O Simplesmente isto: é preciso enfrentar o adversário
“Há uma luta de classes, sim. Mas é a minha classe, a classe rica, que está fazendo a guerra, e estamos ganhando".
— Warren Buffett, magnata estadunidense.
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Roberto Amaral*
O governo Lula, quase tardiamente, ensaia algo que pode sugerir o início de uma reforma fiscal, cutucando os superlucros dos super-ricos. São o 1% que nos governa — na democracia e nas ditaduras, nos governos de direita e nos governos de centro-esquerda. É o grande capital, que controla a vida econômica e, por consequência, a vida política, nela incluídos os espaços do poder republicano.
Embora tímida, a proposta do governo pôs em pé de guerra a Faria Lima e suas adjacências — a saber, o Congresso e a grande imprensa (aparelho ideológico da classe dominante), os dois territórios privilegiados onde atuam seus agentes e procuradores.
À margem dos poderes clássicos da República, a política econômico-financeira do país foi posta sob o controle de burocratas onipotentes, nada obstante despojados de delegação da soberania popular; abrigam-se sob o teto largo e alto do Banco Central — a um tempo santuário e bunker do rentismo que asfixia a economia nacional.
Os banqueiros e os agiotas tout court gritam contra um “aumento de impostos” por ser, e, assim, acuam um governo perigosamente à míngua de sustentação parlamentar, e sem ânimo de dirigir-se à população que preside, embora dependa de seu apoio para, senão governar, para sobreviver, o mínimo a que pode aspirar.
O Congresso, senhor de baraço e cutelo, revoga as alterações que, carreando recursos para o erário, amenizariam a crise fiscal que assusta mortos e vivos. O governo, cumprindo seu dever de recorrer ao STF em face da aberrante inconstitucionalidade do ato revogador do decreto que alterava um IOF concebido para proteger as grandes fortunas, é acusado de promover confronto com um Legislativo que o confronta permanentemente, na tentativa de paralisá-lo — repetindo a tática que preparou o impeachment de Dilma Rousseff.
O STF, acionado para restabelecer a vontade constitucional, não julga o direito arguido. Mais preocupado em evitar novos atritos com uma maioria congressual reacionária e hostil, chama as partes a um “entendimento”, como se a causa fosse trabalhista e a Corte não passasse de uma Junta de Conciliação e Julgamento.
Tudo num jogo de cena para dizer ao distinto público que não estamos empurrando com a barriga uma grave crise institucional. E la nave va — em mar hostil, comandada por timoneiros irresponsáveis.
O cerne da questão, escamoteado pelo debate de surdos, é a picada de mosquito com a qual o governo visou os ganhos sem limite do grande capital — o nacional e o aqui pousado —, que foge da produção para locupletar-se nos lucros e dividendos proporcionados pela política de juros estratosféricos que ele mesmo comanda, por intermédio do Banco Central.
Explique-se o que a grande imprensa finge não saber. O até aqui frustrado aumento de alíquota (de 2% para 10%) do IOF dos milionários, pretendido pelo governo, incidiria tão-somente sobre transações de câmbio com cartões de crédito e débito internacionais, compra de moeda estrangeira e cartão pré-pago. De outra parte (outro ponto sobre o qual também silencia a imprensa mainstream), previa isenção para o retorno de investimentos estrangeiros diretos (os que geram emprego) e dificultava a evasão de recursos mediante alíquota de 3,5%, o que interessa ao giro interno da economia.
A quem tais medidas incomodariam? Quem seriam seus beneficiários?
Taxar a Faria Lima, diga-se, é medida sempre bem-vinda, quando menos por acenar para uma política futura de um país que finalmente terá condições objetivas e coragem política de atacar de frente a clamorosa injustiça social que nos faz pobres numa província rica.
Outra iniciativa do governo pretende mexer no IR para aumentar de 2% para 10% o imposto devido por quem ganha a partir de R$ 50.000/mês — algo como uns poucos 140 mil ricos, milionários e bilionários, empresários e rentistas. Esta fisgada, ao injetar na economia R$ 19,1 bilhões em 2025 e R$ 38,2 bilhões em 2026, possibilitará a isenção ou redução do imposto de renda de 25 milhões de brasileiros que ganham até R$ 5.000 por mês, assalariados de um modo geral, apenados por um sistema fiscal regressivo, no qual os mais pobres pagam mais para que os mais ricos paguem menos.
A direita não aprecia aumento de arrecadação. Precocimente trumpista e ideologicamente tomada pelo complexo de vira-lata, rejeita maior contribuição dos mais ricos. E note-se: o governo, de cócoras em terra de sapos, sequer ousou insinuar uma política de combate à sonegação fiscal (privilégio do capital) — sangria hoje estimada em R$ 600 bilhões (dados do Sinprofaz, 2024), nada menos que 7,7% do PIB, 27,5% da arrecadação apurada.
Nosso governo erra muito, no grosso e no varejo, mas sabe que, antes de tudo, precisa sobreviver: o combate à sonegação atingiria em cheio uma gama de empresários e rentistas. A oposição, parlamentar ou mediática, não considera, em face de seus interesses de classe, que o combate sem tréguas à sonegação seria uma das mais eficientes medidas destinadas à contenção do déficit fiscal, com o qual tanto se dizem preocupados os procuradores da Faria Lima. Seu mantra é o “teto de gastos”.
Desinteressada do aumento da renda nacional, do consumo e da produção, a direita, ouriçada, cobra mais cortes de gastos do governo — fingindo ignorar que, sem novos e maiores investimentos, inclusive na proteção social (que lhe provoca urticária), será impensável a recuperação da economia, de que depende a geração de emprego e renda, de que depende, por sua vez, a dignidade de nosso povo humilhado pela pobreza.
Mas a poderosa burocracia financeira faz cara feia para o crescimento do PIB, estimado para 2025 em 2,4% (IPEA). Sob o falso pretexto de conter uma inflação em desaceleração (5,0% em 2025, contra 5,79% em 2022), e em nome de um ajuste fiscal imposto como preceito religioso, o BC eleva a taxa básica de juros (hoje em abusivos 15%), com o que aumenta ainda mais a dívida pública e seu custeio, retém os investimentos e o consumo (em maio passado, a produção industrial brasileira teve queda de cerca de 1,6% em relação a abril) e engorda os lucros desde sempre exorbitantes do rentismo — parasitário por definição.
Mas o Copom ainda anuncia “que não hesitará em voltar a aumentar os juros”, porque “a economia mostra mais fôlego do que seria de se esperar” (Valor, 20/07/2025).
É fácil de ver como essa política tresloucada drena nossos recursos.
O total da dívida bruta do governo (União, estados, municípios e INSS), em janeiro deste ano, chegava a R$ 8,9 trilhões, o equivalente a 75,3% do PIB. Sobre esse montante, pagamos de juros, em maio, a bagatela de R$ 92,1 bilhões. Da última elevação da Selic imposta imperialmente pelo BC — que a ninguém tem satisfações a prestar, ao contrário do que ocorre com o Executivo — deriva um adicional de despesa com juros projetada em R$ 12,1 bilhões em 12 meses (o equivalente a 5% do custo total anual do SUS).
Tudo fica claro como a luz do sol quando nos damos conta de que os créditos da dívida externa vão para as instituições financeiras (30%), para os fundos de pensão (23%), para os fundos de investimentos (22%) e aplicadores estrangeiros (10%).
Neste paraíso do capital especulativo em que nos tornámos, todo dia é dia de festa na Faria Lima.
O ex-presidente do BC ao tempo de FHC diz e rediz, para gáudio dos “especialistas” da TV, mestres da platitude, que a fonte da crise são os salários dos aposentados — os quais, portanto, devem ser congelados por seis anos ou mais. Um empresário, apresentado pelos grandes meios como “rei do ovo”, reproduzindo preconceitos de setores consideráveis da classe média, proclama que a fonte de nossas mazelas é o Bolsa Família, que, ao afastar o miserável da miséria, “afastaria o povo da rede de trabalho”. Formado na mesma escola de seu antecessor, o presidente do BC indicado por Lula defende a política de juros altos. O último aumento foi aprovado por unanimidade.
No Congresso, a direita trafica o fim do piso constitucional das despesas com educação e saúde — fundamentais para a população pobre, sempre chamada a pagar a conta da miséria capitalista. Nada menos que 70% dos deputados federais são contra o fim da escala de trabalho 6x1, e 53% são contra as restrições aos altos salários e 46% contra a elevação do IR devido pelos super-ricos (pesquisa Genial/Quaest).
Porta-voz de uma classe dominante herdeira da escravidão e do latifúndio, as grandes empresas de comunicação anatematizam como populistas (o que é mesmo o “populismo”?) os mecanismos de proteção social construídos por este país moldado na desigualdade. Mas, por óbvio, o silêncio se instala quando o tema são os interesses da classe dominante.
Deixam de ser considerados gastos e não são considerados como agentes inflacionários os R$ 518,2 bilhões destinados pelo Plano Safra (2025/2026) à grande agricultura empresarial, da qual quase nada se exige como contrapartida. Por outro lado, os recursos destinados ao financiamento da agricultura familiar e à agroecologia (responsáveis por um quantum superior a 30% dos alimentos que pousam na mesa dos brasileiros) somam apenas 5% desse total ofertado ao agronegócio, o que claramente fala sobre o caráter do Estado de classes.
De igual modo, não são considerados gastos os R$ 58,9 bilhões desviados da União pelo continuado escândalo do “orçamento secreto” — instrumento de evasão de recursos públicos para a ordem patrimonialista. Destinam-se, o mais das vezes, ao financiamento de obras à margem de análise de necessidade ou planejamento, livres de fiscalização — umas que chegam a ser concluídas, muitas projetadas para não serem realizadas, permanentemente inconclusas para permanentemente carecerem de recursos.
Nessa lógica perversa, tampouco são considerados gastos algo entre R$ 800 e R$ 900 bilhões/ano (6% do PIB) destinados ao custeio de incentivos e isenções fiscais surrupiados da União para a iniciativa privada, incluídos os R$ 20 bilhões que, por esse mecanismo, se desviam do SUS a cada ano.
No movimento de revogação, inconstitucional, do decreto presidencial que alterava as alíquotas do IOF — acusado de aumentar a arrecadação quando o “dever de casa” do governo seria reduzir “gastos” —, o Congresso volta a aumentar os próprios gastos (onerando o déficit) ao criar 18 novas e injustificadas cadeiras de deputados federais, a um custo ainda difícil de estimar, pois aos novos deputados federais se somará uma caterva de novos deputados estaduais (e seus respectivos gabinetes etc.) em nove estados.
Gastos, afinal, são só os investimentos sociais ou aqueles destinados ao desenvolvimento do país.
A atual maioria do Congresso, com a servidão dos presidentes das duas Casas, maquina contra a democracia sabotando o governo, transformando em fiapos a rede de proteção social tão duramente tecida, atrasando por décadas os sonhos de desenvolvimento nacional.
O “nós contra eles” — que tanto incomoda a classe dominante e seus porta-vozes — aponta um caminho de reorganização da centro-esquerda, uma redefinição de rumos para além do embate eleitoral que se avizinha. E dá oportuna lição aos estrategistas do terceiro andar do Palácio do Planalto: enfrentar o adversário é uma exigência da política.
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Lisboa é uma festa— Com a presença de cinco ministros do STF, 18 do STJ, cinco do TCU, dezenas de parlamentares e mais ministros de Estado, secretários e governadores, mesclados a uma gama de negociantes, teve lugar na última semana mais uma edição do “Fórum de Lisboa”, que a crônica nacional batizou, jocosamente, de “Gilmarpalooza”, em referência ao seu promoter, ilustre decano do Supremo. Naturalizado pela imprensa nativa — ciosa do decoro e da moralidade noutras circunstâncias —, o Fórum explicita sua vocação colonial já na escolha da sede (afinal, por que nossas autoridades gostam tanto de debater ditos problemas brasileiros em cidades estrangeiras com boas redes de hotéis cinco estrelas? Quem paga a conta?). Na programação do último veraneio, atrações como um debate “sobre relações de força internacionais” entre um almirante português, o ex-comunista Raul Jungmann e o governador Tarcísio de Freitas — pré-candidato da classe dominante à presidência do Brasil. Fica nossa homenagem àqueles e àquelas que, convidados a participar da farra, declinaram.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.