sábado, 25 de abril de 2020

REFLEXÕES SOBRE OS PROCESSOS DE MOSCOU

Sábado, 25 de abril de 2020
Por
Juan Ricthelly


As revoluções podem ter muitas origens e explicações, permeando vários ângulos, numa tentativa de se compreender suas razões e porquês, passando pela história, filosofia, antropologia, economia, geografia, sociologia, psicologia e tantas outras áreas do conhecimento humano.
A Revolução Russa é um exemplo que foi analisado sob vários desses aspectos, possuindo vasto material de estudo a quem interessar. Não é o objetivo do presente texto adentrar nos detalhes dessa revolução que marcou o século XX, intelectuais muito mais qualificados já fizeram esse trabalho, cito A História da Revolução Russa de Trotsky, para quem quiser se aprofundar no assunto, ou até a trilogia biográfica de Isaac Deustcher sobre Trotsky.

Inclusive essa é a sugestão que normalmente dou, a quem não tem tempo de se aprofundar em leituras e estudos, sobre um determinado acontecimento ou período histórico, busque uma biografia de alguma pessoa chave daquele momento, e devore no seu próprio ritmo.
O objetivo geral aqui, é fazer algumas reflexões sobre uma sequência de episódios posteriores à Revolução de Outubro, mas que são desdobramentos históricos diretos dela, conhecidos como, os Processos de Moscou.
Com a morte de Lênin em 1924, abriu-se uma disputa por sua sucessão, Trotsky era visto como o seu sucessor natural, em razão do papel que desempenhou na Revolução de Outubro de 1917, e posteriormente como criador do Exército Vermelho, que foi decisivo na defesa da revolução, enfrentando inimigos internos numa Guerra Civil, e externos, repelindo a invasão de 13 países estrangeiros.
Ao final dessa disputa, venceu Stálin, que mesmo não tendo o intelecto de seu rival, era inegavelmente um gênio da articulação política burocrática do partido, não tendo pudores em recorrer a métodos violentos e pouco convencionais contra correligionários, para fazer valer sua vontade política.
No princípio, se aliou à Kamenev e Zinoviev, para isolar Trotsky no Politburo, após ter êxito nessa primeira etapa, se juntou à Bukharin, derrotando seus dois primeiros aliados, que acabaram se aliando à Trotsky posteriormente, e em outro momento, rompeu também com Bukharin.
Mencionei todos esses nomes estranhos para a maioria das pessoas, e a dinâmica superficial de suas relações, por estarem todos relacionados ao tema central deste texto.
Os Processos de Moscou, são um conjunto de julgamentos que condenaram vários opositores políticos de Stálin entre 1936 e 1938, e estão inseridos dentro de um capítulo maior da história da URSS[1], conhecido como o Grande Expurgo, onde se liquidou cerca de dois terços dos quadros do Partido Comunista da URSS, ao menos 5.000 oficiais do Exército acima da patente de major, 13 de 15 generais de cinco estrelas do Exército Vermelho e inúmeros civis, considerando-os todos "inimigos do povo".
O revolucionário russo-belga Victor Serge, faz um ótimo resumo da situação no prefácio de 1938 de seu livro O Ano I da Revolução Russa:
“Dentre os homens cujos nomes serão encontrados nas páginas seguintes deste livro, apenas um sobrevive, Trotsky[2], perseguido há dez anos e refugiado no México. Lenin, Dzerjinski e Tchitcherin morreram antes, evitando assim a prostração. Zinoviev, Kamenev, Rykov e Bukharin foram fuzilados. Entre os combatentes da insurreição de 1917, o herói de Moscou, Muralov, foi fuzilado; Antonov-Ovseenko, que dirigiu o assalto ao Palácio de Inverno, desapareceu na prisão; Krylenko, Dybenko, Chliapnikov, Glebov-Avilov, todos os membros do primeiro Conselho dos Comissários do Povo, tiveram a mesma sorte, assim como Smilga, que dirigia a frota do Báltico, e Riazanov; Sokolnikov e Bubnov, do Bureau político da insurreição estão presos, se é que ainda vivem;
Karakhan, negociador em Brest-Litovsk, foi fuzilado; dos dois primeiros dirigentes da Ucrânia soviética, um Piatakov, foi fuzilado, e o outro, Racovski, velho alquebrado, está na prisão; os heróis das batalhas de Sviajsk e do Volga, Ivan Smirnov, Rosengolts e Tukhatchevsky foram fuzilados;
Raskolnikov, posto fora da lei, desapareceu; dos combatentes dos Urais, Mratchkovsky foi fuzilado, Bieloborodov desapareceu na prisão; Sapronov e Vladimir Smirnov, combatentes de Moscou, desapareceram na prisão; o mesmo aconteceu com Preobrajenski, o teórico do comunismo de guerra; Sosnovski, porta-voz do Partido Bolchevique no primeiro Executivo Central dos sovietes da ditadura, foi fuzilado; Enukidze, primeiro secretário desse Executivo, foi fuzilado. A companheira de Lenin, Nadežda Krupskaja, terminou seus dias não se sabe em qual cativeiro... Dentre os homens da revolução alemã, Joffe suicidou-se, Karl Radek está preso; Krestinski, que continuou atuando na Alemanha, foi fuzilado. Da oposição socialista-revolucionária de 1918, Maria Spiridonova, Trutovski, Kamkov, Karelin, provavelmente sobrevivam, porém na prisão já há 18 anos. Blumkin, que aderiu ao Partido Comunista, foi fuzilado.
Entre os homens que, no Ano II, asseguraram a vitória da revolução, pequeno número ainda vive: Kork, Iakir, Uborevitch, Primakov, Muklevitch, chefes militares dos primeiros exércitos vermelhos, foram fuzilados; fuzilados os defensores de Petrogrado, Evdokimov e Okudjava, Eliava; fuzilado Fayzulla Khodzhayev, que teve papel de grande importância na sovietização da Ásia Central; desaparecido na prisão, o presidente do Conselho dos Comissários dos Sovietes da Hungria, Béla Kun..”
Um dos aspectos mais interessantes da observação de Serge, com desfechos bastante infelizes aos nomes mencionados, é a ideia de que para além das principais figuras públicas da revolução, houve outras pessoas que desempenharam papéis importantes e decisivos, na sua maior parte desconhecidas, nos trazendo a reflexão de que, uma revolução se faz coletivamente, apesar dos personalismos que a história e o público consagram.
Embora Lênin, Trotsky e Stálin sejam os nomes mais conhecidos, com todos os seus méritos e deméritos, não fizeram a revolução sozinhos.

Segundo Fernando Horta, em texto de 2017, onde relembra os 80 anos dos Processos de Moscou[3], o objetivo de tais julgamentos públicos, era o de criar uma ética e uma moral massificada que se impõe, a partir da teatralidade judiciária, como uma nova linha social de diferenciação entre o que é “certo” e aceitável e o que é “errado” e, portanto, alvo de punição e perseguição.
Uma das acusações bastante comum nos julgamentos, era a de que os réus faziam parte de facções terroristas, responsáveis por supostos motins contrarrevolucionários, com o propósito de atacar a revolução, assassinar seus líderes e dividir o povo soviético.
Nesse cenário de terror, a figura dos delatores ganhou um papel central, pois quando se percebeu o caráter político dos julgamentos, o número de delações sobre integrantes de “organizações criminosas” cresceu exponencialmente, de modo que, não era incomum companheiros de outrora se delatarem, numa tentativa de se salvarem apontando o dedo para outras pessoas, alimentando assim, um ciclo, onde não interessava a verdade dos fatos ou qualquer ideia de justiça.
Também não era incomum acusações que invocavam uma certa moral revolucionária traída ou vilipendiada por parte dos acusados, que não raras vezes, haviam dedicado suas vidas à revolução.
Os Processos de Moscou são um triste legado da história socialista, que trazem lições importantes para a esquerda do presente e do futuro, sobre como a ideia de justiça revolucionária, pode facilmente cair na armadilha tentadora de destruir vidas e reputações, em nome de uma moral ou ética sem definição muito clara, abrindo a possibilidade de uma instrumentalização distorcida de ideais que em algum momento foram puros em sua essência.
Boa parte das revoluções, são filhas do sonho e da utopia, não estando livres da possibilidade de degeneração, sendo assim, que aprendamos com os erros do passado, para que não voltemos a repeti-los na construção da revolução que sonhamos, e principalmente na consagração e consolidação dessa mesma revolução.
Que jamais nos esqueçamos dos Processos de Moscou, e tenhamos a capacidade de fazer uma revolução que não trairá seus pais, abraçando a pior face de suas antíteses, o pesadelo e a distopia.
“A vida é bela. Que as futuras gerações a livrem de todo mal e opressão" Trotsky
[1] União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
[2] Trotsky foi assassinado dois anos depois, em 1940 no México por ordem de Stálin.