudos que assinou, entre eles o de Dimas, continham omissões de dados ou informações falsas.

Além da ocultação de cadáver, que deve ser aplicada para ambos, o MPF requer que Setembrino seja condenado por homicídio qualificado por motivo torpe (a preservação do regime militar), enquanto Orsini deve ser condenado por falsidade ideológica em documento público, agravado pelo fato de o crime ter sido cometido para assegurar a ocultação e a impunidade do assassinato, bem como pelo motivo torpe (ocultar as graves violações aos direitos humanos ocorridas durante o regime autoritário).

Contra a humanidade - Esta é a 35ª denúncia oferecida pelo MPF visando a persecução penal de agentes do Estado ou pessoas a serviço do Estado que cometeram graves violações de direitos humanos na ditadura. 

Na cota de introdução da denúncia, o MPF esclarece que o assassinato de Dimas Casemiro ocorreu num contexto de sistemáticas violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar contra parte da população com o objetivo de manutenção da ditadura no poder. 

Neste contexto, são crimes contra a humanidade e sobre eles não recai a prescrição nem leis de anistia, como a brasileira, aprovada em 1979, em plena ditadura. Internacionalmente, leis como a brasileira são conhecidas como auto-anistias, pois o mesmo Estado que torturou e matou beneficia seus agentes com o perdão. 



A denúncia foi protocolada na Justiça Federal sob o número 0008031-41.2018.4.03.6181 e o caso foi distribuído para a 1ª Vara Criminal Federal. Para consultar o andamento do processo, acesse: http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais
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