quinta-feira, 16 de abril de 2020

Sanitarista Contemporâneo: profissional necessário ao fortalecimento do SUS

Quinta, 16 de abril de 2020
Por
Fátima Sousa*

No barco que rema contra o coronavírus, falta um profissional essencial: os novos sanitaristas
Esse texto é destinado a quem ainda não conhece o quanto é necessária a existência de um(a) profissional intitulado(a) de Sanitarista. E aqui não me refiro aos clássicos sanitaristas do final do século XIX e início do século XX, a exemplo de Adolfo Lutz, Carlos Chagas, Emílio Ribas, Oswaldo Cruz ou Vital Brasil, entre muitos que lutaram para livrar os campos e as cidades das epidemias e endemias que assolavam o país à época.
Escrevo esse texto com as tintas de um Brasil contemporâneo, que necessita de um(a) outro(a) profissional, que busca compreender que hoje os nossos compromissos na sociedade e na saúde são de naturezas diversas. Alguém cuja formação profissional deveria atender a um perfil interdisciplinar e intersetorial, capaz de responder os desafios atuais à construção de um novo modelo de atenção e gestão no âmbito do SUS, orientados(as) pelos valores e princípios do Projeto da Reforma Sanitária brasileira.
Entre as tantas razões apresentadas para criação e implantação de cursos na área da saúde coletiva em nível de graduação, destaco: 1) a necessidade de avançar mais rapidamente na reorientação do modelo de atenção à saúde dominante; 2) o menor impacto potencial da pós-graduação em relação a graduação em vista do custo e benefícios possíveis; e 3) prolongado tempo de formação de sanitaristas que dependia da graduação em outros cursos e da pós graduação. Ou seja, não se justificava esperar o tempo de uma graduação nos diversos cursos da área da saúde, para depois capacitar os profissionais em Saúde Coletiva. Por melhor que seja o ensino das disciplinas dessa área nos cursos de graduação, as competências adquiridas são limitadas e subalternas ao modelo médico hegemônico, pelo menos era assim até 2008.
Até então, esta formação em Saúde Coletiva vinha ocorrendo, basicamente, sob duas modalidades: por meio de disciplinas inseridas nos currículos de diversos cursos da área de Saúde e no âmbito da pós-graduação latu sensu(Atualização, Aperfeiçoamento, Especialização e Residência) e stricto sensu (Mestrado e Doutorado). 
À época, o discurso da “carência” de sanitaristas qualificados(as) para se enraizar nos diversos e complexos territórios dos 5.570 municípios do pais, para além das demandas das Secretarias Estaduais de Saúde, do Ministério da Saúde e de suas agencias reguladoras, confirmou a tese de que o SUS, de fato, necessitava de um(a) graduado(a) em Saúde Coletiva, com perfil profissional que o qualifique como um ator estratégico e com identidade específica não garantida por outras graduações disponíveis.
Portanto, o projeto de criação de cursos de Graduação em Saúde Coletiva (GSC) no Brasil passou por um longo processo de amadurecimento a partir de várias décadas de redefinição da formação dos(as) profissionais de saúde.
O debate ampliou-se para além dos muros da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), adentrando as instâncias gestoras do SUS e firmando-se na oportunidade virtuosa do Programa de Apoio à Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), criado através do Decreto n° 6.096/2007, que impulsionou as várias Instituições de Ensino Superior (IES) a apresentarem propostas  de criação dos cursos, com as mais variadas terminologias, sem perder de vista, por um lado, as convergências na centralidade dos valores, princípios e objetivos tático-estratégico-operacional a formação de profissionais em Saúde Coletiva. Por outro, as diversidades populacionais e complexidades loco-regionais no tocante às situações-problemas dos processos de saúde-doença-cuidado.
Desde 2008 o número de IES ofertantes do curso foi se ampliando. Mas vale registrar as primeiras Universidades Federais a implantarem os GSC, a saber: na Universidade Federal do Acre, Universidade de Brasília (campus Ceilândia), seguidas pelas Universidades Federais do Rio de Janeiro, Bahia, Paraná e Rio Grande do Sul, pela UnB (campus Darcy Ribeiro) entre outras que somam 23 cursos na atualidade, vinculados ao Fórum de Coordenadores dos Cursos de Graduação em Saúde Coletiva da ABRASCO.
A multiplicidade dessas nomenclaturas reflete a complexidade do campo da saúde coletiva e a perspectiva paradigmática ao aprofundamento de conhecimentos que abrigue diversos saberes, variadas práticas, comprometidas com a defesa da vida e da saúde com o direito humano fundamento.
Afinal, quem são esses(as) profissionais intitulados(as) Sanitaristas?  
Os(As) sanitaristas contemporâneos(as) são profissionais generalistas de nível superior que vêm sendo formados(as) desde 2008, capacitados(as) para o exercício profissional, com base no rigor ético-filosófico, teórico-científico e metodológico. São preparados(as) para conhecerem e responderem às necessidades e expectativas de saúde da população e atuarem na gestão dos sistemas e serviços de saúde em todos os níveis de atenção, de âmbito local, municipal, regional, estadual e nacional, públicos e suplementares, com ênfase no trabalho interprofissional(multiprofissional), práticas integrativas, crítica, reflexiva e senso de justiça social e sanitária.
Do ponto de vista do saber, a saúde coletiva se articula em um tripé interdisciplinar composto pela Epidemiologia, a Administração e Planejamento em Saúde e as Ciências Sociais em Saúde, com um enfoque transdisciplinar, que envolve disciplinas como a Demografia, Estatística, Informação e Comunicação, Ecologia, Geografia, Antropologia, Economia, Sociologia, História e Ciências Políticas, entre outras.
Enquanto prática, a Saúde Coletiva propõe um novo modo de organização do processo de trabalho em saúde que enfatiza a promoção da saúde, a prevenção de riscos e agravos, a reorientação da assistência a doentes e a melhoria da qualidade de vida, privilegiando mudanças nos modos de vida e nas relações entre os sujeitos sociais envolvidos no cuidado à saúde da população.
Todos(as) precisam estar no mesmo barco, remando contra a correnteza do coronavírus e cabe aos sanitaristas desenvolverem estudos e análises que envolvem a produção de informes e boletins epidemiológicos em Salas de Situação em Saúde; planejamento e análise de políticas públicas; ações de gestão da informação e tradução do conhecimento; educação em saúde; comunicação de risco; realizar diagnósticos e vistorias na área de saúde pública; atuação na saúde mental em tempos de isolamento social; elaboração de sínteses de evidências; questões éticas relacionadas a pandemia; ações de prevenção com trabalhadores de delivery; somente para citar algumas das inúmeras atividades que podem ser realizadas.
A formação do(a) Sanitarista é reconhecida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e sua presença é essencial ao fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) e na Rede Integrada dos Serviços de Saúde para a consolidação do SUS. Um(a) profissional de tamanha envergadura, formado(a) por sólidas universidades públicas do país, não pode estar à sombra, em particular, num momento em que uma grave crise sanitária assola o Brasil, na qual os municípios se encontram com déficit de braços fortes e aptos a remarem em águas revoltas.
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*Fátima Sousa — Paraibana, 40 anos dedicados a saúde e a gestão pública; 
Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília;
Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais; 
Doutora Honoris Causa;
Implantou o ‘Saúde da Família’ no Brasil, depois do sucesso na Paraíba e em São Paulo capital; 
Implantou os Agentes Comunitários de Saúde;
Dirigiu a Faculdade de Saúde da UnB: 5 cursos avaliados com nota máxima;
Lutou pela criação do SUS na constituinte de 1988;
Premiada pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.