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(Millôr Fernandes)

domingo, 9 de janeiro de 2022

Estados Unidos: Um ano de presidência de Joe Biden

Domingo, 9 de janeiro de 2022


8 de Janeiro por Eric Toussaint

Joe Biden, por Gage Skidmore, sob licença CC BY-SA 2.0. Para ver uma cópia da licença, consulte https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/?ref=openverse&atype=rich

Alguns/algumas comentaristas pensaram que a presidência de Joe Biden seria a ocasião de uma virada keynesiana nos Estados Unidos. As mesmas ilusões e esperanças haviam surgido no início da presidência de Barack Obama em 2009.

Em ambos os casos, a eleição ocorreu em uma época em que os EUA atravessavam uma grave crise que poderia levar o governo a adotar medidas fortes e iniciar uma virada após décadas de políticas neoliberais.

A administração de Barack Obama poderia ter aplicado medidas coercivas contra as grandes empresas e em particular contra os grandes bancos e fundos de investimento que foram em grande parte responsáveis pela enorme crise que estourou a partir de 2007-2008. Além disso, Barack Obama havia prometido uma profunda reforma do sistema de saúde, previdência social, aposentadorias e a implementação de uma reforma tributária com o objetivo de cobrar dos mais abastados, a começar pelos 1 % mais ricos, um pouco mais de impostos. Nada disto aconteceu.

No caso de Joe Biden, ele havia anunciado que pediria às maiores empresas e aos mais ricos que pagassem mais impostos, ele havia prometido medidas progressistas em termos de acesso a assistência médica, proteção social e um salário-mínimo por hora legal de 15 dólares…

Estas promessas lhe permitiram mobilizar uma parte do eleitorado que já não ia mais às urnas. No início de seu mandato, ele nomeou Bernie Sanders como presidente da Comissão de Orçamento do Senado, o que para alguns/algumas parecia ser um sinal da vontade de realmente implementar medidas progressivas. Outros/as, inclusivo eu mesmo, viram isso como uma forma de amordaçar Bernie Sanders.

Promessas não compridas

Após quase um ano no cargo, fica claro que as promessas de uma virada progressista para mais justiça social não foram cumpridas.

Muito rapidamente o salário-mínimo de 15 dólares foi abandonado, e o salário-mínimo por hora permanece fixado em 7,25 dólares.

Nenhuma medida foi tomada para cobrar novos impostos sobre as grandes empresas e os mais ricos. Pior, uma medida adicional que favorece as famílias ricas está sendo proposta pela Administração Biden, e pasme, isto permite que uma série de eleito/as republicano/as denunciem a injustiça e o ardil da medida por favorecer os ricos [1]. Trata-se de aumentar de $10.000 para $80.000 a quantia que um/uma contribuinte pode deduzir de seus impostos federais em compensação de impostos locais (municipais ou estaduais) pagos. De acordo com uma análise do Tax Policy Center [Centro de Política Fiscal], organismo não partidário, e do Center for a Responsible Federal Budget [Centro para um Orçamento Federal Responsável], 94 % dos benefícios do aumento do limite de abatimento do imposto de renda para $80.000 iriam para o quintil superior dos contribuintes do país – aqueles que ganham pelo menos $175.000 por ano – e 70 % para os cinco por cento superiores [2]. A perda de receita para o Tesouro seria de US$ 275 bilhões por ano.


O salário-mínimo de 15 dólares foi logo abandonado, e o salário-mínimo por hora permanece em 7,25 dólares


O orçamento militar foi aumentado e é agora de 720 bilhões US$ com o apoio dos republicanos. Este é o maior orçamento desde a Segunda Guerra Mundial (apesar do desengajamento no Afeganistão).

Na área de obras públicas, a administração Biden, com apoio republicano, aprovou um orçamento que favorece as grandes empresas de construção.

Deve-se lembrar que foi nos Estados Unidos que a pandemia do coronavírus resultou no maior número absoluto de mortes do mundo: mais de 820.000 mortes em 21 de dezembro de 2021.

Apesar da extrema gravidade da situação, Joe Biden não tomou nenhuma ação que entrasse em conflito com os interesses da Big Pharma. Enquanto o governo detém a patente principal para a produção de vacinas de RNA mensageiros, ele se recusa a usá-la e a ter vacinas produzidas pelo setor público nos EUA ou em outros lugares (veja o quadro «Biden protege os interesses da Big Pharma às custas das pessoas no Norte como no Sul»). Toda a produção é deixada nas mãos da Big Pharma, e as patentes que as empresas privadas registraram não são suspensas. A administração Biden também não ofereceu a patente que detém aos países que poderiam ter se beneficiado dela e que têm condição de produzir vacinas por conta própria se lhes for dada a oportunidade. Embora ele tenha dito em maio de 2021 que sua administração queria que a OMC abrisse as patentes, conforme solicitado por mais de 100 países do Sul, Biden não tomou nenhuma medida real para garantir que isso acontecesse.


Biden protege os interesses da Big Pharma às custas das pessoas do Norte como do Sul [3]

As vacinas mRNA da Pfizer (EUA) - BioNTech (Alemanha) e Moderna (EUA), que foram lançadas em menos de um ano, são parcialmente baseadas em patentes anteriores. Em particular, uma tecnologia desenvolvida pela Universidade da Pensilvânia para fazer um ARN mensageiro inofensivo para o corpo, que foi patenteado em 2005.

A técnica inovadora de estabilização da proteína spike (proteína espigão) também tem origem em pesquisas públicas. De facto, a patente específica apresentada pelo governo dos EUA – patente número 10.960.070, mais conhecida como a patente ’070’ – está relacionada à forma como a proteína spike é estabilizada na vacina, uma técnica que foi desenvolvida pelo centro de pesquisa sobre vacinas do National Institutes of Health (NIH), uma agência do governo dos EUA.

De acordo com a organização radical de consumidores americana Public Citizen, com sede em Washington, o governo americano teria condições de produzir ele mesmo as vacinas ARNm usando a patente ’070’. Também poderia repassar a patente gratuitamente aos Estados que desejam produzir a vacina para sua população e, em um gesto de solidariedade, para outros povos. O seguinte é um trecho de um comunicado de Public Citizen de meados de novembro de 2020 comentando o anúncio da produção da vacina ARNm-1273 da Moderna: «Esta é a vacina do povo. (...) Não é apenas a vacina da Moderna. Cientistas federais ajudaram a inventá-la e os contribuintes estão financiando seu desenvolvimento. Todos nós desempenhamos um papel. Ela deve pertencer à humanidade. Tanto a atual administração [ou seja, a administração de Trump, nota de Eric T.] como o presidente eleito Biden têm a oportunidade de tornar esta vacina um bem público gratuito disponível a todos e ajudar a aumentar a produção global, para evitar um racionamento medicinal que poderia se tornar uma forma de apartheid global das vacinas» [4]. Neste caso, não se trata de liberar ou suprimir a patente, mas simplesmente de torná-la disponível a outros. Ao se recusar a fazer isso, apesar de ter sido solicitado por organizações como Public Citizen, o governo de Joe Biden está deixando claro que quer proteger os privilégios da Big Pharma.


Segundo o Public Citizen, o governo poderia facilmente produzir bilhões de doses de vacinas a um custo muito inferior que as somas pagas até então as grandes indústrias farmacêuticas

De acordo com um novo e convincente estudo publicado em maio de 2021 pelo Public Citizen, os governos, começando pelos dos países mais ricos, poderiam facilmente produzir bilhões de doses de vacinas a um custo muito inferior às somas pagas até então às grandes indústrias farmacêuticas. Public Citizen o demonstra com base em um estudo de pesquisadores do Imperial College of London. O estudo demonstra de maneira convincente «que a comunidade global poderia criar centros regionais capazes de produzir oito bilhões de doses de vacina de ARNm até maio de 2022». Isto seria suficiente para cobrir 80 % da população. O custo? 9,4 bilhões US$ para uma vacina do tipo Pfizer-BioNTech, para 5 instalações, 17 linhas de produção e 1386 funcionários. Um número a ser comparado com as dezenas e dezenas de bilhões que foram distribuídos à indústria farmacêutica pelos Estados, para vacinar apenas as pessoas dos países ricos… e para servir dividendos aos acionistas [5].

A terceira dose de vacina no Norte e o apartheid de vacinas

Como os países da Europa Ocidental, os Estados Unidos estão organizando a injeção em massa de uma terceira dose da vacina (uma quarta dose está até sendo preparada, como o Estado de Israel já está fazendo) e a vacinação de crianças, enquanto a OMS pede que seja dada prioridade à vacinação das populações dos países do Sul, que têm apenas acesso muito limitado a ela.

Quanto à regulamentação financeira destinada a impor alguma disciplina aos grandes bancos e outras grandes empresas financeiras, nada foi feito. Pelo contrário, o laxismo está avançando. Em uma clara indicação de sua orientação favorável aos mercados financeiros e ao grande capital, Biden prorrogou o mandato dopresidente do Federal Reserve, Jerome Powell, que havia sido nomeado por Donald Trump. Ele também nomeou Janet Yellen, a ex-presidente da Reserva Federal, como secretária do Tesouro (o equivalente do Ministério da Fazenda). Este foi mais um sinal a favor das grandes empresas. No início de dezembro de 2021, Saule Omarova, a mulher que deveria estar encarregada da regulamentação bancária como chefe do Office of the Comptroller of the Currency (Secretaria da Controladoria da Moeda), foi forçada a renunciar ao seu posto após uma campanha de desestabilização por parte de Wall Street e dos republicanos. O Financial Times escreveu: «Ela enfrentou uma reação negativa dos republicanos e da indústria bancária, com críticas focadas em sua formação e carreira acadêmica com propostas incluindo um sistema de conta bancária administrado pelo Estado» [6]. Na realidade, ela não apenas enfrentou ataques dos republicanos, ela foi demolida por uma série de parlamentares democratas que estão tão ligados ao grande capital quanto seus colegas republicanos.


O programa Build Back Better [Construir de volta melhor] está sendo sabotado pela ala direita do Partido Democrata e muito provavelmente será abandonado

Biden havia prometido promover um importante programa de gastos para a justiça social e a proteção ambiental. Este programa, Build Back Better, conhecido por suas iniciais BBB, deveria ter sido aprovado ao mesmo tempo que o grande plano de despesas de obras públicas que caiu no gosto do grande capital. Biden e a presidente do congresso Nancy Pelosi finalmente separaram os dois votos, enquanto a ala esquerda do Partido Democrata rejeitava esta separação. O plano de obras públicas foi aprovado com o apoio republicano e apesar da oposição de seis democratas de esquerda, incluindo Alexandria Ocasio-Cortez. Em caminho oposto, o programa Build Back Better está sendo sabotado pela ala direita do Partido Democrata e muito provavelmente será abandonado.

Este abandono do programa Build Back Better mostra a real natureza da política da administração Biden, que está em grande parte, econômica e socialmente, em continuidade com a dos presidentes republicanos, sejam G. W. Bush ou D. Trump. Em 1891, Friedrich Engels, em seu prefácio aos textos de Karl Marx sobre a Comuna de Paris, descreveu muito bem o sistema político dos Estados Unidos dominado pelos partidos Democrata e Republicano, que se alternam no poder e defendem a ordem capitalista (ver quadro abaixo).


Friedrich Engels sobre o sistema político dos EUA
Em parte alguma os «políticos» formam um clã dentro da nação mais separado e poderoso do que precisamente na América do Norte. Ali, cada um dos dois grandes partidos aos quais cabe alternadamente a dominação é ele próprio governado por pessoas que fazem da política um negócio, que especulam com lugares nas assembleias legislativas da União e de cada um dos Estados, ou que vivem da agitação para o seu partido e são, após a vitória deste, recompensados com cargos. É sabido que os americanos procuram, desde há trinta anos, sacudir este jugo tornado insuportável e que, apesar de tudo, se atascam sempre mais fundo nesse pântano da corrupção. É precisamente na América que podemos ver melhor como se processa esta autonomização do poder de Estado face à sociedade, quando originalmente estava destinado a ser mero instrumento desta. Não existe ali uma dinastia, uma nobreza, um exército permanente – exceptuados os poucos homens para a vigilância dos índios – nem burocracia com emprego fixo ou direito à reforma. E, não obstante, temos ali dois grandes bandos de especuladores políticos que, revezando-se, tomam conta do poder de Estado e o exploram com os meios mais corruptos para os fins mais corruptos – e a nação é impotente contra estes dois grandes cartéis de políticos pretensamente ao seu serviço, mas que na realidade a dominam e saqueiam. [7]
Fonte: Friedrich Engels, «Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891 de Karl Marx» A Guerra Civil em França, https://www.marxists.org/portugues/marx/1871/guerra_civil/index.htm

A administração Biden também falhou, apesar da retórica bem-intencionada, em tomar medidas para reduzir o acesso às armas em um momento em que as taxas de homicídios estão aumentando acentuadamente (aumento de 30 % em 2021). Há 400 milhões de armas de fogo em circulação nos EUA.

Em relação aos estados que como o Texas aprovaram legislação hiper-repressiva sobre o aborto, a Administração Biden não está tomando medidas para defender a legislação federal descriminalizando o aborto e está se limitando a expressar sua discordância.

Enquanto os estados, incluindo mais uma vez o Texas, decidem mudar as leis eleitorais para limitar os direitos de voto das classes populares e especialmente suas partes racializadas, a Administração Biden não faz nada.

Sobre os direitos dos migrantes e o acolhimento dos refugiados, a política da Administração Biden não é realmente diferente da de Trump. Em setembro de 2021, o enviado dos EUA ao Haiti, Daniel Foote, renunciou em protesto contra as expulsões «desumanas» pelos Estados Unidos de milhares de migrantes haitianos. Sua demissão foi um golpe para Joe Biden: sua política de expulsões em massa de migrantes haitianos para seu país é denunciada publicamente por seu próprio emissário [8].

Em termos de política internacional, a administração de Biden estende e confirma a adotada pela de Trump em questões centrais: apoio total ao regime sionista; agressividade em relação a Cuba e Venezuela. Recentemente, uma investigação do New York Times revelou que o uso de drones na Síria, Iraque e Afeganistão resultou oficialmente na morte de mais de 1.400 civis. O número real é certamente muito mais alto. A Administração Biden deu continuidade à política de D. Trump a este respeito. No final de agosto de 2021, em Cabul, 10 civis foram mortos por um ataque com drone e soube-se em dezembro de 2021 que os responsáveis não seriam sancionados [9]. «Não havia provas suficientemente fortes para definir responsabilidades individuais», explicou em Washington o porta-voz do Pentágono, John Kirby, para justificar a falta de sanções. A administração Biden também apoia o regime militar do marechal Al-Sissi, fornecendo anualmente ao seu exército 1,3 bilhões de dólares em ajuda. Da mesma forma, Biden mantém relações estreitas com o regime ultrarreacionário saudita.


Sobre os direitos dos migrantes e o acolhimento dos refugiados, a política da administração Biden não é realmente diferente da de Trump

O retorno ao Acordo de Paris sobre o Clima e às negociações com o Irã sobre o nuclear não se traduziram em medidas fortes. Pelo contrário, Biden acaba de aumentar os subsídios à extração de petróleo e gás nos EUA, a fim de aumentar o volume de extração. Em relação ao Irã, os EUA não estão fazendo nenhuma concessão real, o que contribui para o apodrecimento da situação.

Por que não há uma volta keynesiana?

O principal fator é o estado da luta de classes. As classes populares e, em particular, os trabalhadores assalariados não tiveram um acréscimo em seu grau de organização e sua capacidade de ação. Isto é diferente dos anos 30, quando o movimento trabalhista estava em plena expansão nos EUA, com uma onda de greves e ocupações de fábrica, especialmente na indústria automobilística. Os sindicatos radicais estavam em ascensão. Como também as ideias socialistas. A URSS era um pólo de atração, e o planejamento e controle público dos meios de produção pareciam ser uma solução melhor do que o capitalismo laissez-faire.

Para completar o quadro, devemos acrescentar que em 2020-2021 o governo (seja do Trump ou do Biden) colocou panos quentes, pagando indenizações importantes às classes populares e postergando o pagamento de uma parte significativa das dívidas (dívidas hipotecárias, dívidas estudantis, dívidas de aluguel…). Em 2020 e 2021, a pobreza diminuiu graças à assistência social de vários tipos. Isto teve um papel real de amortecedor social. As classes populares não foram forçadas a agir. Obviamente, alguns setores se mobilizaram e em alguns casos alcançaram vitórias, mas isto está longe de representar um marco.

As medidas «sociais» tomadas por Trump e depois por Biden não são estruturais, não constituem novos direitos, não são perenes. Se o programa Build Back Better fosse adotado, poderíamos considerar que alguns progressos sociais seriam alcançados, mas obviamente, na melhor das hipóteses, seriam muito limitados. Isto mostra que não estamos em um novo ciclo de tipo keynesiano onde o governo e a classe capitalista teriam que fazer grandes concessões às classes trabalhadoras, que veriam seus direitos sociais progredirem e seus salários reais aumentarem.

As medidas «sociais» tomadas por Trump e depois por Biden não são estruturais, não constituem novos direitos, não são perenes







A classe capitalista continua a enriquecer, embora a taxa de lucro não esteja no seu maior nível e uma grande parte do capital acumulado seja fictício e possa entrar em colapso como um castelo de cartas no caso de uma nova crise financeira.

A desigualdade continua a aumentar, com uma maior concentração da riqueza em benefício dos 1 % mais ricos.

A questão das dívidas

No terceiro trimestre de 2021, a dívida pública americana ultrapassou 28 trilhões de dólares, ou 125 % do PIB do país. Seja depois de 2008 em resposta à crise financeira ou a partir de 2020 em resposta à crise exacerbada pela pandemia do coronavírus, o governo americano aumentou a dívida pública de forma muito significativa. Não foram cobrados impostos de crise sobre as grandes empresas. Até agora, o aumento da dívida pública tem sido indolor porque as taxas de juros estão próximas de zero. Atualmente, a taxa de juros reais da dívida pública é até mesmo negativa, pois a inflação é superior a 5 %. A Reserva Federal aumentará gradualmente as taxas de juros, mas não haverá problemas sérios a curto ou médio prazo. Nos Estados Unidos, o volume da dívida pública continuará a aumentar sem causar grandes perturbações.


A questão das cobranças abusivas de dívidas sobre as classes trabalhadoras se tornará cada vez mais importante nos próximos anos

As dívidas das famílias da classe trabalhadora aumentaram nos últimos 10 anos, mas os cheques de ajuda social enviados pelo governo em 2020-2021 aliviaram temporariamente o ônus do pagamento. Além disso, tanto a administração Trump como a Biden suspenderam temporariamente o pagamento de uma série de dívidas: dívidas estudantis, dívidas hipotecárias em alguns casos, algumas dívidas de aluguel também, sem esquecer algumas dívidas de pequenas empresas. Mas estas medidas vão acabar e gradualmente a situação vai se tornar mais tensa. Alguns vencimentos são conhecidos: maio de 2022 para dívidas estudantis, que totalizam mais de 1,6 trilhão US$. Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez estão pedindo a anulação totalMovimentos para o cancelamento destas dívidas estão em andamento ou se organizando.


A questão das dívidas injustamente reclamadas das classes trabalhadoras se tornará cada vez mais importante nos próximos anos

No que diz respeito à dívida estudantil, Barack Obama fez alguns cancelamentos parciais (cujo custo foi suportado pelo Governo e não pelos financiadores), e é possível que Biden faça o mesmo. Isso dependerá das mobilizações. A ver vamos.

A dívida de grandes empresas privadas tem aumentado acentuadamente nos últimos anos. Se as taxas de juros subirem, é possível que ocorram falências e que uma nova crise financeira seja desencadeada.

Conclusões

A política da administração Biden, além dos efeitos de anúncios e promessas não cumpridas, é em grande parte continuadora da ofensiva do capital contra as classes populares. Não há uma virada social que realmente tenha começado e que rompa com 40 anos de políticas neoliberais.

Ninguém à esquerda vai sentir falta do Trump, mas ter ilusões sobre Biden é um limite que não podemos ultrapassar.

Biden e o Partido Democrata estão decepcionando setores das classes populares que os apoiaram contra Trump e os candidatos republicanos no outono de 2020. Durante 2021, em várias eleições parciais, esta decepção foi expressa nas urnas e os republicanos fortaleceram sua posição. As eleições de outubro de 2022 provavelmente resultarão em uma perda da maioria democrata no parlamento e no Senado, o que aumentará a tendência para a continuidade. Uma vitória republicana nas eleições presidenciais de 2024 é possível.

Será que a esquerda dentro e fora do Partido Democrata encontrará uma maneira de se fortalecer e quebrar o sistema bipartidário tão bem descrito por Friedrich Engels 130 anos atrás? Esta é a grande questão histórica. Será que o movimento popular, que nos Estados Unidos teve momentos fortes como o Black Lives Matter e as mobilizações feministas, será capaz de se consolidar? Será que os trabalhadores vão conseguir marcar pontos contra os patrões? Será que a juventude entrará num ciclo de lutas que estenderão o Black Lives Matter, que lidarão com o meio ambiente, com dívidas… As respostas a estas perguntas são abertas e são de grande importância para todos os povos do planeta.

Tradução de Alain Geffrouais



Notas

[2] Financial Times, 27-28 novembre 2021, “Democrats’ tax relief plan leaves bitter taste for party leftwingers” https://time.com/6128775/salt-cap-democrats-divided/ ; https://www.ft.com/content/712d0a22-8aa1-4204-b93a-3653c1f5bb5e “According to analysis by both the non-partisan Tax Policy Center and the fiscally hawkish Center for a Responsible Federal Budget think-tanks, 94 per cent of the benefits of increasing the Salt cap to $80,000 would go to the top quintile of earners nationwide — who make at least $175,000 a year — with 70 per cent going to the top five per cent.”

[3] O conteúdo desta caixa foi tirado de Éric Toussaint, «Coronavírus: Bens comuns mundiais contra Big Pharma», https://www.cadtm.org/Coronavirus-Bens-comuns-mundiais-contra-Big-Pharma

[4] Public Citizen, «Statement: Moderna Vaccine Belongs to the People», publicado no 16 de novembro de 2020,

[5] Public Citizen, «How to Make Enough Vaccine for the World in One Year», publicado no 26 de maio 2021, https://www.citizen.org/article/how-to-make-enough-vaccine-for-the-world-in-one-year/

[6] Financial Times, 9 de dezembro 2021. Estrato do artigo do FT: «“O que preocupa os bancos de Wall Street é que eu vou ser uma reguladora independente e forte que não é um deles, que não deve nada a eles”, disse ela ao FT. “(…) Jon Tester, um senador democrata de Montana, e Mark Warner da Virgínia expressaram preocupações durante a audiência sobre as críticas anteriores de Omarova a aspectos de um projeto de lei de 2018 que eles defendiam que facilitavam a regulamentação dos bancos comunitários. Tester também questionou sua proposta de uma autoridade nacional de investimento apoiada pelo Estado, que, segundo ele, poderia decidir a que setores da economia emprestar dinheiro». No original do Financial Times: «“What Wall Street banks worry about is that I am going to be an independent, strong-minded regulator who is not one of them, who is not beholden to them”, she told the FT. “(…) Both Jon Tester, a Democratic senator from Montana, and Mark Warner, of Virginia, voiced concerns during the hearing about Omarova’s previous criticism of aspects of a 2018 bill they had championed that had relaxed regulations for community banks. Tester also questioned her proposal for a state-backed national investment authority, which he said could decide which sectors of the economy to lend money to.»

[7] «Nowhere do “politicians” form a more separate and powerful section of the nation than precisely in North America. There, each of the two major parties which alternately succeed each other in power is itself in turn controlled by people who make a business of politics, who speculate on seats in the legislative assemblies of the Union as well as of the separate states, or who make a living by carrying on agitation for their party and on its victory are rewarded with positions. It is well known how the Americans have been trying for thirty years to shake off this yoke, which has become intolerable, and how in spite of it all they continue to sink ever deeper in this swamp of corruption. It is precisely in America that we see best how there takes place this process of the state power making itself independent in relation to society, whose mere instrument it was originally intended to be. Here there exists no dynasty, no nobility, no standing army, beyond the few men keeping watch on the Indians, no bureaucracy with permanent posts or the right to pensions. And nevertheless we find here two great gangs of political speculators, who alternately take possession of the state power, and exploit it by the most corrupt means and for the most corrupt ends – and the nation is powerless against these two great cartels of politicians, who are ostensibly its servants, but in reality dominate and plunder it.» Postscript to Karl Marx The Civil War in France 1871 (1891)

https://www.marxists.org/archive/marx/works/1871/civil-war-france/postscript.htm

[9] Nouvel Observateur, «Bavure américaine de fin août à Kaboul: pas de sanctions, colère de la famille des victimes» https://www.nouvelobs.com/monde/20211213.AFP5613/bavure-americaine-de-fin-aout-a-kaboul-pas-de-sanctions-colere-de-la-famille-des-victimes.html

Eric Toussaint 

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.

É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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