Segunda, 2 de outubro de 2017
Um meliante profissional, com fortíssimos indícios e provas já postas, da prática permanente de formação de quadrilha, coação de testemunhas, destruição de provas, corrupção passiva ou lavagem de dinheiro é um atentado ambulante à ordem pública, à instrução criminal e à aplicação da lei penal.
Um meliante profissional, com fortíssimos indícios e provas já postas, da prática permanente de formação de quadrilha, coação de testemunhas, destruição de provas, corrupção passiva ou lavagem de dinheiro é um atentado ambulante à ordem pública, à instrução criminal e à aplicação da lei penal.
Por
Aldemario Araujo Castro

Em função dessas peripécias, o Senador Neves chegou a ser afastado do
exercício do mandato parlamentar por decisão monocrática do Ministro do
STF Edson Fachin. Também por decisão monocrática, o Ministro do STF
Marco Aurélio devolveu o exercício do mandato ao senador em questão.
Ocorre que na última terça-feira, dia 26 de setembro, a Primeira Turma
do Supremo, após recusar a determinação de prisão do representante das
Minas Gerais na Câmara Alta, decidiu, por três votos a dois, adotar uma
série de medidas cautelares, abrangidas: a) a suspensão do exercício do
mandato e b) a obrigatoriedade de recolhimento domiciliar noturno.
A referida decisão do Supremo Tribunal Federal, por uma de suas
turmas, reacendeu um intenso debate acerca da validade jurídica da
aplicação, pelo Judiciário, de medidas cautelares aos parlamentares
diante do disposto no art. 53, parágrafo segundo, da Constituição
("Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não
poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse
caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa
respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva
sobre a prisão").
Um considerável e respeitável número de operadores do direito
sustenta a impossibilidade jurídica de aplicação de medidas cautelares
aos parlamentares. Advogam que se a prisão é incabível também não é
viável a imposição de medidas alternativas. Essas últimas, a rigor,
somente seriam possíveis na medida em que a prisão também o fosse. Por
essa linha de pensamento, somente a casa legislativa pertinente poderia
deliberar pelo afastamento do exercício do mandato. Assim, estariam
resguardados e prestigiados: a) o voto popular; b) a cidadania; c) a
democracia e d) a separação de poderes.
É preciso, sobretudo na atual quadra da vida nacional, empreender um
importante esforço no campo das reflexões jurídicas para, resguardados
os direitos fundamentais e a separação de Poderes, viabilizar
ferramentas mais eficientes de combate à criminalidade generalizada
instalada nas mais altas esferas de condução do Poder Público. A
criminalidade organizada e sistêmica solapa o Estado Democrático de
Direito, suas instituições e o próprio exercício dos direitos
fundamentais por milhões de cidadãos. Assim, numa sociedade complexa e
plural não é possível, para casos de criminalidade com amplos efeitos
sociais, adotar critérios interpretativos individuais, excessivamente
formais, insatisfatórios e ineficientes para a legislação de combate à
delinquência institucionalizada. Existem situações marcadas pela prática
reiterada, pelo acusado, de uma variedade grande e articulada de
ilícitos de extrema gravidade. Um meliante profissional, com fortíssimos
indícios e provas já postas, da prática permanente de formação de
quadrilha, coação de testemunhas, destruição de provas, corrupção
passiva ou lavagem de dinheiro é um atentado ambulante à ordem pública, à
instrução criminal e à aplicação da lei penal. Assim, a prisão
preventiva e as demais medidas cautelares, notadamente na modalidade de
“garantia da ordem pública”, como meio de coartar a prática delituosa
contumaz, estará bem assentada no Código de Processo Penal (arts. 282,
312, 319 e 321) e na jurisprudência mais moderna (HC/STJ n. 332.586 e
HC/STF n. 95.024, por exemplo).
Não é possível vislumbrar, no aludido Código de Processo Penal,
indicação no sentido de que as medidas cautelares diversas da prisão
preventiva (que também é uma medida cautelar) somente podem ser
decretadas nas situações em que a prisão poderia ser efetivada.
Observe-se, em especial, a dicção do art. 282, inciso I, do CPP,
admitindo expressamente a adoção de medidas cautelares: a) diante da
necessidade de aplicação da lei penal; b) para resguardo da
investigação; c) para proteção da instrução criminal e d) para evitar a
prática de infrações penais. Portanto, as medidas cautelares penais
buscam proteger o processo ou a sociedade. Ademais, essas medidas não
são propriamente substitutivas da prisão, como sugere a literalidade do
parágrafo sexto do art. 282 do CPP. O comando constitucional superior,
presente no artigo quinto, inciso LXVI, orienta a inteligência da
aplicação das medidas cautelares ao definir, sem qualquer margem de
dúvida, a excepcionalidade da prisão e a liberdade como regra.
Chegamos a um ponto fundamental na análise dessa sensível questão da
aplicação de medidas cautelares penais aos parlamentares. A proteção
constitucional do citado art. 53 está voltada para a garantia do
exercício do mandato de forma altiva, independente e nos marcos da
juridicidade. Não se volta, a prerrogativa, para construir uma muralha
de proteção em relação aos desvios claros e evidentes dos mais
elementares padrões de regularidade ético-jurídicos. Essa conclusão é
possível diante da constatação de que: a) a proteção ao titular do
mandato é excepcional e deve ser interpretada restritivamente; b) a
Constituição aponta quais os valores e princípios a serem prestigiados
na atuação pública, particularmente a moralidade, a probidade, a
legalidade e a impessoalidade e c) a Constituição qualifica o abuso de
prerrogativas asseguradas ao membro do Congresso Nacional como algo
incompatível com o decoro parlamentar (art. 55, parágrafo primeiro). Não
custa registrar que um dos pilares da ideia de República é a efetiva
possibilidade de responsabilização dos agentes políticos. Assim, não faz
o menor sentido, salvo diante da presença de um apego a um formalismo
equivocado e um raciocínio dificultador do combate aos ilícitos mais
repugnantes no trato da coisa pública, subtrair os parlamentares do raio
de ação das medidas cautelares penais quando presentes as
circunstâncias fáticas determinantes da adoção dessas providências.
Nessa linha, a prerrogativa, deferida para o exercício escorreito do
mandato, seria transformada num privilégio odioso, impensável numa
República, a proteger o transgressor e suas transgressões.
Vejamos a situação absurda que o raciocínio pela impossibilidade de
aplicação de medidas cautelares penais aos parlamentares pode ensejar.
Diante de elementos robustos demonstrando a prática de ilícitos
gravíssimos, inclusive a utilização do mandato parlamentar como
instrumento essencial da concretização de desvios, o Poder Judiciário,
especificamente o Supremo Tribunal Federal, declararia a existência do
quadro dantesco e permaneceria, assim como toda a sociedade,
rigorosamente inerte assistindo a atuação do parlamentar malfeitor e
torcendo pelo arrependimento do dito cujo. É possível afirmar com
convicção a incompatibilidade com a República e o Estado Democrático de
Direito, informado por todos os valores e princípios antes destacados
(moralidade, probidade, legalidade, impessoalidade, etc), da constatação
segura da prática de irregularidades, principalmente por parlamentares
que deviam ser exemplos de conduta reta e irrepreensível, e a
impossibilidade jurídico-institucional de barrar (cautelarmente) a
continuidade dos malefícios.
Ao julgar o Habeas Corpus n. 89.417, em 2006, a Primeira Turma do
STF, sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia, consignou (na ementa na
decisão): “Os elementos contidos nos autos impõem interpretação que
considere mais que a regra proibitiva da prisão de parlamentar,
isoladamente, como previsto no art. 53, § 2º, da Constituição da
República. Há de se buscar interpretação que conduza à aplicação efetiva
e eficaz do sistema constitucional como um todo. A norma constitucional
que cuida da imunidade parlamentar e da proibição de prisão do membro
de órgão legislativo não pode ser tomada em sua literalidade, menos
ainda como regra isolada do sistema constitucional. Os princípios
determinam a interpretação e aplicação corretas da norma, sempre se
considerando os fins a que ela se destina”. A eminente relatora afirmou
ainda: “… imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo
exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins
constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a
consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio. E
esse, sabe-se, é mais uma agressão aos princípios constitucionais,
ênfase dada ao da igualdade de todos na lei”.
Cabe uma palavra acerca da eventual apreciação pela casa legislativa
da imposição de medidas cautelares penais ao seu membro. Ora, diante da
constatação da necessidade de imposição das providências, notadamente
pelo rigor de análise do Supremo Tribunal Federal, estando em risco o
processo ou a sociedade, como destacado, não é pertinente introduzir um
juízo estritamente político na avaliação das circunstâncias condutoras
da decisão. A toda evidência, o jogo político-partidário não é o mais
apropriado para aferir a necessidade da adoção de medidas cautelares. A
rigor, a ordem jurídica não conferiu, nem deveria ter conferido,
competência dessa natureza à casa legislativa. O ambiente político atual
acentua essa inadequação diante da quantidade de parlamentares
investigados e processados por ilícitos idênticos ou semelhantes aos
imputados ao Senador Aécio Neves. Já a apreciação da prisão em flagrante
pela casa legislativa faz todo sentido. Essa não decorre
necessariamente de atuação judicial criteriosa e pode ter sido efetivada
como forma de atacar ou fragilizar o exercício enérgico e independente
do mandato parlamentar.
*Aldemario Araujo Castro é advogado, Mestre em Direito,
Procurador da Fazenda Nacional e professor da Universidade Católica de
Brasília.