sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Os desafios da nova ordem em disputa

Sexta, 21 de novembro de 2025

  • Os desafios da nova ordem em disputa

  • Roberto Amaral*

    Vivemos as inquietações do processo de construção de uma “nova ordem mundial”, algo a lembrar as tensões sofridas em meio às duas últimas guerras mundiais, que, ao preço conhecido, redesenharam o mundo, sua política, sua geografia e sua economia.

  • Os tempos de hoje, herdeiros daquelas conflagrações e da “Guerra Fria” (sua continuidade em novos termos) — e de seu principal fruto, o colapso da URSS, com a reconfiguração do mundo e da visão de mundo que representava a promessa socialista —, não lograram proporcionar o convívio com a paz: guerra da Coreia, invasão do Vietnã, as guerras de libertação nacional espalhadas pelo mundo, a hecatombe que se abateu sobre o chamado Oriente Médio etc. Passamos a lidar com a amarga sensação de viver em intervalos de guerras, pois assim a humanidade atravessou todo o século passado, e assim estamos caminhando nas primeiras décadas deste terceiro milênio, sem sabermos que guerra é esta do nosso tempo, e muito menos para onde ela está nos levando.

  • Sua raiz é, ainda, a disputa pela hegemonia mundial, e esta não está resolvida — nem jamais estará —, pois as soluções historicamente conhecidas são sempre pro tempore. Assim, podemos dizer que tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra Mundial do século passado eram inevitáveis, pois atendiam a necessidades de domínio e poder de que tanto carece o imperialismo, Moloch que mais tem fome quanto mais se alimenta da dieta do dominado.
    O fato novo, no quadro de guerra explícita, terá sido, nos idos do século passado, a “Guerra Fria”: o engenho político que, ao administrar as disputas, adiou o conflito temido. A polaridade dos arsenais atômicos, levados a extremos de destruição impensáveis, convenceu os senhores do mundo do desatino de um conflito que não ensejava a possibilidade de vencedores.

  • Em outros termos, a iminência da destruição absoluta, tornada factualmente possível, faria da paz um imperativo. O medo, ou o instinto de sobrevivência, manteve a disputa em níveis de certa razoabilidade, embora o antagonismo entre as potências produzisse ou amplificasse confrontos mortíferos na periferia do sistema. É o caráter do cenário internacional de hoje, pontuado por focos de tensão e de conflitos de toda ordem: é a paz possível, a paz assegurada por guerras sob o controle das superpotências; guerras que não terminam, que se sucedem umas às outras, enquanto afastam do horizonte imediato o grande embate do fim dos tempos.
    A disputa pela hegemonia se mantém de pé, mas a “grande guerra”, agora, opera-se “pelas beiradas”. A Segunda Guerra Mundial (1939–1945) pôs em cena a dissensão intercapitalista ao opor o Eixo (Alemanha, Japão, Itália) aos Aliados, condomínio que reunia, à frente de todos, os EUA e a URSS (invadida pela Alemanha), cujas respectivas vitórias políticas, militares e territoriais impuseram a dita Guerra Fria. Vencida a ameaça nazista e superado o exercício intercapitalista, o conflito dos dois mundos passava a ser o confronto dos blocos comunista e capitalista. O enredo muda.

  • Vivemos uma outra Guerra Fria, coerente com os desafios de hoje: um intermezzo entre a polaridade comercial, política e militar escancarada (EUA  China) e seu esperável desfecho, gestado nas entranhas do processo histórico.

  • No desenho deste cenário em construção, os países da periferia do capitalismo não são arquitetos, mas nos incumbe saber que papel desejamos e podemos desempenhar; que espaço precisamos defender; que projetos de sociedade, nação, país podemos perseguir; é o espaço que as circunstâncias de hoje nos ensejam. É o que ditam nosso tamanho e nossa população, e é o que dita a realidade geopolítica que nos faz, brasileiros, irmãos do México.
    O giro conservador que percorre o mundo como rastilho de pólvora, à beira da naturalização, e com o qual hoje convivemos — em nosso continente e em casa — não é um determinismo, muito menos capricho dos deuses. Fenômeno histórico, precisa ser compreendido, pois esta é a melhor, senão a única forma de conter seu avanço.  

  • O enfrentamento que nos incumbe é político-ideológico, e só adquire sentido quando se transforma em ação. Os recuos do passado abriram as sendas que possibilitaram o quase livre caminhar do fascismo e de suas variações históricas, todas fundadas na brutalidade devastadora das liberdades, espancando esperanças, sonhos, projetos de uma civilização minimamente digna.

  • Daí a promoção da violência, de mãos dadas com o farsesco clamor pelo seu combate — este, o novo cantochão da direita, no mundo, e aqui e agora, devolvendo aos arquivos as prédicas sobre liberdade e democracia. Não se trata da violência larvar, intrínseca à sociedade de classes (violência que se nega, que se escamoteia): trata-se da violência dos aparelhos repressores dos Estados, que caminha da repressão indiscriminada de imigrantes ao genocídio de palestinos e a destruição de Gaza.

  • Todos estamos e devemos estar preocupados com nosso processo eleitoral, mas ele precisa ser analisado e enfrentado como desdobramento de fenômeno ainda maior, e mais importante, porque fonte de tudo: o crescimento das ideologias e da ação concertada da direita, da extrema-direita e dos reacionários de um modo geral, e sua forte influência sobre as massas populares e, portanto, sobre o comportamento político de nosso povo, como estamos vendo mais claramente desde 2018, como vimos em 2022 e como poderemos ver em 2026.

  • Este é o fato, concreto e contundente; mas não encerra a história toda: o dever da interpretação sociológica, superando a aparência do fenômeno, é identificar sua essência, os condicionantes da formação do pensamento de direita no Brasil, sua gênese e o desenvolvimento que vem alcançando nas últimas décadas, quando a leitura do processo social que antecedeu o fim da ditadura — nomeadamente a partir de 2002, com a ascensão de governos de centro-esquerda — sugeria o reencontro do projeto nacional-democrático, com justificadas aspirações de justiça social.

  • A reversão de expectativas não foi abrupta — raramente é. Em todo o mundo, a social-democracia vinha se revelando inepta para enfrentar os desafios impostos pelo mundo real. Cessada a “ameaça comunista”, o novo fantasma era a crise social (uma vez mais o desemprego, agora acicatado pela crise do trabalho; a brutal e crescente concentração de renda), quando mais alto era o desenvolvimento econômico, científico e tecnológico.

  • Cresceram as disparidades entre as nações e, dentro delas, entre seus povos.

  • No Brasil, os sinais de desarranjo — ou desencanto das massas — já poderiam ser vistos a partir dos idos de 2013. O desenho retrata o avanço do pensamento e da ação da direita, com suas vinculações internacionais, palmilhando o fracasso do neoliberalismo. Ela salta das ruas, muitas vezes seguindo as regras do jogo dito democrático-representativo burguês, para conquistar a centralidade do poder no mundo que o capitalismo globaliza para melhor governar.

  • Refiro-me, evidentemente, à hegemonia dos EUA e, neles, à ascensão do trumpismo, o novo farol do pensamento e da ação articulada da direita, da direita tout court e da direita belicosa no mundo.
    No Brasil, o registro óbvio e inevitável é o da ascensão da extrema-direita, hegemonizada pelo bolsonarismo. Trata-se de fato objetivo, nada obstante o insucesso desse campo na eleição presidencial de 2022 e a frustração do golpe de 8 de janeiro de 2023, após maquinação de mais de quatro anos e comprometimento dos altos escalões das Forças Armadas. Maquinação que permanece na ordem do dia, pois não contou, até aqui, com ampla rejeição da sociedade.

  • Assim, põe-se de manifesto a complexidade do fenômeno, que não é uma contingência nossa, e não é fenômeno apenas político, mas igualmente econômico, social e cultural; e, em todas as hipóteses, interfere na qualidade do poder e na estabilidade da ordem internacional, quando, em todo o mundo — e em particular entre nós —, cresce (embora ainda livre do acirramento merecido) o conflito inerente à sociedade de classes, que o sistema, ainda quando governado pela centro-esquerda (em condomínio com a direita dita civilizada), cuida de naturalizar.

  • Trata-se de processo, repito, que insinua configuração global. Mas, sem ignorar que nenhum país é uma autarquia política, cuidemos, pois,  nossa história e do presente que nos aflige, para podermos modificá-lo conscientes de nossa contingência de país no qual o processo de mudanças se converte na conservação do statu quo, e o mantra da ordem nos manda evitar qualquer risco de ruptura. É a ideologia reacionária da conciliação, servidora da Ordem, mãe do atraso.
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  • Fogo no parque oligárquico — Em país que se desindustrializa, o horizonte da burguesia residente é a especulação financeira: Daniel Vorcaro, preso quando tentava fugir do país, é a contrafação do Barão de Mauá que a Faria Lima e o estamento puderam produzir. O estouro do Banco Master é apenas mais um episódio de uma série: Banco Nacional, Bamerindus, Banco Santos, Banco Rural, Banco Halles, Banco Econômico... Para Maria Cristina Fernandes, colunista de mão cheia do Valor, a “prisão de Vorcaro assusta mais a política que a de Bolsonaro”. Quem mais, além dos governadores de RJ e DF, tem culpa nesse cartório e muita explicação a oferecer à Justiça e à sociedade? A punção do tumor se deveu a investigações da PF, cujos recursos a direita, na Câmara, precatadamente forceja por reduzir.

  • Palestina abandonada — A ONU produziu uma das páginas mais lamentáveis de sua história na última segunda-feira (17/11), quando o Conselho de Segurança acatou o plano neocolonial da autocracia estadunidense para consolidar a tomada de Gaza. Rússia e China, que poderiam e deveriam ter vetado a ignomínia, escolheram se abster. Países árabes e Autoridade Palestina, que tinham a obrigação — inclusive moral — de se opor à espoliação, não o fizeram. É solitário morrer em Gaza.

  • País no espelho – De acordo com o MDS, das 95 milhões de pessoas inscritas no CadÚnico, que abriga a parcela mais vulnerável da população brasileira, mais de 60 milhões se declaram negras. Dentre elas, mais de 37 milhões são mulheres pretas e pardas. Muito além de um feriado nacional, o Dia da Consciência Negra (20/11) é uma data para reflexão do país como um todo.

  • *Com a colaboração de Pedro Amaral