Esse presidente não pode mais ser o comandante supremo de nossas Forças Armadas.
Por
O
governo, se assim podemos chamá-lo, acabou. Há um intruso na
Presidência da República e é preciso removê-lo antes que a peçonha
contamine o que ainda resta de estabilidade do sistema político, abalado
pela degenerescência dos poderes republicanos, e nesta listagem se
somam os poderes extra constitucionais, o poder econômico – corrupto e
corruptor – e a grande mídia, que manipula a informação e desinforma a
sociedade ao sabor de seus interesses específicos, mercantis, sempre
apartados dos interesses do país e de seu povo.
Da
última quarta-feira (24/5) pode-se dizer, não obstante as aparências,
que nada de novo, ou não esperado, ou temido, foi registrado. Funcionou o
velho script:
povo nas ruas e violência policial, a velha e cediça arma de que sempre
se valem os governos autoritários – por definição ilegítimos –, para
conter a expressão do sentimento popular. Nesse sentido, as cenas
brasilienses repetem, como farsa, aquelas que ficaram para a História
como o réquiem da ditadura: forças militares, comandadas por um grotesco
gal. Newton Cruz, a cavalo, tentando reprimir o grito nacional pelas Diretas-Já, que, por sinal, não por coincidência histórica, volta à ordem do dia.
Os
tais poderes que constituem o ‘sistema’ que nos governa, encangados,
recusam-se, em sua miopia, a ver o que é um quadro óbvio para qualquer
observador que enxergue para além de um palmo adiante do nariz: há algo
de novo nas entranhas do processo social brasileiro, algo que os
sismógrafos registram sem identificar o significado do fenômeno. Esse
algo novo começou a saltar à flor da terra em 2013 e cresce a cada dia,
anunciando uma ruptura social em gestação. Um de seus sintomas é a
mudança de qualidade das intervenções populares, alimentada agora por um
sentimento de desespero, desesperança e desilusão, com tudo (as
instituições) e com todos (seus líderes). Desesperança que se soma ao
generalizado sentimento de orfandade, levando à desmoralização dos
políticos, do sistema político e da política, para o que tanto concorrem
um Congresso deplorável, um Executivo fora da lei, um Judiciário que
viola a Constituição e um sistema de comunicação encardidamente
reacionário.
A
alteração do ânimo popular é alimentado por razões objetivas que se
agravam sem cessar, enquanto as chamadas classes dominantes e seus
delegados no Congresso e no Planalto traficam à tripa forra: desemprego,
recessão, corrupção larvar percorrendo todos os poderes da República,
redução de direitos sociais e trabalhistas, cassação de aposentadorias
dos mais pobres e dos que mais trabalham, restrições à prestação da
saúde pública gratuita, desmontagem da economia nacional. Enquanto isso –
embora gravíssimo, trata-se de apenas de um dado, não isolado – o ainda
ocupante do Planalto se reúne na garagem de sua residência oficial, nas
caladas da noite (expressão do procurador Rodrigo Janot) com um
gângster acuado pela Polícia, para traficar formas e modos de obstrução
da justiça! E outros negócios nada republicanos.
Eis
o caminho mais curto para alimentar no povo a descrença na democracia,
qual a praticamos. Eis o caminho mais curto para a emergência das
rupturas constitucionais ou de ‘salvadores da pátria’.
Nos momentos em que tais sentimentos se fizeram majoritários, a pátria pagou alto preço.
E
a grande imprensa – que age como sujeito nesse processo, agora e como
sempre – se revela surpresa quando o povo, assim agredido, sai às ruas, e
exerce seu papel de sujeito histórico, e protesta!
Até
aqui, dizíamos, a História se repetia sem sobressaltos, seguindo um
cardápio já conhecido. Eis que o intruso que ainda habita o Planalto –
acuado moralmente – resolve, irresponsavelmente, trazer para o proscênio
as Forças Armadas que, como é de seu dever constitucional, permaneciam
até aqui silentes e aquarteladas. Ao trazer as forças militares,
equipadas com armas de fogo de grosso calibre (fuzis e metralhadoras)
para o confronto com as massas populares, o presidente ilegítimo pôs em
risco a estabilidade constitucional-democrática.
Para
quem se preocupa com a democracia (uma florzinha frágil que precisa ser
regada todo dia, no dizer de Otávio Mangabeira) e para quem, até por
isso, zela pela imagem de nossas Forças Armadas, é deplorável vê-las,
por ordem de um presidente militantemente ilegítimo, combatendo, não
inimigos avançando sobre nossas fronteiras, mas concidadãos,
trabalhadores e assalariados, desempregados ou ameaçados de desemprego,
cujos direitos de expressão deveriam proteger. Tudo isso para substituir
a inepta, violenta, despreparada Policia Militar do Distrito Federal!
O
fato de o decreto infame já haver sido revogado, antes de amenizar o
crime, torna-o mais grave, pelo reconhecimento de sua absoluta
dispensabilidade.
Esse presidente não pode mais ser o comandante supremo de nossas Forças Armadas.
A
crise é política e para ela a solução só encontra um curso: a
legalidade democrática, a sustentação das instituições, preparando o
país para eleições livres e democráticas em 2018, aquelas em condições
de ‘passar o país a limpo’.
O
Congresso Nacional continuará como o espaço constitucional das
alternativas políticas. Mas esse Congresso –a pior composição desde
1946! –, carente de legitimidade, carece, igualmente, de autonomia, o
que devolve o poder ao povo e às ruas. A mobilização popular, que não
pode cessar, é legítimo instrumento de autodefesa de um povo sem
representação.
Nesse
sentido se impõem o avanço e ampliação da mobilização e uma proposta
unificadora para a saída para crise. Refiro-me à ampliação das políticas
de frente, com os partidos de esquerda e as centrais sindicais no
centro, mas caminhando para além deles, reunindo todas as forças
sociais, independentemente de opção ideológica, que estejam contra o
atual governo, e dispostas a lutar pela sua imediata derrogação,
sustando os malefícios que ainda pode cometer. Como um dos muitos bons
frutos das vitoriosas Frente Brasil Popular e Frente Povo sem Medo,
essa Frente ampla, amplíssima, como aquela que implodiu o Colégio
Eleitoral de 1984 montado pela ditadura para eleger seu delfim, é o
único instrumento com o qual pode contar a nação para impor ao Congresso
o fim das reformas antissociais e antinacionais e a convocação de
eleições diretas, já.
Sustentado
na mobilização popular, ou seja, com povo nas ruas e os sindicatos
preparados para a greve geral, essa Frente – e apenas ela – poderá
impedir a conciliação, por cima, já em curso, cujo objetivo declarado é
manter a infâmia de eleições indiretas, ilegítimas já na origem, pois
levadas a cabo por um Congresso sem representação. Essa eleição
indireta, defendida pela base parlamentar governista e pela grande
imprensa, é o instrumento da classe dominante para assegurar que,
trocando de presidente, tudo permaneça como está, e isto é tudo o que
não interessa ao povo e à nação. O Globo,
como o ministro Gilmar Mendes, não disfarça. Na edição desta quinta-
feira (25/5) nos brinda com esta pérola: “Agora é encontrar logo um novo
presidente para fazer exatamente o que Temer fazia – sem os encontros
com Joesley”.
O
antídoto democrático é a convocação de eleições diretas,
concomitantemente com a reforma política que assegure, pelo menos, a
votação em listas e o financiamento público das campanhas eleitorais,
pois realizar eleições sob as atuais regras é assegurar a sobrevivência
da miséria política.
O governo acabou. Enterre-se seu cadáver, que jaz insepulto.
Roberto Amaral
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia