Sexta, 31 de agosto de 2012
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Jornalista sul-africano liga os pontos que unem os interesses da Fifa aos de seus parceiros comerciais
O que a Match Events and Services, uma prestadora de serviços
controlada por uma empresa do Reino Unido com sede na Suiça, tem a ver
com você?
Ela é a fornecedora oficial da Fifa de acomodação, ingressos e
soluções em tecnologia da informação para a Copa do Mundo de 2014. O que
significa que tudo que se refere a esses temas na realização do evento
será intermediado pela empresa.
A Match, como é conhecida, detém, por exemplo, a exclusividade na
comercialização de pacotes de hospedagem para a Copa. Ou seja, os que
quiserem comprar acomodações para a Copa terão que fazê-lo através da
empresa – que teoricamente deveria ter sido escolhida por licitação. É a
Match que compra os pacotes da rede hoteleira do país-sede e depois os
oferece para venda ao redor do planeta, sob o selo de fornecedora
oficial da Fifa.
E este selo faz muita diferença. Em 12 de junho deste ano, a Match soltou um release, que está disponível aqui,
comemorando o recorde de vendas nos pacotes de hospedagem para a Copa
de 2014. Naquele momento, a exato dois anos da Copa, ela afirmava ter
atingido 262 milhões de dólares em vendas desses pacotes.
A Match desempenhou o mesmo papel na Copa de 2010, na África do Sul. E
foi alvo de investigação do jornalista sul-africano Rob Rose,
especializado em corrupção nos negócios, que revelou a ocorrência de
nepotismo, corrupção e falta de transparência na relação entre a Match e
a Fifa, além de sobrepreço em hospedagem e outras denúncias.
O resultado do trabalho de Rose foi publicado em uma monografia do
ISS (Institute for Security Studies), instituto de pesquisa sul-africano
que reuniu artigos de vários jornalistas esportivos. Você pode baixar aqui,
em PDF, o artigo em inglês publicado por Rose. O Copa Pública traduziu e
separou alguns trechos desta detalhada investigação que será publicada
em duas partes.
Aqui você lê a primeira parte do artigo de Rob Rose sobre a Match,
escrito pouco antes do início da Copa da África do Sul, que antecipa
pressões sobre o setor hoteleiro que se repetem agora, aqui no Brasil. A
segunda parte, que será publicada na próxima terça-feira, disseca os
negócios da Match e de seus controladores.
Os fornecedores oficiais da Fifa
Propostas obscuras e conflitos de interesse na Match
Por Rob Rose
Em maio de 2004, na cerimônia que anunciou que a Copa do Mundo de
2010 seria na África do Sul, o chefão da Fifa, Joseph Sepp Blatter,
proclamou para uma multidão que incluía Nelson Mandela que “vitorioso
era o futebol e que vitoriosa era a África”.
Mas, para ser exato, Blatter deveria ter dito que vitoriosa era a
Fifa e sua rede de parceiros comerciais, que têm tirado muito mais
proveito das últimas Copas do Mundo do que os países-sede.
Na linha de frente da lista de parceiros comerciais da Fifa está uma
empresa obscura chamada Match Event Services, apontada como fornecedora
oficial de acomodações da Fifa durante a Copa do Mundo, intermediária
entre hotéis e turistas.
Embora a Match convença os donos de hotéis e pousadas das
cidades-sede a manter as tarifas baixas porque os turistas são
“sensíveis aos preços”, uma investigação feita por este jornalista
confirmou que os turistas, na verdade, chegam a pagar à Match 1000% mais
do que pagariam se não houvesse intermediário.
A Match Event Services é propriedade de uma empresa familiar
registrada no Reino Unido chamada Byrom PLC. As circunstâncias do acordo
entre a empresa e a Fifa são nebulosas: nunca houve um processo de
licitação para obter esse contrato multimilionário, por exemplo.
Em situação muito semelhante está a Match Hospitality, braço da Match
Events Services, que tem o selo oficial de aprovação da Fifa para
fornecer pacotes de hospedagem de luxo para grandes empresas que querem
impressionar clientes no evento sul-africano. A Match Hospitality se
recusa a revelar sua estrutura acionária exata, mas um de seus quatro
acionistas é a Infront Sports & Media, companhia de Philippe Blatter
– sobrinho e afilhado do chefão da Fifa.
Quem manda na Match?
As duas entidades Match – Match Events Services AG e Match
Hospitality – são formalmamente independentes, mas têm acionistas em
comum. A Match Events Services AG foi fundada em 2007 e é responsável
por fornecer “acomodação, ingressos e tecnologia da informação para a
Copa do Mundo”. Até 2008 ela era uma joint venture entre uma empresa do
Reino Unido, Byrom PLC, e outra empresa suíça, a Eurotech – cada uma com
50% das ações. Mas, em 2008, a Byrom PLC comprou a Eurotech por 92 mil
libras (pouco mais de 145 mil dólares), ficando com 100% do controle
acionário da Match Event Services AG.
Os detalhes imprecisos da nomeação da Match pela Fifa serão
discutidos depois, mas seus “diretores” – ou seja, a família Byrom –
foram os fornecedores oficiais de acomodação da Fifa nas últimas seis
últimas Copas do Mundo [Continuarão sendo durante a Copa de 2014 no
Brasil]. Eles também forneceram serviços de tecnologia de informação em
quatro Copas anteriores. Para a Copa de 2006, por exemplo, a Byrom PLC
operou através de uma empresa registrada na Alemanha chamada Organising
Comitte Accommodation Bureau GmbH & Co., da qual detinha 33% de
participação. Essa empresa era o “comitê oficial de acomodação” do
evento e também operava no escritório de ingressos da Fifa.
Após o evento na Alemanha, a Match Event Services AG (tratada daqui
por diante como “Match”) se estabeleceu em Zug, na Suíça – a mesma
pequena cidade em que a Fifa está sediada – como braço formal da Byrom
PLC. Sem nenhuma espécie de licitação, imediatamente adquiriu o direito
de ser a fornecedora oficial da FIFA.
A segunda empresa é a Match Hospitality. A Fifa anunciou em 30 de
outubro de 2007 que a Match Hospitality fora escolhida como a “titular
dos direitos de hospedagem após um concurso público”. Isto deu à Match
Hospitality o direito de vender “pacotes de hospedagem” em todo o mundo a
grandes empresas. Geralmente, o pacote inclui acomodação em suítes,
alimentação e serviços para os dias dos jogos. 65% da Match Hospitality é
controlada pela Byrom PLC, que divide a propriedade da empresa com a
Dentsu, a Infront Sports & Media e a Bidvest.
A participação de cada um dos acionistas minoritários na Match
Hospitality não está clara, porque todos alegam “confidencialidade” para
evitar o assunto. Por exemplo, o executivo da Bidvest, Colin Kretzmann,
um dos diretores da Match Hospitality, se recusou a revelar quanto a
Bidvest possuía das ações da companhia e também a dizer quanto foi pago
pelas ações. “Eu não estou em posição de revelar isto… Nós estamos sob
acordo de confidencialidade entre a Match e a Fifa”, disse.
A Bidvest e a Match Hospitality estão intimamente ligadas, no
entanto, como o relatório anual da primeira empresa, divulgado em 2008,
deixa claro. Discutindo a compra de uma pequena parte da Match
Hospitality, a Bidvest afirmou que “um benefício imediato será o de
assegurar os negócios em apoio a Match Event Services durante a Copa das
Confederações de 2009″.
Ambas as companhias – Match Event e Match Hospitality, são
controladas pela família Byrom. Mas vamos falar primeiro da Match Event
Services, a mais bem estabelecida das duas empresas e a “face pública”
da família Byrom.
Abocanhando a maior parte dos lucros
Parte da responsabilidade oficial da Match, de acordo com a Fifa, é
assegurar que acomodações estejam disponível aos torcedores “com preços
justos e condições razoáveis”. Na África do Sul, a Match requisitou 80%
dos quartos disponíveis nas principais redes de hotéis, incluindo o City
Lodge, o Southern Sun e Protea Hotels, além de pousadas e
“bed-and-breakfasts”. Ao todo, a empresa planejou montar um portfolio de
55 mil quartos – não toda a acomodação requerida pelo evento, mas
certamente a maioria – e em outubro de 2009 já havia finalizado acordos
de comercialização para 40.000 quartos.
Isso colocou a Match em posição de ditar os preços impostos aos
visitantes, sob o pretexto de evitar que os “gananciosos” fornecedores
locais extorquissem os estrangeiros vindos à África do Sul,
desvalorizando o evento. De fato, o Acordo de Acomodação da Fifa para
Pequenas, Médias e Microempresas de 2010 (2010 Fifa World Cup SMME
Accomodation Agreement), feito pela Match, estipula que essas pousadas
estão autorizadas a cobrar a taxa que eles “habitualmente” cobravam em
junho de 2007, mais 16% de aumento em relação a seus preços de custo.
“Por exemplo, se a taxa de 2007 para um quarto de acomodação da Copa
do Mundo fosse 1000 rands sul-africanos por noite (cerca de 118
dólares), a taxa a ser adotada na rede de acomodações da Fifa (…) será
de 1.160 rands sul-africanos(cerca de 137 dólares) “, de acordo com o
contrato da Match. A pousada vende os quartos para a Match, que então os
revende aos turistas como a única empresa fornecedora oficial de
acomodações da Fifa.
Algumas pousadas, porém, denunciaram, já em 2008, que estavam sendo
“coagidas” a assinar o contrato a taxas que consideravam muito baixas.
Meses de tensão entre a Match e a indústria do turismo chegaram ao ápice
quando, em 3 de novembro de 2008, o CEO da SA Tourism, Moeketsi Mosola,
conquistou apoio do setor hoteleiro por se opor publicamente ao
contrato da Match.
Em conferência, Mosola disse que a Match era simplesmente um agente
de viagens, e que não deveria usar o poder decorrente da Fifa para
intimidar o resto da indústria turística. “Nós dissemos a Match que
queremos trabalhar com eles, mas não que as empresas de turismo sejam
levadas à falência após 2010″, disse. Mosola também perguntou: “Qual é o
sentido da Copa do Mundo se não há vantagem alguma para a indústria
nacional?”
A SA Tourism se retirou do conselho consultivo da Match em protesto
contra a sua pressão sobre as pequenas pousadas e pediu a intervenção do
Ministro do Turismo sul-africano, Marthinus Van Schalkwyk, para
aperfeiçoar as relações entre a agência da Fifa e o setor de turismo
local. Meses depois, Mosola pediu demissão da SA Tourism, e até hoje
prefere não falar a respeito do episódio.
O caso Mosola, porém, revelou não apenas a pressão das fornecedoras
da FIFA sobre a indústria local, mas o apoio que essas têm junto aos
governo. Quando questionado sobre as sólidas margens de lucro que a
Match teria na Copa de 2010, por exemplo, o ministro do Turismo
respondeu por escrito que o problema entre Mosola e Match “já havia sido
resolvido”. A porta-voz do ministro, Ronel Bester, disse: “As questões
acerca da Match, seu controle acionário e procedimentos operacionais
devem ser feitas a Fifa e a Match, já que a contratada da Fifa não é uma
operadora de turismo sul-africana”. Ou seja, as autoridades varreram a
disputa para debaixo do tapete.
O mais revelador, porém, é que enquanto a Match pressionava os
sul-africanos a manter seus preços baseados nas taxas de 2007, ela mesma
cobrava dos visitantes 30% a mais do que eles pagariam pelas
acomodações se negociassem sem seu intermédio, como foi confirmado pelas
redes hoteleiras.
Parece que, na África do Sul, o setor hoteleiro se resignou a aceitar
margens de lucro menores pensando em uma futura compensação com a boa
repercussão do evento. O CEO do Protea Hotel, Arthur Gillis, disse:
“Qualquer um que pense que a Copa do Mundo é uma oportunidade de fazer
dinheiro está se iludindo. Esta é uma oportunidade de marketing, e nós
devemos ser avessos a qualquer especulação sobre isso.”
Já a Match não parece inspirada por tais motivos nobres, como fica
claro nos valores oferecidos aos visitantes no mais importante parque
nacional, o Kruger National Park.
Kruger Park: Um caso interessante
Um fascinante estudo de caso de como a Match foi capaz de aproveitar
sua posição sancionada pela Fifa para extrair uma quantidade vertiginosa
de dinheiro dos turistas da Copa do Mundo pode ser visto no caso do
Kruger National Park.
A empresa estabeleceu preços absurdos durante a Copa comparados ao
que os turistas normalmente iriam pagar. Por exemplo, as diárias no
acampamento de Pretoriuskop foram fixadas em 4.276 dólares por noite
(ou 29.971 rands sul-africanos) pela pousada para 16 pessoas – cerca de
quatro vezes os 7.400 rands sul-africanos (ou 879 dólares) que seriam
cobrados durante qualquer outra época. O que obviamente enfureceu os
sul-africanos interessados em visitar o parque durante o período da Copa
do Mundo.
Uma família que sempre visita o parque no mês de julho teve suas
reservas em Skukuza (um dos acampamentos do parque) canceladas e seu
depósito devolvido. Em troca, foi-lhes oferecido um alojamento
alternativo no acampamento mais ao norte, Punda Maria, em Moçambique.
Ernest Smit, um dos membros da família, esbravejou: “É irracional
esperar que nós fossemos de carro para tão longe. Tenho certeza de que
muitas pessoas irão reclamar desta solução”.
Fóruns de discussão no site da SANParks mostravam o descontentamento.
Alguém identificado apenas como “Francoisd” calculou que os turistas
estariam pagando acima do limite e perguntou retoricamente: “Eu gostaria
de saber se os turistas da Copa sabem que irão pagar ‘um pouco’ a mais
do que o normal.”
Essa realmente é a questão: os turistas não sabem disso, nem tem
outra opção. E o fornecedor nomeado pela Fifa para comercializar
hospedagem lucra com essa desinformação. Como um insulto final, os
turistas ansiosos para ir ao Kruger Park não poderiam encontrar
acomodação durante o período da Copa, a não ser via Match.
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.