Muita gente se pergunta porque a
  tática do MPL de fechar as ruas deu certo em 2013 e não estaria tendo tanto
  sucesso três anos depois. A constatação faz sentido e tem tudo a ver com o
  novo mote para a repressão violenta: o trajeto. 
O roteiro é sempre o mesmo enlatado:
  pessoas se juntam para se manifestar, o Estado diz que não concorda com o
  trajeto apresentado, diversos policiais infiltrados “provocam” os colegas
  fardados, e quando os manifestantes pisam um ladrilho fora do estipulado,
  chovem bombas, balas de borracha e gás de pimenta.
 
Alguns jovens periféricos, já de saco
  cheio dos abusos policiais em seus bairros, se revoltam e quebram algumas
  vidraças de bancos, fazem barricadas de lixo e atiram qualquer coisa nas
  tropas como forma de autodefesa. Inteligente ou não, legitimo ou não,
  estratégico ou não, isto não vem do “nada político” como muitos
  “especialistas” têm dito. É preciso entender os porquês. 
“Muita gente não consegue chegar no
  horário no trabalho porque diariamente dá problema na CPTM, e ainda corre o
  risco de ser demitida”, afirmou uma manifestante na reunião aberta da última
  quinta-feira, em frente à prefeitura de São Paulo. 
Como não poderia deixar de ser, a
  dita “grande”, mas também decadente, imprensa prefere investir em fotógrafos
  e cinegrafistas para explorar até a última gota de suor as depredações
  secundárias, sem buscar qualquer análise sobre seu motivo. Nos textos
  redigidos é possível constatar a mesma “preguiça calculada”. E tomam a parte
  pelo todo. Mal percebem que a maioria esmagadora dos manifestantes, mesmo
  tendo motivos de sobra para o revide, ficam como baratas tontas dando voltas
  pelas ruas fechadas (pela polícia neste caso) da cidade buscando abrigo ou
  fuga. Pior ainda, editores ignoram que muitas vezes a polícia aponta suas
  miras abertamente aos próprios colegas de redação. 
 
Pois bem. Em 2013, o MPL ocupou por
  duas vezes a 23 de maio, uma vez a Marginal Pinheiros, mais algumas tantas
  vezes outros pontos da cidade, especialmente o centro e a região da avenida
  Faria Lima. Também em 2013 a polícia não desfrutava de uma tremenda “tarifa
  zero” nas verbas públicas para comprar armaduras, blindados, armas letais e
  menos letais de toda sorte, e assim por diante. Vale lembrar que uma bomba de
  efeito moral custa pelo menos 800 reais, em pleno ano de ajuste fiscal e
  crise econômica. Mais uma vez fica a pergunta: há crise onde e para quem? 
Como podemos ver, o que está em jogo
  é a disputa do espaço da cidade. O Estado cerceia direitos constitucionais,
  como o direito à reunião, tão celebrado com o fim da ditadura civil-militar,
  em nome de uma população que também está pagando a mesma tarifa exorbitante.
  Em 2013 o controle da rua e do trajeto não era tão intenso, nem mesmo para o
  movimento. “Em 2013 muitas vezes íamos por um caminho, mas daí a multidão
  resolvia ir para outro, e não tínhamos muito o que fazer”, contou um
  militante do MPL durante o sexto ato. 
O que se vê na tática policial
  militar é um rigoroso controle da “área de conflito” – como se uma manifestação
  do MPL pudesse ser comparada a um ataque do Estado Islâmico. Desde
  “envelopar” (a despeito de se tratar de procedimento ilegal) toda a marcha
  através do caminho exigido pela própria polícia para evitar quaisquer desvios
  da massa, até o isolamento de enormes áreas da cidade e o fechamento de
  estações de metrô, impedindo a locomoção de manifestante (e transeuntes em
  geral), com toda a sofisticação do aparato repressivo, que intimida mais e
  fere de forma ainda mais grave. 
A comunicação do trajeto é um mero
  subterfúgio. No dia seguinte do sétimo ato, manifestantes do completo oposto
  do espectro político fecharam a Marginal Pinheiros, às 10h, reivindicando a
  volta do regime militar. Não precisaram comunicar o trajeto. Nem foram
  alvejados com bombas e tiros. Isso sem contar as manifestações pelo
  impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que em São Paulo sempre contam com
  “uma tarde sem catracas” e uma cobertura quase em tom de convite às ruas de
  alguns meios de comunicação. 
Por outro lado, é digno de citação o
  fato de que um grande setor da esquerda insiste em fazer questão de não
  compreender o MPL – e o novo movimento social autônomo de forma geral. Ambos
  querem vaquinhas de presépio. Seja pelas suas noções de centralismo
  democrático, seja pela bota da PM ou pelo medo do desemprego em tempos de
  crise. 
Quarto ato: caminhando e cantando 
O quarto ato se concentrou no dia 19
  de janeiro, terça-feira, no cruzamento das avenidas Rebouças e Faria Lima,
  zona oeste de São Paulo. A proposta, aprovada em assembleia e anunciada em
  jogral, era de que uma parte iria rumo à prefeitura e outra ao Palácio dos
  Bandeirantes. Esta reportagem caminhou sentido Palácio dos Bandeirantes, com
  cerca de 300 manifestantes, mais um grande contingente de policiais, oposto a
  um baixo número de profissionais da imprensa. A manifestação sentido
  prefeitura contou com alguns poucos milhares de pessoas, incluindo
  organizações políticas que criticam o MPL por supostamente dar mais ênfase ao
  prefeito do que ao governador em suas críticas. 
Para a Travessia do Morumbi,
  estudantes secundaristas fizeram a linha de frente do ato. A noite já caía
  quando a ponte Cidade-Jardim era atravessada e os estudantes seguiam
  conduzindo militantes do MPL e apoiadores da causa pelas escuras ladeiras do
  Morumbi, cara a cara com a polícia. Chegando ao Palácio, um exército de
  policiais se colocava nos portões. Um exagero. As pessoas simplesmente
  fizeram um jogral e cantaram músicas contra a gestão do Estado e pela redução
  da tarifa. Na volta, mais alguns quilômetros de caminhada fechando a Avenida
  Morumbi, em número menor de pessoas, até a estação Morumbi da CPTM,
  localizada na Marginal do rio Pinheiros. 
Quinto ato: o trajeto obrigatório 
Dois dias depois, na quinta-feira, 21
  de janeiro, o quinto ato se concentrou em frente a uma das entradas do
  Terminal Parque Dom Pedro, no centro de São Paulo. O MPL havia proposto um
  trajeto que desse conta de passar pela Secretaria de Transporte, prefeitura e
  tomasse a Avenida 23 de Maio rumo à casa do prefeito Fernando Haddad, no
  Paraíso, bairro nobre do “centro expandido” da cidade. 
O aparato policial, para impedir os
  manifestantes de se concentrarem dentro do Terminal, ordenou o fechamento do
  mesmo. Esse comando claramente visa colocar a população contra a
  manifestação, no que se configura uma atuação semipolitizada da polícia.
  Imagine-se, o trabalhador cansado que quer voltar logo para casa vê a polícia
  lá todo dia, mas justamente no dia da manifestação a mesma polícia fecha as
  portas do terminal. Isto também aconteceu em diversas estações de metrô das
  redondezas. Desde a praça da República, as ruas e estações de metrô estavam
  bloqueadas pelas forças do Estado. E, como não poderia deixar de ser, parte
  do trajeto decidido em assembleia prévia do movimento foi negado pela Secretaria
  de Segurança Pública – uma nova aberração que se tenta naturalizar. 
Ainda na concentração, o MPL expôs o
  problema, abriu para propostas e ao final havia basicamente três
  possibilidades: seguir o trajeto inicial independentemente da repressão, obedecer
  o trajeto da polícia (que era semelhante ao do movimento, porém com
  encerramento na praça da República) ou seguir até a República e lá fazer uma
  nova assembleia. Venceu o terceiro por eliminação: os manifestantes por um
  lado estavam cansados de apanhar e, por outro, não queriam seguir a cartilha
  policial militar. 
A marcha seguiu seu caminho,
  totalmente envelopada pela polícia, com cerca de duas mil pessoas apoiando o
  movimento (aqui não entram imprensa e polícia). Ao final, o movimento se
  reuniu na praça da República para fazer a combinada assembleia e nesse
  momento começou a gratuita chuva de bombas, no momento em que sequer
  ocupava-se a rua. E vimos o roteiro se repetir mais uma vez. Detidos foram
  liberados. Feridos foram para a Santa Casa (por sinal em franco processo de
  sucateamento). 
“A polícia precisou usar da força
  para dispersar manifestação”, bradavam as manchetes. Enquanto isso, um
  fotógrafo da TV Drone sofreu ferimentos dignos de uma cobertura de Guerra do
  Golfo. Outros jornalistas também foram atacados. O metrô fecha as portas. E
  assim por diante. 
Sexto ato: a volta do trajeto que não
  foi 
A sexta manifestação de rua convocada
  pelo MPL se concentrou entre o Parque e a Estação da Luz, na última
  terça-feira, centro de São Paulo. E volta a novela sobre o trajeto. Novamente
  decidido em assembleia prévia, o MPL trouxe a proposta de caminhar pela
  Avenida Tiradentes, passando pela Cruzeiro do Sul, rumo à zona norte, onde
  encerraria em Santana. O trajeto passaria por lugares como a Rodoviária do
  Tietê e o Parque da Juventude, onde um dia funcionou o Complexo do Carandiru.
  Locais que representam a luta pelo transporte e a luta pela paz e contra a
  brutalidade policial. A polícia, previsível, bateu o pé. Ameaçou a
  integridade física da manifestação caso seguisse esse caminho. E o embate se
  deu na assembleia feita ali mesmo, na concentração entre as organizações
  presentes. 
Além da proposta do MPL, havia a
  proposta da PM, de que o ato caminhasse pelo centro de São Paulo, até a
  Câmara dos Vereadores. Foram dados 10 minutos para apresentação de propostas.
  Ao fim da assembleia, a proposta vencedora em votação aberta foi feita pelos
  militantes da ANEL, braço jovem do PSTU. Basicamente a mesma da PM, mas que
  acabou apoiada por outras organizações e também por manifestantes
  independentes que já estavam esgotados de tantas agressões policiais. O
  trajeto do MPL era certeza de massacre para muitos dos que votaram. A atitude
  do MPL foi a de acatar o sentido que mais mãos conseguiu levantar, ainda que
  não tenham gostado da decisão. 
Algumas observações: a primeira, de
  que a marcha sairia por volta das 19h30 e não chegaria à Câmara antes das
  21h. Que vereador estaria por lá a esta hora? A segunda ressalva é que,
  apesar de o trajeto ter sido votado pelos manifestantes a fim de evitar a
  repressão policial, o clima era de tensão. Três linhas de bloqueio da Rocam à
  frente do ato, “Tropa do Braço” envelopando a manifestação, Tropa de Choque
  bloqueando ruas de acesso ao trajeto e uma caravana de veraneios e blindados
  ao fundo. Uma verdadeira operação de guerra e a repetição do roteiro de
  sempre. 
Se o ato terminou em relativa paz na
  frente da Câmara dos Vereadores, certamente não incomodou muita gente
  “grande”. Por outro lado, novamente vimos estações de metrô fechadas com
  seguranças agredindo usuários – manifestantes ou não – que insistiam em
  entrar, ou mesmo que argumentavam da necessidade de se abrirem as portas. De
  quem parte a ordem? 
Sétimo ato: a coisa pública 
Para encerrar esta primeira fase da
  luta contra o aumento e conseguir algum tempo para repensar suas táticas e
  estratégias, o MPL chamou um ato na quinta-feira seguinte, dia 28 de Janeiro.
  Algo entre 800 e 1000 pessoas caminharam pelo centro e um número pouco menor
  se concentrou, ao final, em frente à prefeitura, para uma reunião aberta
  entre movimentos, sociedade (manifestantes ou não) e poder público (com
  convites formais ao prefeito Fernando Haddad e ao governador Geraldo
  Alckmin). 
Se por um lado os representantes do
  executivo não compareceram, por outro, estava presente Lúcio Gregori, autor
  do projeto que defende a tarifa zero nos transportes públicos desde os tempos
  em que Luiza Erundina foi prefeita da capital e inspirou o surgimento do MPL. 
“Se não fosse pelo MPL, não teríamos
  uma discussão ampla na sociedade sobre o acesso à cidade e ao transporte
  público, estaríamos na mesmice de sempre. Esse debate já está ganho e é
  nacional. Agora vocês só precisam continuar, até a vitória final”, afirmou. 
Além dele, também falaram
  representantes do movimento dos estudantes secundaristas de São Paulo que em
  suas falas relembraram o movimento que ocupou centenas de escolas públicas em
  todo o Estado e declararam que apoiam o MPL devido à correlação de pautas.
  “Hoje somos estudantes e muitos temos o passe livre, mas amanhã seremos
  trabalhadores e pagaremos a tarifa, por isso, nada mais justo do que virmos
  aqui apoiar um movimento que luta pelo nosso futuro”, afirmou a estudante ao
  microfone. 
Próximos passos 
Buscando dar um breve descanso aos
  seus militantes e apoiadores, o MPL convocou seu próximo grande ato para o
  dia 25 de fevereiro. O local da concentração ainda não foi definido. Para
  esta quarta-feira, dia 3 de fevereiro, haverá uma aula pública às 17h nas
  escadarias do Theatro Municipal, ministrada por profissionais do transporte.
  Estarão presentes representantes dos metroviários, ferroviários e os
  rodoviários que fizeram greve em 2014. 
Espera-se que o movimento possa ter
  um tempo para fazer o devido balanço e analise de conjuntura, levando em
  consideração a postura e a tática do poder público para diminuir a pauta, sem
  se esquecer da escalada de violência, repressão e militarização que temos
  presenciado. Será decisivo também pensar em táticas que driblem a blindagem
  midiático-policial e possam dialogar melhor com a população. 
Como dito por Gregori, a pauta do
  passe livre já conquistou seu lugar e conta com o apoio dos trabalhadores,
  que cada vez mais se dão conta de que de trinta em trinta centavos são eles
  mesmos quem sustentam mais este cartel empresarial, cujos lucros não sofrem
  variação negativa nem em tempos de crise. 
  
Leia também: 
*Raphael Sanz é jornalista do Correio
  da Cidadania. 
 |