Sábado, 2 de agosto
de 2014
Escrito
por Gabriel Brito e Paulo Silva Junior
Como já se discute em diversas correntes do movimento
social, aparentemente o país sai da festa da Copa do Mundo para um tempo, ainda
não calculável, de suspensão de direitos básicos, numa escalada repressiva
protagonizada por toda a institucionalidade política brasileira. Prisões
sumárias e inquéritos até risíveis estão na ordem do dia contra o movimento
social que se vê em ascensão há um ano.
“O que a gente está
vendo é a radicalização, e não dos movimentos sociais. Estamos vendo a
radicalização por parte do Estado, que reprime em uma praça pública onde
haveria um debate político. A radicalização parte dos governos. A questão está
visível até na fala de alguns dos candidatos”, afirmou o advogado Daniel Biral,
em entrevista ao Correio da Cidadania.
Biral, que é membro do grupo dos Advogados Ativistas e
chegou a ser detido em 1º de julho, no centro de São Paulo, em ato que pedia
liberdade a dois manifestantes recém-encarcerados, lamenta o que parece ser a
nova postura do Poder Judiciário, no sentido de conceder legalidade a processos
arbitrários comandados por todos os governos do país, com a duríssima atuação
de seu braço policial.
“Os agentes do
Poder Judiciário deveriam ser responsabilizados sobre tais decisões, mas essa é
uma questão futura. Falo assim porque suas decisões não estão avaliando o
conteúdo das provas contidas nos processos. As decisões têm levado em conta
apenas as versões dos fatos alegadas pela polícia. Falar que, legalmente, as
instituições estão cumprindo seu papel de forma democrática é uma coisa. Mas
ver se essa democracia efetivamente chegou é diferente”, criticou.
A entrevista completa, realizada em parceria com a
webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Primeiramente, que análise
você faz dos protestos das últimas semanas, relativos à Copa do Mundo, e a
reação dos mais distintos governos?
Daniel Biral: Parece que, desde junho do ano passado, os
movimentos sociais ganharam certa visibilidade e hoje, especificamente no
período pós-Copa, tais movimentos, até então recriminados efetivamente pelo
aparelho policial nas ruas, começaram a sê-lo também pela justiça e pelos
governos estaduais e federal. É algo que toma corpo, a ponto de termos até
advogados vítimas de criminalização, já com prisões decretadas.
Correio da Cidadania: Pegando o gancho sobre a
criminalização até de advogados, o que pode contar sobre o ato pela liberação
dos presos, realizado na praça Roosevelt, no qual você chegou a ser preso? Como
esse dia reverbera até hoje, visto que os motivadores do ato continuam
encarcerados?
Daniel Biral: Aquele ato já denunciava o que estamos vivendo. E
faríamos um debate exatamente para explicar à população as razões que nos levam
a entender que as prisões do Rafael Lusvarghi e do Fabio Hideki foram feitas de
forma ilegal. Era um debate acalorado, não poderia deixar de ser, pois além do
debate e das explicações, os movimentos que ali estavam, especialmente
sindicatos, conhecem os dois, principalmente o Fabio, e exigiam da polícia a
liberação deles.
Vimos que mesmo sendo um debate público, em praça pública,
sem ninguém cometer crime nem nada, a polícia já estava com ordem de reprimir.
Inclusive de maneira só vista em períodos de Estado fascista, a exemplo do
recolhimento de um livro do Marighella, tomado das mãos de um estudante.
Correio da Cidadania: Como analisa as recentes
prisões, em número crescente, de ativistas políticos? O que está acontecendo no
país nesse momento, em sua interpretação?
Daniel Biral: Apesar de existirem pessoas presas, temos de
analisar os fatos de uma maneira macropolítica. Vivemos um período em que as
pessoas tiveram mais condição de se informar. Isso também tem a ver com as
redes sociais. Em rede, as pessoas começaram a se agrupar e a crise de
representatividade, que foi e é a grande questão, com políticos começando a
tentar debatê-la, está presente no fato de que não foi a atual representação
política da democracia indireta quem, nos últimos 25 anos, conseguiu efetivar
direitos sociais.
Não aconteceu. Por isso temos déficit de moradia e um dos
grandes movimentos sociais que vai para as ruas todos os dias, praticamente
todas as semanas, é o MTST, que está presente em todas as demandas de outros
grupos também, porque eles querem fazer parte de todo o movimento popular, não
apenas o de moradia.
Existem outros grupos que a partir da ideia de formar
coletivos em redes começaram a agir pela eficácia da Constituição. São
coletivos que têm a ver com meio ambiente, por exemplo, o que chamamos de
direitos difusos e coletivos. Têm a ver com a questão da água, pela qual
estamos sofrendo em SP, e vamos sofrer ainda mais... Têm a ver com o direito da
mulher, direitos LGBT, enfim, todas as organizações da sociedade civil que
lutam por direitos.
Tal organização não era esperada pelos antigos políticos,
que viam nos partidos a maneira de atravessar a massa de gente, continuando com
a mesma velha política de fazer com que as pessoas não consigam enxergar o que
está acontecendo. Em colaboração com a grande mídia, claro. Tudo isso assustou
o antigo político, cuja resposta foi aquela que conhecemos no período
ditatorial brasileiro e, antes, em outros períodos, sempre com militarização e
repressão.
O que temos hoje em dia, e não havia antigamente, é que os
movimentos e coletivos são articulados em redes. Assim, mesmo que uma grande
mídia tente apontar diariamente “ilações”, falar de crimes dos manifestantes, sugerir
ligações entre os advogados e os manifestantes, toda e qualquer tentativa de
criminalizá-los vai continuar repercutindo também na tentativa de esclarecer a
população. Estão organizados de maneira articulada para que as informações que
tentam ir contra os movimentos sociais, legítimos na sua concepção inicial de
garantir os direitos efetivados na Constituição (ou pelo menos ali escritos),
sejam esclarecidas à população.
Correio da Cidadania: Desse modo, o que entende
como legado da Copa, na relação com os direitos civis mais básicos de uma
democracia? A sombra do Estado de exceção é passageira ou, após a experiência
desse momento, será instrumento recorrente de governos?
Daniel Biral: O que a gente está vendo é a radicalização, e não
dos movimentos sociais. Estamos vendo a radicalização por parte do Estado, que
reprime em uma praça pública onde haveria um debate político. A radicalização
parte dos governos. A questão está visível até na fala de alguns dos
candidatos. Alguns candidatos dizem: “ah, eu faria pior, eu já teria apreendido
antes, teria feito a repressão ainda maior”.
E o que queremos, como sociedade civil, pelo menos falando
por mim quando fui preso, é exatamente o contrário: que se permita o debate
público, a ação participativa do povo, os conselhos participativos da
população, de modo a termos um conhecimento um pouco mais aprofundado sobre
política e sobre como atuar politicamente pelo seu bairro, pela sua cidade ou
mesmo pela demanda que mais se identificar.
É certo que o político, aquele que toma o poder, sempre
vai ter na mão a “legalidade” de uma composição de palavras, que parece o
grande chavão para a polícia atuar de maneira repressiva, através da ideia de
“manutenção da ordem pública”. É subjetiva essa “manutenção da ordem pública” e
acredito que debate político não subverta a ordem pública. Mas já vimos que a
repressão a um debate que não subverte a ordem pública está sendo realizada.
Ainda vamos sofrer muito mais até a alteração dessa
mentalidade e cultura, que não permitem ao movimento social exigir mudanças de
direcionamento no foco político do administrador público. A repressão tende a
aumentar, infelizmente.
Correio da Cidadania: Já que em suas palavras a
repressão tende a aumentar, é válido lembrar que, apesar de tudo, as decisões
do poder executivo e legislativo, além da atuação da polícia (quem vai para o
corpo a corpo nas manifestações) são largamente noticiadas e em boa medida
criticadas. No entanto, como advogado, como você enxerga a atuação do poder
judiciário neste contexto?
Daniel Biral: A grande vocação de todo advogado que me faz estar
na rua. Há apenas um ano, porque antes não tinha ligação alguma com movimento
social. Era o famoso ‘advogado coxinha’. E fui às ruas exatamente para
verificar a efetividade da Constituição, porque pelas informações que fomos
captando da televisão, e também de outros meios de comunicação, me parecia que
ela estava sendo totalmente rasgada. Fui para a rua esperando que o poder
judiciário resguardasse os direitos da população, resguardasse as leis de
direito à manifestação.
Mas as últimas sentenças do judiciário são completamente
contraditórias. Inclusive, os agentes do poder judiciário deveriam ser
responsabilizados sobre tais decisões, mas essa é uma questão futura. Falo
assim porque suas decisões não estão avaliando o conteúdo das provas contidas
nos processos. As decisões têm levado em conta apenas as versões dos fatos
alegadas pela polícia.
Portanto, a justiça não está verificando a legalidade dos
atos a respeito de cometimento de crimes dentro de um inquérito policial, mesmo
em fase administrativa. A justiça está apenas ratificando tais atos. O poder
judiciário está se submetendo às decisões de um órgão executivo, uma vez que a
polícia é parte do poder executivo.
O que está acontecendo é uma sombra muito grande para todo
mundo do meio jurídico, inclusive em relação a minha prisão, da Silvia Daskal,
além de outros, como do Benedito Barbosa, há anos envolvido nos movimentos de
moradia, e agora da Eloisa Samy, execrada por uma ligação que fez para
clientes, ou conhecidos, que teriam mandados de busca e apreensão. Ora! No
direito, nós agimos como advogados e tentamos esclarecer ao nosso cliente todas
as nuances do processo e ao que ele está sujeito perante as leis. É isso que ela
fazia. Enquadrá-la ao lado de toda a organização criminosa que dizem ter
descoberto é muito complicado.
Ficamos preocupados com tudo o que a justiça tem feito.
Outro exemplo veio do ex-presidente do Supremo, Marco Aurélio Mello, que antes
mesmo de qualquer decisão chegar ao STF já se manifestou sobre a condição de se
extraditar ou não a Eloisa, alegando que as instituições aqui funcionam de
forma democrática. Mas o que vivemos de um ano pra cá mostra que muito desse
Estado democrático de direito em que pensávamos estar não existe na prática.
Posso até dar dados. Por exemplo, a polícia judiciária,
instituída para investigar, não consegue fazê-lo nem em 15% dos casos de
homicídio. E resolve apenas 1%. Uma mostra de como é uma instituição falida.
Não consegue cumprir sua determinação institucional. E vemos o mesmo em todas
as esferas administrativas do poder público, com exemplos na educação, na
saúde...
Falar que, legalmente, as instituições estão cumprindo seu
papel de forma democrática é uma coisa. Mas ver se essa democracia efetivamente
chegou é diferente.
Correio da Cidadania: Diante de tudo que aqui
debatemos, como se posicionarão os Advogados Ativistas? De que maneira
pretendem atuar e se organizar nos próximos tempos?
Daniel Biral: Bom, se até lá não formos presos, vamos continuar
na rua dando todo o apoio e orientação aos coletivos e para as pessoas que
queiram conhecer um pouco mais do direito, daquilo que realmente está escrito e
vale. Ainda mais porque precisaremos de apoio, por ser um coletivo de advogados
que questiona toda a legitimidade dos órgãos e juízes que se colocam contra o
povo, contra aqueles que reivindicam, patriotas que tentam ajudar o país
levando demandas às ruas, querendo que o poder público realmente cumpra seu papel.
Continuaremos orientando tais pessoas e apoiaremos todos os projetos que
consigam estabelecer novas ações sociais perante o poder público.
Instituímos a “Quinta da Resistência”, na praça Roosevelt,
um lugar público, para sempre debatermos e trocarmos conhecimento com outros
grupos, coletivos e pessoas. Fica o convite para as pessoas irem à praça nas
quintas, pois estaremos lá.
É como no filme Matrix. A gente tomou a pílula certa, e
estamos com um conhecimento maior do que o permitido. Assim, vamos lutar para
que a verdade prevaleça em todos os casos, inclusive em favor dos presos
políticos que agora amargam a violência política do Estado.
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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.