Do DDH
Instituto de Defensores de Direitos Humanos
O presente artigo objetiva analisar a seletividade do
poder punitivo enquanto instrumento de controle social, isto a partir do caso
do Rafael Braga Vieira, negro, pobre e morador de rua preso em junho de 2013 e
condenado meses depois acusado de portar material supostamente explosivo para a
prática de atos violentos durante as manifestações que tomam as ruas da cidade
do Rio de Janeiro desde então. Este caso, pelas suas particularidades e pelas
circunstâncias probatórias do processo que se desenvolveu, mostra-se
emblemático para a avaliação crítica do poder punitivo do Estado a partir das
práticas do sistema penal.
O sistema penal, enquanto grupo de instituições –
policial, judiciária e penitenciária – que possuem a incumbência de realizar o
direito penal conforme as regras jurídicas vigentes, pretende ser um “sistema
garantidor de uma ordem social justa” (BATISTA, 2007, p. 25), apresentando-se,
assim, como igualitário, justo e comprometido com a dignidade da pessoa humana.
No entanto, o sistema penal, se analisado do ponto de vista de sua realidade e
práxis cotidiana, revela-se seletivo, repressivo e estigmatizante. Para
Alessandro Baratta, não só a práxis, mas a própria natureza do sistema penal é
desigual e seletiva (BARATTA, 2002).
Assim, a partir desde último ponto de vista, o sistema
penal pode ser entendido como “o controle social punitivo institucionalizado”
(ZAFFARONI, 1984 apud por BATISTA, 2007, p. 25). Dessa forma, pretende-se reunir
elementos que permitam analisar o sistema penal enquanto um instrumento de
controle social seletivo e de viés higienista, abordando-se, inicialmente, a
seletividade do sistema penal a partir da criminalização secundária e como essa
seleção dos indivíduos que ingressarão no sistema carcerário representa um
processo de deslegitimação do discurso jurídico-penal. Posteriormente, esse
processo de seleção será abordado como um instrumento de controle social, o que
será feito a partir do caso de Rafael, e como tal processo está relacionado ao
discurso histórico do medo enquanto componente de uma demanda por ordem pelas
classes dominantes sobre as classes consideradas perigosas.
Para tanto, utilizar-se-á como marco teórico a
criminologia crítica, utilizando-se, ainda, de uma abordagem
jurídico-sociológica, na medida em que se propõe a analisar o problema num
ambiente social mais amplo, a partir da interdisciplinaridade necessária para a
sua compreensão.
Tal abordagem será conjugada com o uso do método qualitativo
e dialético, posto que se busca a compreensão do tema em sua essência e a
partir de uma análise crítica da realidade prática. Ainda, será utilizada como
técnica de pesquisa a revisão bibliográfica de obras produzidas no contexto em
questão. Serão utilizados textos de autores clássicos como Zaffaroni, Nilo
Batista, Vera Malaguti, Alessandro Baratta, Cecília Coimbra e Loïc Wacquant,
dentre outros, que oferecem o aporte doutrinário necessário para a análise do
poder punitivo do Estado, especificamente no caso do Rafael Braga Vieira.
2. A história de Rafael Braga Vieira:
quando Pinho Sol virou “Coquetel Molotov”
O período que seguiu ao mês de junho de 2013 pode ser
considerado um marco na história recente do Brasil. A partir das lutas sociais
por transporte efetivamente público e de qualidade, as ruas de inúmeras cidades
pelo país foram tomadas por uma multidão ávida por questionar o status quo vigente. Viu-se uma
resignificação dos movimentos sociais que, em diversas frentes, passaram a
clamar pelo fortalecimento da democracia e pelo aprofundamento da participação
popular na formação de políticas públicas.
No entanto, as chamadas Jornadas de Junho não
representaram apenas ganhos positivos para o desenvolvimento de uma prática
cidadã mais efetiva. O Estado brasileiro desvendou, também, uma face sua
desconhecida da classe média – mas amplamente difundida nas favelas e
periferias – e outra adormecida desde o fim do período de exceção da Ditadura
Civil-Militar. A violência policial desceu para o asfalto, práticas autoritárias
e ilegais – como flagrantes forjados – se tornaram uma constante, e as práticas
criminalizantes e punitivas se revelaram.
Personagem emblemático deste período é Rafael Braga
Vieira, de 25 anos. Negro, pobre e morador de rua, Rafael cursou até a 5ª série
do ensino fundamental e tem 6 irmãos. Para contribuir com o sustento de sua mãe
e irmãos, é vendedor do refugo que encontra na feira de antiguidades da Praça
XV de Novembro e catador de latinhas.
Em meio à efervescência das ruas, Rafael foi preso numa
quinta-feira, dia 20 de junho de 2013, quando mais de um milhão de pessoas
tomaram as ruas do Rio de Janeiro em uma das maiores manifestações que já
ocorreram na cidade. Rafael não era manifestante e nem foi detido no trajeto
percorrido pelo ato, que saiu da Candelária em direção à Central, mas na Rua
Lavradio. Em seu poder, havia duas garrafas plásticas, uma contendo água
sanitária e outra desinfetante da marca “Pinho Sol”. Quando foi encaminhado
para a delegacia a fim de ser lavrado o Auto de Prisão em Flagrante, Rafael foi
encontrado pelos advogados e midiativistas algemado pelos pés[1], como um negro no pelourinho no
Brasil escravocrata, com claro intuito de humilhação. O único veículo da
imprensa oficial que divulgou a foto de Rafael algemado pelos pés na delegacia
foi o canal de notícias do site Yahoo, razão pela qual a fonte não convencional
está registrada neste trabalho.
Após o inquérito
policial, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) acusou-o do
crime tipificado no art. 16, parágrafo único, III, da Lei nº 10.826/03
(“possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”), alegando
que ele portava duas bombas caseiras do tipo “Coquetel Molotov” a serem usadas
em atos de violência na manifestação. Com base na denúncia oferecida pelo MPRJ,
Rafael foi condenado pelo juízo da 32ª Vara Criminal da Comarca da Capital
fluminense a uma pena de cinco anos de reclusão e dez dias-multa, com imposição
de regime fechado, sem possibilidade do apelo em liberdade, apesar do laudo
pericial da Polícia Civil afirmar haver nas garrafas “mínima possibilidade da
quebra que possibilitaria o espalhamento do seu conteúdo inflamável”,
apresentando, portanto, “ínfima possibilidade de funcionar como ‘coquetel
molotov’”.
Conforme
fundamentação da sentença condenatória, foi alegado por policiais militares em
depoimento “que as duas garrafas encontradas com o réu tinham um estopim no
gargalo, qual seja, um pano do tipo flanela, alaranjado; que ambas as garrafas
eram de plástico; que em toda rua, e precisamente no local da prisão havia uma
grande concentração de pessoas e um corre-corre; que o incendiamento daqueles
artefatos seria capaz de colocar em risco as demais pessoas”, de modo que
concluiu-se que os aparatos encontrados com Rafael seriam “garrafas de Coquetel
Molotov”.
Importante
ressaltar, porém, que bombas deste tipo necessariamente são confeccionadas no
interior de garrafas de vidro, pois a combustão da mistura líquida inflamável
leva à explosão do recipiente, projetando fragmentos do invólucro. No caso de
garrafas plásticas, como as encontradas com Rafael, o material derrete,
deixando de funcionar como bomba – o que foi ignorado pelo membro do Parquet e
pelo Magistrado, que considerou, ainda, claro o intuito de cometer crime de
incêndio contra coisas e pessoas, levando-se em conta, tão somente, que no
momento da prisão em suposto flagrante ocorria manifestação de rua e que, no
mesmo dia, já teriam acontecidos confrontos policiais.
O Instituto de
Defensores de Direitos Humanos – DDH, representando Rafael Braga, interpôs
recurso de Apelação que tramita perante a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, requerendo – dentre outras coisas – a realização de
um novo exame pericial nas garrafas encontrados com o acusado, bem como o reconhecimento
da manifesta atipicidade da sua conduta. A apelação ainda aguarda julgamento.
Através dos advogados do DDH, tivemos acesso às peças referentes ao caso.
Atualmente, Rafael
cumpre a execução provisória da sentença, em trâmite perante a Vara de Execução
Penal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, sob o nº
0428746-48.2013.8.19.0001. Tendo em vista o cálculo da pena que lhe foi
aplicada, o lapso temporal necessário para a sua progressão para o regime
semi-aberto foi alcançado no dia 19 de abril de 2014. Assim sendo, para o
Rafael poder gozar do direito à progressão de regime, necessita que obtenha e
junte ao processo judicial de execução penal uma proposta de emprego ou de
bolsa de estudos em algum curso supletivo ou profissionalizante, o que não
ocorreu até o momento.
Desde a sua
prisão, e dadas a arbitrariedade e ilegalidade que circundam sua condenação,
Rafael Braga Vieira vem sendo alvo de campanhas de solidariedade, manifestações
e atos públicos pela sua liberdade, sempre sendo lembrado como vítima da
seletividade do Sistema Penal Brasileiro, sendo, por hora, o único condenado
dentre os presos no contexto das manifestações de massa que tomaram as ruas do
país. Foi, ainda, um dos homenageados com a Medalha Chico Mendes de
Resistência, do Grupo Tortura Nunca Mais – Rio de Janeiro, em solenidade que
marcou os 50 anos do Golpe Civil-Militar no Brasil.
3. A seletividade do sistema penal no
processo de criminalização secundária
Para Wacquant, os
dias atuais mantem a ideologia medieval de segregação e punição das classes
consideradas subalternas, no que ele chama de “armazenamento dos refugos do
mercado” (2003, p. 33). A partir de um processo de estigmatização variável ao
longo dos séculos – ciganos, judeus, negros, pobres, homossexuais, doentes
mentais, etc. – tais classes são aquelas consideradas perigosas e, portanto,
inimigas, devendo o poder persecutório do Estado se voltar contra elas, de modo
a promover a higienização do meio social.
Esse processo de
criminalização de determinadas classes ocorre em dois momentos distintos.
Primeiramente, em abstrato, quando o legislador define quais condutas serão
criminalizadas e passíveis de punição, ou seja, operacionaliza-se no momento de
“eleição” dos comportamentos tidos por impróprios, antissociais. É a denominada
criminalização primária. A própria gênese do processo legislativo demonstra que
a representação política é voltada para os interesses das classes dominantes,
de modo que não é o interesse público alvo de tutela, mas sim, os interesses
das classes que financiam as campanhas eleitorais, daqueles que possuem o
trânsito necessário dentro do Parlamento para construir os lobbies que levam à
aprovação de determinadas leis e, principalmente, por aqueles que detem o
controle dos meios de comunicação (MARTINI, 2007). Assim, pode-se dizer que o
referencial da criminalização primária é a manutenção do status quo das classes privilegiadas[2].
Para o presente trabalho, porém, há mais relevância o
processo de criminalização secundária, que ocorre junto às instâncias
concretizadoras da política criminal, como a Polícia, o Ministério Público, o
Poder Judiciário e a imprensa. De acordo com Orlando Zaccone, a criminalização
secundária “é a ação punitiva exercida sobre as pessoas concretas, que se
desenvolve desde a investigação policial até a imposição e a execução de uma
pena” (2004, p. 184). É no momento de concretização da norma penal que o viés
seletivo do sistema de justiça criminal fica mais evidente, pois, como diz o
autor,
(…) não é possível ao sistema penal prender, processar e
julgar todas as pessoas que realizam as condutas descritas na lei como crime e,
por conseguinte, opta entre o caminho da inatividade ou da seleção. (2004, p.
184).
Assim é que a prática do sistema criminal revela que são
vítimas da criminalização secundária os setores mais pobres e marginalizados da
sociedade, desatendidos pelas políticas públicas de desenvolvimento social e
econômico, seja de forma direta ou indireta. Ou, como assevera Cecília Coimbra,
há, nos dias atuais, o que a autora, analisando Foucault, chama de “controle
das virtualidades”, este um importante instrumento de desqualificação de certas
naturezas. Nesse sentido, certas características – ser pobre, negro, morador de
periferia, etc. – são encaradas pela sociedade como determinantes para que o
indivíduo cometa crimes (2006, p. 2-3).
Trata-se, como se vê, de resquícios do modelo ideológico
difundido por Cesare Lombroso, cuja premissa era a inferioridade biológica dos
delinquentes centrais e da totalidade das populações colonizadas, de modo que
existiria um “apartheid criminológico
natural” (ZAFFARONI, 2012, p. 77).
Isto resulta do que Vera Malaguti aponta ser uma
construção social, baseada no discurso histórico do medo (2003), que, operando
de forma seletiva, funciona como um procedimento configurador da realidade para
atender à demanda por ordem, necessária à acumulação do capital por parte das
classes dominantes (2012, p. 22). Segundo a escola conhecida como labeling approach, o conceito de
criminalidade se desfaz: o que existem são processos de criminalização, ou
seja, a criminalidade é uma realidade social atribuída (MALAGUTI, 2012, p. 77).
Dessa forma, o sistema criminal acaba por revelar o seu
caráter higienista, dado observável nos discursos dos próprios governantes. Por
exemplo, é conhecida a declaração de 2007 do ex-Governador do Estado do Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral Filho, segundo o qual o Estado deveria oferecer
condições para a interrupção da gravidez de mulheres com menor poder
aquisitivo, a fim de reduzir a violência. Para ele, as taxas de fertilidade de
mães faveladas são uma “fábrica de produzir marginal”[3].
A seletividade do direito penal, todavia, não é realidade
recente na realidade brasileira. Desde o Código Criminal do Império podemos
perceber as marcas da seletividade da norma penal e das práticas do sistema
criminal. Como dispõe Vera Malaguti, “no liberalismo à brasileira, a pena de
morte tem escabrosa facilitação processual para réus escravos que compete com a
invulnerabilidade a ela dos senhores” (2008). Ainda nas palavras de Vera, nosso
segundo sistema penal, na sua grosseira corporalidade, expunha ambiguidades
fundamentais:
O escravo era coisa perante a totalidade do ordenamento
jurídico (seu sequestro correspondia a um furto), mas era pessoa perante o
direito penal”. Mas, mesmo com suas ciladas e ambiguidades, o Código Criminal
do Império influenciou muitas legislações latino-americanas e mais diretamente
o código penal espanhol de 1848. (2008)
Não à toa, jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com
baixa escolaridade representam 73,83% do total da população carcerária
brasileira[4]-[5]. Marcados pela cor da pele ou classe
social, inúmeros indivíduos veem seus direitos fundamentais, dentre os quais a
presunção de inocência e o devido processo legal, ignorados pelo sistema penal,
como ocorreu com Rafael no processo criminal que respondeu e no qual foi
condenado pelo porte de desinfetante “Pinho Sol” e água sanitária.
Nesse sentido, Eugenio Raúl Zaffaroni nos ensina que há
uma contradição intrínseca entre o discurso jurídico-penal vigente e a
realidade do sistema penal:
Hoje, temos consciência de que a realidade operacional de
nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso
jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características
estruturais próprias de se exercício de poder que cancelam o discurso
jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser
eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a
reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas,
a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização
social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas
estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais.
(2012, p. 15).
A partir daí, o discurso jurídico-penal oficial dá lugar a
sua verdadeira face, que nada tem a ver com a garantia de direitos fundamentais
como pretende ser, em um processo de deslegitimação que, de certo modo, faz
parte de sua estrutura. Neste âmbito, a própria lei renuncia aos limites da
legalidade, o que é base necessária para que se opere o verdadeiro poder do
sistema penal, essencialmente configurador da realidade. Como informa
Zaffaroni,
Mediante esta expressa e legal renuncia à legalidade
penal, os órgãos do sistema penal são encarregados de um controle social militarizado e verticalizado,
de uso cotidiano, exercido sobre a grande maioria da população, que se estende
além do alcance meramente repressivo, por ser substancialmente configurador da
vida social.
(…) Assim, os órgãos penais ocupam-se em selecionar e
recrutar ou em reforçar e garantir o recrutamento de desertores ou candidatos a
instituições tais como manicômios, asilos, quartéis e até hospitais e escolas
(em outras épocas, conventos). Este poder também se exerce seletivamente, de
forma idêntica à que, em geral, é exercida por todo o sistema penal.
Os órgãos do sistema penal exercem seu poder militarizador e verticalizador-disciplinar,
quer dizer, seu poder configurador, sobre os setores mais carentes da população
e sobre alguns dissidentes (ou “diferentes”) mais incômodos ou significativos.
(2012, p. 23-4).
Para Zaffaroni (2012), é essa seletividade estrutural do
sistema penal a maior prova da falsidade da legalidade processual infirmada
pelo discurso jurídico-penal, na medida em que os órgãos que compõem o sistema
penal exercem seu poder repressivo quando e contra quem decidem.
4. Seletividade punitiva como instrumento
de controle social
Como visto, em que pese o sistema penal se apresentar como
igualitário, justo e comprometido com a dignidade da pessoa humana, se
analisado do ponto de vista de sua realidade e práxis cotidiana, revela-se
seletivo, repressivo e estigmatizante. Pretende ser o sistema garantidor de uma
ordem social justa, mas funciona como instrumento de controle social
institucionalizado.
Para Vera Malaguti, o delito, ou desvio, não é um fenômeno
natural, mas uma construção do sistema de controle (2009, p. 27). Nesse
sentido, o processo de criminalização e a prisão mostram-se eficazes meios de
controle social de determinadas categorias de indivíduos. É o que aponta
Wacquant, para o qual o advento do Estado neoliberal impõe a proeminência do
Estado penal, cuja lógica é deixar de investir em políticas públicas para o
desenvolvimento socioeconômico da população para, em seguida, entregar as
classes marginalizadas às prisões (2001, p. 7). Esta seria, na verdade, a
função simbólica da pena e da punição de determinados comportamentos, qual
seja, o controle social das classes consideradas perigosas.
Neste ponto, vale ressaltar a reflexão de Vera Malaguti
sobre o que Wacquant chama de “administração penal dos rejeitos humanos”:
Ele demonstra como o neoliberalismo fez com que
governantes desconstruíssem o Estado de bem estar social para “priorizar a
administração penal dos rejeitos humanos”, conduzindo o subproletariado urbano
a uma sulfurosa marginalização. O outro movimento do poder é a introdução e
difusão sistemática e coordenada do “imaginário e de tecnologias
norte-americanas de segregação racial”, como é o caso da utilização do conceito
de gueto para a realidade francesa. A circulação desta cultura, dos papers aos
seriados para a TV, tem impedido análises corretas das relações entre classe,
lugar e pobreza. A articulação desses dois movimentos, o capital neoliberal que
precisa do aumento do controle de força sobre os que estão fora do mercado de
trabalho e a infestação de uma cultura policial e prisional norte-americana,
produziu um embaçamento e um limite dramático à discussão da “questão criminal”
e da questão penitenciária no Brasil. Esses limites propiciaram o que eu chamo
de “adesão subjetiva à bárbarie”, que produz a escalada do Estado policial em
todas as suas facetas sombrias: números astronômicos de execuções policiais
disfarçadas de autos de resistência, uso da prisão preventiva como rotina,
aumento das teias de vigilância e de invasões à privacidade, escárnio das
garantias e da defesa como se fossem embaraços anti-éticos à busca da segurança
pública. Não importa que tudo isso nos afaste cada vez mais de um convívio
aceitável nas nossas grandes cidades, cenário de tantas injustiças e
desigualdades sociais; o importante foi a construção de um senso-comum criminológico
que, da direita fascista à esquerda punitiva, se ajoelha no altar do dogma da
pena. Incorporam ambas o argumento mais definitivo para o capital
contemporâneo: é a punição que dará conta da conflitividade social, é a pena
que moraliza o capitalismo. E, como diria Pavarini, para cada colarinho branco
algemado no espetáculo das polícias (à la FBI ou SWAT), milhares de jovens
pobres jogados nas horrendas prisões brasileiras. O importante é a fé na
purificação pelo castigo, o grande ordenador social dos dias de hoje. (2012, p.
2-4).
Todo esse panorama pode ser refletido no caso de Rafael
Braga Vieira, inicialmente narrado. Conforme dito anteriormente, Rafael foi
preso e condenado por levar consigo duas garrafas plásticas contendo
desinfetante “Pinho Sol” e água sanitária. Polícia Civil, Ministério Público e
Poder Judiciário consideraram que o material era explosivo, do tipo “Coquetel
Molotov”, e que Rafael tinha claro intuito de provocar incêndio em pessoas ou
coisas durante manifestação de rua que acontecia na cidade do Rio de Janeiro.
Foram desconsiderados, no entanto, laudo pericial que
indicou ínfima possibilidade do material encontrado com Rafael funcionar como
“Coquetel Molotov”, o qual possui características diversas – exige, por
exemplo, recipiente de vidro, ao invés de recipiente de plástico -, indicando a
atipicidade da conduta denunciada, uma vez que não constituiu crime andar na
rua na posse de desinfetante e/ou água sanitária. Foram desconsiderados, ainda,
o depoimento de Rafael, que negou participar de manifestações e que sequer
sabia o que era “Coquetel Molotov”. O Poder Judiciário considerou, ainda, claro
o intuito de cometer crime de incêndio contra coisas ou pessoas tendo como
único fundamento o fato de que no momento da prisão do suposto flagrante
ocorria manifestação de rua e que, no mesmo dia, já teriam acontecidos
confrontos policiais.
Dessa forma, as circunstâncias da prisão de Rafael e a
deficiência da fundamentação da sentença condenatória demonstram que existiam
outras motivações para o seu encarceramento, que não a aplicação justa da norma
penal. Ao que parece, mais determinante foi o fato de Rafael ser morador de rua
e já ter cometido dois furtos – para os quais já havia sido condenado e
cumprido a pena arbitrada -, o que atestaria sua periculosidade e a necessidade
de retorno ao sistema carcerário, longe do convívio social, marcando um
processo inequívoco de higienização social, característica estrutural do
sistema penal.
Esse processo de seleção daqueles que ingressarão no
sistema carcerário, e a marca higienista que revela, tem origem na demanda por
ordem oriunda das classes dominantes, através da propagação do discurso do medo
do caos e da desordem que impõem estratégias de neutralização e disciplinamento
das camadas sociais empobrecidas. Essa cultura de medo acaba por gerar uma
política de segurança pública que tem como premissas o extermínio, a opressão
policial contra os grupos marginalizados e a violação de direitos de garantias
fundamentais das classes vulneráveis, eminentemente jovens negros e pobres como
é o caso de Rafael Braga Vieira (MALAGUTI, 2003).
Tal cultura do medo difundida na sociedade brasileira deve
ser analisada historicamente, encontrando suas origens no período pós-abolição
da escravidão, passando, posteriormente, pelas Reformas Urbanas, em especial
aquela realizada durante o governo Pereira Passos, e, mais atualmente, nos
processos de especulação imobiliária e transformações do espaço urbano para a
conquista do modelo de cidade-negócio, que afasta a população pobre para zonas
ainda mais marginalizadas. A estratégia, desde o final do século XIX, é a
mesma: manter o assujeitamento das classes consideradas indesejáveis, através
de uma repressão contínua que encontra respaldo no poder público e nas suas
instituições.
Conforme assevera Vera Malaguti, tais estratégias de
controle social que desembocam no processo de criminalização e de escolha dos
criminalizáveis são “uma resposta política às necessidades de ordem que vão
mudando no processo de acumulação de capital” (2009, p. 23), de modo que a
política criminal está historicamente ligada a essa demanda. Assim, para
Foucault, a lei e a justiça são pautadas por uma dissimetria de classe, de modo
que:
(…) seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é
feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que
ela feita para alguns e se aplica a outros; que em princípio ela obriga a todos
os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos
esclarecidas; que, ao contrário do que acontece com as leis políticas ou civis,
sua aplicação não se refere a todos da mesma forma; que nos tribunais não é a
sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social
encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem (…). (2009, p. 261).
Loïc Wacquant, da mesma forma, ao analisar a hiperinflação
do sistema prisional estadunidense, destaca que a prisão é uma instituição
política, que funciona como componente central do Estado, na medida em que
serve como mecanismo de controle da população marginalizada dos guetos – ou
favelas, no contexto brasileiro – através da criminalização da miséria. Para
Wacquant, as distorções sociais e econômicas do neoliberalismo necessitam da
efetividade da justiça criminal na base da estrutura de classes para que as
classes consideradas indesejáveis sejam retiradas do convívio social.
5. Conclusão
Rafael Braga Vieira não se encontra preso por ter
praticado uma conduta delituosa tão grave que sua liberdade colocasse em risco
a integridade física de outrem, ou a ordem democrática. Rafael foi preso em
flagrante por ser negro, pobre, morador de rua e ter antecedentes criminais. Ou
seja, a descrição perfeita de etiquetamento social narrada pela escola do labeling approach: Rafael se enquadra
na descrição de indesejado, de criminalizável, de alvo do sistema criminal por
ser quem é e pertencer à classe que pertence.
O conteúdo das garrafas de plástico nunca foram o
determinante para a sua prisão, é o que podemos inferir da sua condenação,
mesmo ante ao laudo pericial que concluiu não haver nas garrafas “mínima
possibilidade da quebra que possibilitaria o espalhamento do seu conteúdo
inflamável”, apresentando, portanto, “ínfima possibilidade de funcionar como
‘coquetel molotov’”.
Em realidade, apenas duas coisas estavam em jogo: a
necessidade de efetuar prisões e sustentar condenações, de modo que a população
voltasse a ter medo de sair às ruas para se manifestar contra a ordem vigente;
bem como a necessidade de retirar do convívio social (sobretudo da região
central da cidade, em meio à Copa das Confederações e vésperas da Copa do
Mundo, em que se vende uma imagem de cidade moderna e de democracia social
consolidada) representantes do refugo humano provenientes da segregação social
cada vez mais profunda produzida pelo capitalismo neoliberal.
A prisão de Rafael denota o caráter de sustentação do status quo vigente e disciplinação dos
corpos para a ordem do capital que o sistema criminal assume perante ao
questionamento das prioridades em sede de políticas públicas adotadas pelo
poder público do Estado do Rio de Janeiro. Sua condenação, por outro lado,
explicita a seletividade do sistema criminal (onde estão envolvidos não só as
forças policiais, mas também o magistrado, o membro do Ministério Público e o
juízo da Vara de Execuções Penais), pois todos os demais presos por suspeita de
prática de crimes contra o patrimônio público ou privado ou ataque à polícia
(justificativas para o eventual porte de “coquetel molotov”), respondem
processo em liberdade. Em sua maioria, os demais detidos são brancos,
universitários, de classe média e moradores das zonas nobres da cidade.
O processo de criminalização secundária evidencia-se na
escolha de Rafael como representante concreto da ameaça à ordem social vigente,
ainda que o mesmo negue o envolvimento nas manifestações que tinham como
objetivo o questionamento da destinação prioritária dos recursos públicos para
os setores capazes de gerar mais lucro para o Estado e o capital privado, em
detrimento dos setores básicos como saúde, educação e moradia. Não se trata
apenas de criminalizar a conduta de manifestar-se publicamente, mas de eleger
um indivíduo a ser responsabilizado por praticar “excessos no exercício do
direito de livre manifestação”, justificando, assim, a violenta e
desproporcional reação policial.
Tal escolha, não por acaso, coincide com a maior parte da
população carcerária brasileira. De acordo com a 7ª edição do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública[6], que reúne dados de 2012, 55% da
população carcerária brasileira tem entre 18 e 29 anos, e 61% dela é negra ou
parda. A prisão, antes de ser uma ferramenta de diminuição da violência e de
garantia da segurança, se configura, conforme Wacquant (2003), como uma
ferramenta de gerenciamento da miséria.
O caso de Rafael Braga Vieira ganhou notoriedade
internacional por ser o único preso no contexto de grandes manifestações no
Brasil condenado à pena de prisão em regime fechado. Várias entidades, como a
Anistia Internacional, mobilizaram-se em campanhas por sua liberdade; cartas de
várias partes do mundo tem chegado ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro e ao Instituto de Defensores de Direitos Humanos – que patrocina a
defesa de Rafael em sede de apelação criminal – expressando a indignação
perante a injustiça da manutenção da prisão de Rafael por tanto tempo; o caso
foi alvo de debates, atos públicos e assembleias populares, com o objetivo de
publicizá-lo e de afirmar que “ninguém ficará para traz” (lema utilizado pelos
ativistas e advogados que atuam nas manifestações), mesmo que Rafael não tenha
efetivamente feito parte das manifestações.
O questionamento que fica é: se Rafael tivesse sido preso
outro dia, quando não houvesse ato público no centro do Rio de Janeiro – ainda
que algemado pelos pés, preso por possuir artefato supostamente incendiário com
ínfima possibilidade de espalhar o conteúdo inflamável – seria lembrado pelos
ativistas e organizações? Ou seria “só mais um Silva que a estrela não brilha[7]” em meio aos jovens negros e pobres
presos em Bangu?
6. Referências bibliográficas
ARANHA, A. Quem é Rafael Braga
Vieira – em busca da resposta. Yahoo! Notícias Brasil, Rio de Janeiro, 10 dez.
2013. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/blogs/3-por-4/quem-%C3%A9-rafael-braga-vieira-em-busca-da-133032137.html#more-id>.
Acesso em: 24 jul. 2014.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal.
6.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro.
11.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de
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*Bacharel em Direito pela
Universidade Federal Fluminense. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) e advogada no
DDH.
**Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Sergipe. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) e advogada no
DDH.
[1] Quem é Rafael Braga Vieira – em
busca da resposta. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/blogs/3-por-4/quem-%C3%A9-rafael-braga-vieira-em-busca-da-133032137.html#more-id>. Acesso em: 24 jul. 2014.
[2] A legislação penal brasileira possui muitos exemplos que
demonstram a seletividade da norma penal, como a disparidade entre as penas
previstas para os crimes contra o patrimônio público e o privado. Como se vê, o
crime de roubo, tipificado como “proteção” ao patrimônio privado é punido mais
severamente do que o crime de sonegação fiscal, voltado para a “proteção” do
patrimônio público.
[3] A declaração do Governador foi
amplamente divulgada nos meios de comunicação. Como exemplo: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2510200701.htm>.
Acesso em: 26 jul. 2014.
[4] Informações disponíveis em: <http://vejamos.com.br/negros-e-pobres-sao-maioria-dos-presos-no-brasil/>.
Acesso em: 26 jul. 2014.
[5] Informações disponíveis em: <http://atualidadesdodireito.com.br/iab/files/sistema-penitenciario-jun-2012.pdf>.
Acesso em: 26 jul. 2014.
[6] Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. Anuário brasileiro de Segurança Pública. 7. ed. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2013-corrigido.pdf>.
Acesso em: 28 jul. 2014.
Fonte:http://www.publicadireito.com.br/publicacao/ufpb/livro.php?gt=230