Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 21 de março de 2020

CORONAVÍRUS, FEDERAÇÃO E ESPÍRITO PÚBLICO

Sábado, 21 de março de 2020
Por
Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 21 de março de 2020

O coronavírus, novo coronavírus ou covid-19 está presente em todos os continentes e avança com rapidez no território brasileiro. A OMS (Organização Mundial de Saúde) já caracterizou a situação como uma pandemia. São mais de 210 mil infectados em todo o mundo. As mortes, em escala planetária, ultrapassam 9 mil pessoas. Os especialistas afirmam e reafirmam que o vírus tem baixa letalidade de uma forma geral, mas é particularmente perigoso para os grupos de risco (idosos, fumantes, asmáticos, hipertensos, diabéticos e cardíacos. Os jovens não são imunes, é sempre bom lembrar).

Diariamente todos são bombardeados com inúmeras informações sobre as mais variadas práticas de higiene para evitar o contágio do covid-19. O álcool em gel para “lavar” as mãos é artigo raro e cada vez mais caro (embora água e sabão produzam os mesmos efeitos). Praticamente a cada hora é divulgada alguma medida, no Brasil e em outros países, voltadas para evitar ou dificultar as aglomerações sociais e potenciais transmissões (restrições à locomoção, fechamento de estabelecimentos comerciais e espaços públicos, suspensão de aulas, etc).

Os malfeitores de todo gênero não perdem a oportunidade de lançar toda sorte de informações falsas, notadamente nas redes sociais (“fake news”). Eis alguns exemplos para ilustrar a observação: a) foi editado um decreto contendo a proibição de idosos circularem nas ruas do Distrito Federal; b) gargarejo com água morna, sal e vinagre elimina o coronavírus e c) temperaturas de 26 ou 27 graus celsius matam o vírus. Convém, por cautela, acompanhar o cenário em frenética evolução em fontes tradicionais e seguras, como: a) aplicativo Coronavírus-SUS, do Ministério da Saúde; b) portal do Estadão; c) portal da Folha de São Paulo e d) portal Globo.

Tudo indica que se avizinha, no Brasil, uma crise sanitária
de graves proporções. Projetam-se, entre outros: a) insuficiência de pessoal treinado; b) falta de equipamentos essenciais (ventiladores mecânicos, por exemplo); c) falta de máscaras apropriadas para os servidores da área de saúde e d) número aquém do necessário de leitos de UTI. O próprio Ministro da Saúde prevê colapso do sistema de saúde em abril.

A crise socioeconômica deve assumir magnitude gigantesca.  Os PIBs (Produtos Internos Brutos), inclusive do Brasil, devem literalmente despencar. O gasto público deve aumentar com intensidade para fazer frente às necessidades da área de saúde e aos vários apoios sociais. As receitas, por outro lado, devem cair muito com a redução da atividade econômica e da arrecadação tributária decorrente. Os níveis de empregos, formais e informais, devem ser reduzidos drasticamente. Os efeitos sociais, sobretudo nas classes sociais com menor poder aquisitivo, devem ser devastadores.

Evidentemente, não estamos diante de uma fantasia. Também não parece que as medidas enérgicas, tomadas e por tomar, sejam claramente exageradas. A dura e crua realidade, nacional e internacional, aponta para uma quadra de profundas dificuldades, muito sofrimento e significativas incertezas. Só não vê o tamanho do problema quem não “quer” ou tem profundas limitações para compreender os inexoráveis fatos da vida.

O enfrentamento da crise do covid-19 (ou das várias facetas da crise) ganha contornos mais delicados na Federação brasileira.
Afinal, temos uma singular Federação com três níveis de governos autônomos (não há hierarquia entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios e, por consequência, entre os respectivos governantes – art. 18 da Constituição). As dificuldades para organizar ou articular o exercício de competências administrativas e legislativas são consideráveis. Nos arts. 21 a 24; 25, parágrafo primeiro e 30, incisos I, II, V, VI e VII, a Constituição tenta equacionar os principais obstáculos nessa seara. Entretanto, uma série de questões, sobretudo em momentos agudos como o presente, escapam dos enunciados normativos referidos. Já estão nos meios de comunicação os debates e embates em torno das competências para o fechamento de aeroportos, de “fronteiras” estaduais e outras medidas semelhantes.

Esses óbices, notadamente diante do avanço implacável do coronavírus, exigem esforços extraordinários dos governantes no sentido da efetivação de um produtivo diálogo institucional e ajustamento de decisões, evitando vácuos, superposições e confusão no entendimento, pela sociedade, das ações do Poder Público. Esse concertamento, infelizmente, está prejudicado pela evidente deficiência de espírito público observada na maioria dos atores estatais.

No âmbito federal, o Presidente da República, já profundamente limitado na formulação de raciocínios lógicos, razoáveis e baseados na vida real, parece acometido de um especial alheamento da realidade. O sujeito, com seu comportamento errático em relação ao covid-19, só produz insegurança e desorientação (já chamou o novo coronavírus até de gripezinha). Demonstra uma inoportuna e acentuada preocupação com sua imagem pessoal e de seu governo, exatamente no momento em que o povo brasileiro precisa de serenidade e firmeza da sua principal liderança institucional. Na sua peculiar ótica, as medidas relacionadas com o fechamento de lugares propiciadores de fortes aglomerações de pessoas podem prejudicar a economia e serem usadas para enfraquecê-lo politicamente. Chegou a afirmar: “Tem certos governadores que estão tomando medidas extremas, que não competem a eles, como fechar aeroportos, rodovias, shoppings e feiras … Tem um governo de Estado que só faltou declarar independência do mesmo … Tem uns falando em liberar pedágio, energia. Aí cria expectativa. O governo federal e estadual não têm condições de bancar isso. Essas falsas expectativas não podem vir no bojo de uma campanha política”. Não se admira a proliferação de panelaços e pedidos de verificação da sanidade mental do Chefe de Estado.

No âmbito dos principais Estados e Municípios, além do Distrito Federal, os governadores e prefeitos “pisam no acelerador”. Entrevistas se sucedem com anúncios de restrições ao funcionamento do comércio (de rua, shoppings, bares, restaurantes e academias) e do transporte público. Suspensão de aulas e fechamento de espaços públicos (parques, praias, etc). Esses mandatários parecem disputar uma espécie de jogo com Presidente da República. Se ele não age como deveria, eles ocupam o espaço deixado pelo Chefe de Estado (de direito, mas não de fato). A seguinte frase do Governador de São Paulo é muito emblemática: “Estamos fazendo o que deveria ser feito pelo líder do País, o que o presidente Jair Bolsonaro, lamentavelmente, não faz, e quando faz, faz errado”. O Governador do Rio de Janeiro fez declarações no mesmo sentido: “São os nossos hospitais que serão impactados e o governo federal em passo de tartaruga … Nós não temos [governadores] diálogo com o governo federal. Não sou só eu. Os governadores para se comunicar com o governo federal precisa mandar uma carta”. Os governantes estaduais e municipais querem “mostrar serviço” e parecem, por outro viés, bem preocupados com as imagens pessoais e de seus governos.

Caberia ao Presidente da República, com sensibilidade política e respeito aos governos estaduais e municipais autônomos, liderar o delicado processo de coordenação dos esforços das unidades da Federação no combate ao covid-19, inclusive superando os conflitos jurídicos e eliminando as perspectivas de acionamento do Poder Judiciário (algumas delas já em curso, como as propostas pelo Estado da Bahia em relação à instalação de barreiras sanitárias nos aeroportos). Entretanto, o Chefe de Estado alimentou e alimenta uma eterna tensão no campo político. São alvos dessa postura eternamente belicosa: a) o Parlamento; b) o Judiciário; c) a imprensa; d) os servidores públicos; e) os artistas; f) os Governadores, etc, etc, etc. Nessa toada, o Presidente da República não reúne condições de exercer um mínimo de autoridade (só exerce, e muito mal, o poder). Dialogar, articular e negociar são verbos aparentemente riscados dos dicionários palacianos. Sintomaticamente, o Presidente da Câmara dos Deputados já recusou participação em reunião com o Presidente da República se não houvesse uma pauta objetiva.

Parece de uma evidência solar que uma coordenação minimamente eficiente das medidas federativas criaria uma especial sinergia em relação ao assunto. A definição de critérios uniformes de atuação, de caráter nacional, seria plenamente viável. Os vários estádios de evolução da pandemia e as peculiaridades locais seriam devidamente considerados, em especial nas medidas mais radicais de isolamento domiciliar e quarentena. A ausência desse importantíssimo ingrediente só degrada, com mais rapidez e toda sorte de sofrimentos, a construção de um esforço coletivo de enfrentamento do vírus e das mazelas socioeconômicas decorrentes de sua propagação.