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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 31 de março de 2023

OS REGISTROS LINGUÍSTICOS COMO INSTRUMENTOS DE DOMINAÇÃO IDEOLÓGICA

Sexta, 31 de março de 2023
Salin Siddartha    

Os indivíduos concebem o mundo de forma diferente, de acordo com a posição em que se encontram na relação social de produção. Assim, as concepções estão presas às condições históricas da etapa em que se encontram, expressam o modo como concebem a realidade em que atuam. Os conceitos sociais variam também de acordo com as classes sociais no interior da sociedade. A posição que ocupa o indivíduo na divisão social do trabalho ou mesmo na divisão técnica do trabalho é o fator determinante de ter ele uma concepção de mundo com certas características específicas impostas pela maneira como intervém na relação com o meio de produção, relação essa que forja o seu universo cultural diferenciado das outras relações de outros grupos de indivíduos, ou melhor, outras classes, que têm conceptualizações diferentes impostas pela posição que ocupam na divisão do trabalho.


A conceptualização, a própria consciência, surge no modo como o indivíduo vive a realidade econômica em que atua, logo, é coletiva; a própria mudança de atividade social, a introdução de novas relações com o meio de produção, a mudança de tecnologia, a introdução de meios materiais de produção mais avançados causam a mudança do “conceber o mundo”. “Toda forma de consciência é uma reação à maneira de viver que existia anteriormente e uma adaptação a novas realidades”(1), o desenvolvimento histórico da consciência é fruto do movimento dialético no seio da sociedade. A concepção do mundo é fruto disso por intermédio da cultura diretamente consequente desse movimento dialético, assim, essa concepção pode ser universal, nacional ou de classes.


A expressão da concepção do mundo por parte dos indivíduos é, então, ou do ponto de vista dos agentes da produção ou das classes não-produtoras e, devido a isso, podemos dizer que há dois registros de linguagem: o das massas populares e o dos proprietários dos meios de produção. O registro linguístico das classes dominantes tem o traço da ideologia do poder instituído e é o código de dominação emitido pelos canais do poder; ele é imposto de cima para baixo com o objetivo de torná-lo padrão de comportamento verbal, logo, instrumento ideológico de dominação.


O registro linguístico do poder atua como instrumento da comunicação necessária à mobilização política capitalista, é discriminativo e hermético o suficiente para não permitir o “feedback” que se instituiria na forma de diálogo e monopoliza os canais do Estado, dando-se de forma imperativa na superestrutura das leis. As leis, que registram o discurso do poder, são incompreensíveis, mas aceitas por força da dominação ideológica. E como se fundamenta a dominação ideológica? Vejamos o que nos diz Marilena Chauí:


“A classe que explora economicamente só poderá manter os seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a Ideologia.


“Através do Estado, a classe dominante encontra um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de Direito”. O papel do Direito ou das leis é fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas legal, e por ser legal e não violenta, deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela ideia do Estado — ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou ideia dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos” (2).

O registro linguístico dominante do capitalismo visa fazer com que a consciência teórica dos agentes produtivos entre em contradição com o seu agir. Desse modo, “um grupo social que tenha uma concepção própria do mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, descontínua e ocasionalmente — isto é, quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico — toma emprestada a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que lhe é estranha; e aquele (o primeiro) grupo afirma por palavras esta concepção, e também acredita segui-la, já que a segue em ‘épocas normais’, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma, mas sim submissa e subordinada” (3).


Como a sociedade capitalista mudou historicamente apenas a forma de exploração social — mas não a substância, pois continua sendo uma sociedade de classes —, ela é herdeira dos processos de alienação das classes produtoras (tanto quanto no escravagismo, ou no feudalismo, o indivíduo continua a não se identificar na transformação que impõe à realidade) o seu registro linguístico também é substancialmente herdado da experiência histórica do registro de dominação das classes. O registro linguístico oficial (prescritivo) do capitalismo é herdeiro histórico do registro linguístico feudal, que, por sua vez, é o herdeiro histórico do registro linguístico escravagista. É lógico que o registro linguístico oficial do capitalismo é diferente do feudal, até mesmo por distinções históricas, pois ele é fruto de um modo específico de produção, mas ele, ao mesmo tempo, herda os elementos ideológicos do feudalismo. É bom que deixemos esclarecido que o registro linguístico do capitalismo é um universal linguístico deste sistema, é um só registro para todas as nacionalidades, pois há um elemento de coesão interidiomático assegurado pelos mecanismos de manutenção do próprio capitalismo que, em sua etapa imperialista atual, é mais coercitivo ainda. Isso não quer dizer que cada país não tenha elementos específicos dentro da maneira como registra o discurso burguês, é lógico, mas, no geral, o cerimonial do discurso burguês é o mesmo, seja aqui, na França ou na Austrália.


Assim, o homem da massa passa a ter uma consciência contraditória: “uma, implícita na sua ação, que o une a todos os seus colaboradores na transformação prática da realidade, e outra específica, ou verbal, que herdou do passado e acolheu sem crítica. Esta concepção verbal não é inconsequente: liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de maneira intensa, pode atingir um ponto no qual a contrariedade da consciência não produza nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política” (4).


A sedimentação dos discursos que vêm segmentando-se diacronicamente nas massas populares não está estruturada somente por superposição, mas também por justaposição. É que os discursos na sociedade são sedimentados. Em um mesmo discurso há uma série de elementos desprendidos de outros discursos; aqui mesmo, temos no discurso deste ensaio uma série de elementos desprendidos da linguagem linguística, sociológica, econômica, política etc., que se unifica para formar o discurso que aqui está. Assim também na sociedade os discursos são sedimentados por força do processo de interação social, ou seja, devido à própria comunicação.


Toda sedimentação dos discursos é diacrônica, portanto é acumulativa e transformadora. Isso se deve à acumulação cultural: o discurso de hoje não se constitui somente dos signos linguísticos do hoje, mas também de discursos do passado que se perpetuaram, ou permanecem — vindo até o presente — ou se transformaram — tendo hoje outros referentes —, ou desapareceram e, às vezes, são ressuscitados. O discurso religioso de hoje em dia está cheio de signos do passado, ainda presentes na sociedade capitalista; há palavras que etimologicamente se perpetuaram desde o grego, há outros signos que se transformaram — “Quando emprego a palavra desastre, ninguém pode me acusar de crenças astrológicas [‘desastre’, pelo menos até o fim da Idade Média, significava a queda de um astro]; quando digo ‘por Baco’, ninguém pode acreditar que eu seja um adorador da divindade pagã, embora tais expressões sejam uma prova de que a civilização moderna é o desenvolvimento, também, do paganismo e da astrologia” (5). “A linguagem atual é metafórica com relação aos significados e ao conteúdo ideológico que as palavras tiveram nos precedentes períodos da civilização. Um tratado de semântica — o de Michel Bréal, por exemplo — pode favorecer um catálogo, histórica e criticamente reconstruído, das mutações semânticas de determinados grupos de palavras” (6).


A estruturação por superposição dos discursos de hoje em dia se dá na razão direta de sua diacronia; signos linguísticos novos se superpõem aos antigos, e quanto mais atrasado seja um grupo social, mais antigo é o seu discurso em função dos seus signos. A estruturação por justaposição dos discursos de hoje em dia se dá na razão direta de sua sincronia, ou seja, da convivência de vários discursos que se utilizam de vários signos do passado e do presente, simultaneamente, da convivência de um discurso urbano com um discurso agrário.


O discurso atual se subdivide em vários outros discursos na proporção das etapas do desenvolvimento dialético em que se encontram os grupos sociais, assim, podemos falar de um discurso camponês-periférico e de um discurso urbano-hegemônico. O discurso popular é antitético pelos signos conflitantes e contraditórios entre si que possui e, em vista de tais fatores, reside na incoerência do senso comum que se cristaliza nas massas e do qual ele é expressão.


O senso comum é a filosofia vulgar das camadas populares, não tem ordem intelectual; “não existe um único senso comum, pois também ele é um produto do devenir histórico” (7). O senso comum contrapõe-se ao “bom senso”; na concepção gramsciana, é desordenado e incoerente. O senso comum está no nível das camadas subalternas, sua “característica fundamental é ser uma concepção fragmentária, incoerente, inconsequente, conforme a situação social e cultural da multidão da qual é a filosofia”, como diz Gramsci (8). “Trata-se, portanto, de uma filosofia degredada, socialmente difusa, em contraste com a filosofia das classes superiores” (9), é uma concepção do mundo resignada “diante da ordem existente, considerada (...) como idêntica à ordem da natureza, e portanto incapaz de ser transformada historicamente” (10).


Constituem o senso comum os pensamentos populares, em formas naturais em um meio de expressão “baixo” ou “subalterno”; ele reprime a vida intelectual e “garante que possa existir consenso sem que ninguém se sinta violado ou arrancado dos modos de comportamento cotidiano” (11). Horácio Gonzales, analisando o “senso comum” em Gramsci, subdivide-o em dois tipos: “’senso comum’ dos estratos populares mais ‘cultos’ e ‘senso comum’ dos estratos ‘inferiores’” (12). O senso comum é o “lugar onde se encontra a filosofia popular, lugar onde age o ‘filósofo popular’” (13).


No discurso popular está bastante presente o senso comum, o pensamento mágico, os signos do passado ainda não removidos e, em grande parte, a classe dominante, no seu discurso, registra também esses dados a fim de conservá-los, para que se consolide cada vez mais no povo a concepção subjetiva da história, que tem na metafísica o seu núcleo denso de discurso; Lacan afirma que “os verdadeiros ateus são muito raros. Há sempre o sagrado em algum lugar” (14). É o caráter ritual do discurso que vira norma do uso da língua, implantado pelo poder do Estado exercido pela classe dominante e adquire um padrão moral de texto em todo o desenrolar dos séculos; Max Weber, analisando a estrutura social da China até o século XIX, diz que “os príncipes e ministros dos clássicos agem e falam como paradigmas dos governantes cujo comportamento ético é recompensado pelos céus” (15). O padrão moral do comportamento verbal é estabelecido na antiguidade para conduzir a ideologia, disseminá-la e arraigá-la à mentalidade popular; segundo Tzvetan Todorov, “a primeira descrição linguística de que se tem notícia, a do sânscrito clássico feita pelo gramático Panini (IV século a. C.), se empreendeu no momento em que a língua sânscrita culta, ameaçada pela invasão dos falares populares precisava ser estabilizada — quando mais não fosse para assegurar a conservação literária dos textos sagrados e a pronúncia exata das fórmulas de preces” (16). Vê-se, então, o critério reacionário das descrições intelectuais daquela época a fim de bloquear o discurso dos párias, que certamente também era ideológico, com forte carga do conteúdo sacro que deveria possuir, mas que, devido às concepções que fugiam à ortodoxia vigente, ameaçava a padronização do discurso linguístico do poder.


Aos intelectuais não comprometidos organicamente com o proletariado, que não realizam funções conectivas entre essa classe e a sociedade, que não fazem seus apelos fundidos em interesse da classe proletária, que disfarçam a verdadeira função do intelectual, que não são os portadores de um projeto de “hegemonias” do proletariado, que não expressam a consciência que devem ter “sobre sua própria situação na sociedade” (17), a tais intelectuais cabe a tarefa de reprodução da ideologia nas sociedades de classes, manifestando-a nos diversos campos em que atuam por intermédio do seu discurso típico que atende aos interesses do poder; o discurso desse intelectual transforma-se no registro culto, padrão linguístico a ser imitado pela nação, ou seja, um modelo de linguagem a ser cumprido. Assim, a cada mudança que se opera no discurso desses grupos intelectuais corresponde a uma mudança nas formas de dominação, todavia não corresponde a uma transformação na cultura, é apenas uma reforma cultural; a cultura só se transformará, realmente, por intermédio da revolução que derrube a estrutura econômico-social do capitalismo, determinando a modificação da superestrutura da sociedade.


Estamos falando em transformação, não em reforma cultural. A transformação da cultura só se dá, de fato, quando no mundo acabar a dominação de uma classe por outra, ou seja, quando acabarem as classes sociais; sem ser assim, nunca existirá uma nova cultura modernizada, reformada, não transformada, “deve-se falar de luta por uma ‘nova cultura’, isto é, por uma nova vida moral, que não pode deixar de ser intimamente ligada a uma nova intuição da vida, que chegue a se tornar um novo modo de sentir e ver a realidade” (18). “Seria preciso desenvolver nas pessoas uma nova ‘consciência de classe’’ (19); Marx observa que, “para se mudar as ‘visões de mundo’, não basta agir no nível das ideias e dos valores; é preciso transformar no cotidiano as concepções materiais a que essas ideias correspondem (...) Em outras palavras, a ação do nível das ideias, no plano estrutural, exige uma ação política de transformação do mundo. Daí a sua célebre tese sobre a filosofia: ‘Até agora, os filósofos só interpretaram o mundo de formas diferentes; é preciso transformá-lo’” (20).


A cultura continua sendo idealista, concebendo o mundo a partir de critérios extra-históricos, celestes, implantada de cima para baixo, estratificada por conceitos que não se encaixam e personificada apenas no poder burguês que se alia à Igreja e a transforma em verdadeiro partido político encarregado da ação imobilizadora das massas populares. “O catolicismo se transformou em ‘jesuitismo’. O modernismo não criou ‘ordens religiosas’, mas sim um partido político: a democracia cristã (...) Recordemos a anedota (narrada por Steed, em suas Memórias) do cardeal que explica ao protestante inglês filocatólico que os milagres de São Genaro são dogmas da fé para o populacho italiano, mas não para os intelectuais; que também nos Evangelhos existem ‘exageros’. E a pergunta: ‘Mas nós não somos cristãos?’, responde: ‘Nós somos ‘prelados’, isto é, ‘políticos’ da Igreja de Roma” (21).


“Entre a casta política dominante e a casta sacerdotal se estabelece uma comunidade de interesses” (22), interesses que, logicamente, só podem ser políticos. Inclusive todas as religiões ditas “superiores” sempre exerceram a função de partido político, em todas as épocas; durante a Idade Média, no Oriente Médio, “duas grandes tradições religiosas se opunham, no seio do Islã; a Suna, o sunismo, representava a ortodoxia oficial, contra Xi’ia, o ‘partido’, cujos adeptos se proclamavam descendentes diretos de Ali, esposo de Fátima, filha do Profeta, partido reformista que rejeitava a tradição escrita e oral (a Suna) por não reconhecer outra autoridade senão o Corão. O califado xiita, ou fatímida, do Egito opunha-se ao califado ortodoxo de Bagdá. Se o Egito era feudo principal do xiitismo, seus partidários eram numerosos em todos os países muçulmanos, em particular na Pérsia, na Mesopotâmia, onde por um momento eles tomaram o poder (1058), e na Síria” (23), ainda hoje vemos no muçulmanismo um partido político-religioso. “A Constituição da Arábia Saudita é fortemente enraizada na religião porque é baseada no Alcorão e na Sunna (tradição do Profeta). O Islam não é somente uma das três grandes religiões monoteístas do mundo; é também um modo de vida e um sistema legal prático estabelecendo princípios para o comportamento na vida privada, social e de negócios” (24). “Desde a sua fundação em 1932, pelo Rei Abdul Aziz, na Arábia Saudita tem seguido a Sharia, ou lei religiosa, para conduzir os afazeres nacionais” (25). “O Rei Faizal continuou o enérgico caminho da reforma social interna, iniciada por seu pai dentro do conceito de justiça social advogado pelo Islam, (...) Ele (...) será sempre lembrado com honra pela amplificação dos lugares sagrados” (26).


No Brasil, durante o século XVIII, o ensino jesuítico “voltava-se para o brilhante e vistoso (...). O brilho fácil se realizava no púlpito — meio de comunicação não só dos problemas religiosos como também das questões políticas, aliados ao exercício meramente verbal” (27). Para Max Weber, “O aparecimento da difusão da ordem dos mendicantes, ou franciscanos, estão ligados aos interesses dos líderes do poder secular em explorar-lhes as habilidades como professores não-remunerados ou como demagogos urbanos” (28).


Recordemo-nos mais a respeito do que Weber nos diz sobre a união entre religião e política, o que, a nosso ver, são indícios da religião como partido político: “Devemos lembrar que durante o período colonial nas áreas centrais da Nova Inglaterra, especialmente em Massachusetts, a cidadania plena na congregação religiosa era condição preliminar para a cidadania no Estado (além de outras condições). A congregação religiosa determinava, na verdade, a admissão ou não admissão do estamento de cidadania política (...)


“Os quacres na Pensilvânia eram de certa forma os senhores do Estado até pouco antes da Guerra da Independência” (29).


“A excomunhão na Idade Média também tinha consequências políticas e civis” (30).


“(...) Numa longa viagem de trem através do que era então território índio o Autor [o próprio Max Weber], sentado ao lado de um caixeiro-viajante de ‘ferragens funerárias’ (letras de ferro para túmulos), mencionou casualmente a tendência, ainda bastante forte, para a participação nas igrejas. Com isso, o vendedor observou; ‘Senhor, de minha parte, quem quiser pode acreditar ou não; mas se eu visse um agricultor ou comerciante que não pertencesse a nenhuma igreja, não lhe daria crédito de cinquenta centavos. Por que me havia de pagar, se não acredita em nada?’” (31)


Vejamos agora outra passagem que nos conta o sociólogo:


“(...) Um prefeito (ariano!) de Berlim não foi oficialmente confirmado porque não batizou um de seus filhos” (32).


Esta sempre foi, aliás, a função da Igreja na divisão das tarefas políticas da sociedade de classes — uma função de manutenção da cultura idealista —: “a escola e a Igreja são as duas maiores organizações culturais em todos os países. Em todos os países existe uma cisão entre as massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais próximos da periferia nacional, como os professores e os padres. Isso ocorre porque o Estado não tem uma concepção unitária, coerente e homogênea, razão pela qual os grupos intelectuais estão desagregados por vários estratos no interior de um mesmo estrato. A universidade não oferece nenhuma visão unificadora; um pensador livre tem mais influência do que toda a instituição universitária.” (33)


Cabe às duas maiores instituições culturais do capitalismo, a escola e a Igreja, a divulgação do registro linguístico de que se servem as classes dominantes, separando-o do registro linguístico utilizado pelas massas populares, que passa a ser discriminado pela vulgaridade; é o chamado registro vulgar, das classes subalternas, do proletariado, do lumpemproletariado e dos camponeses pobres. Os intelectuais comprometidos com o poder do capital procedem então à normatização de uma gramática prescritiva do falar das classes dominantes que a língua escrita deve acompanhar.


A gramática prescritiva do falar das classes dominantes no Brasil é a gramática oficial da língua portuguesa, mas não se baseia na verdadeira gramática — que é um sistema de regras interiorizadas — da língua falada pelo povo brasileiro, baseia-se na língua falada em Portugal e na língua escrita pela intelectualidade clássica da burguesia brasileira que, por sua vez, artificialmente tenta seguir as regras normativas daquele país europeu. É, portanto, falsa e não incorpora os critérios científicos da moderna linguística; sua classificação e análise estão assentadas na linguística intuitiva anterior à dos neogramáticos. Procura prescrever o que é certo e o que é errado em linguagem, tendo uma visão de que certo é o beletrismo, acha ser o Latim a língua mais lógica do mundo, porque não quer aceitar o fato de que cada língua tem sua lógica nascida dos critérios históricos da formação socioeconômica de um povo, a que língua alguma pode corresponder. Prefere o estudo de pontos isolados, por não ver o todo complexo, dinâmico e integrado que a língua possui; é preconceituosa e atina com corrupções em cada inovação de desenvolvimento normal da língua; é dogmática, acredita no fato equivocado de o falante nativo sadio poder ter problemas linguísticos; pretende ensinar ao povo como falar, em vez de querer refletir o que, como, para que, onde e quando o povo fala da maneira que fala. Depende, portanto, de apreciações subjetivas e confunde sincronia com diacronia.


A gramática do poder passa a ter então uma orientação intencional: a da diferenciação dos comportamentos verbais, estabelecendo quais são as “pessoas de bem” e as que não são, as que constituem a classe dominante ou que possam atuar na dominação e as que são dominadas. Essa diferenciação sempre foi imposta no decorrer da história e visa elevar a expressão verbal dos proprietários dos meios de produção, rebaixar a expressão verbal dos trabalhadores, mistificar o discurso urbano, que passa a se cobrir de uma “aura” de educação privilegiada e ridicularizar o discurso camponês e dialetado. O discurso urbano passa a ser o “ideal sagrado” de intervenção linguística em uma nação, não em decorrência de na cidade se encontrar o proletariado, mas porque lá está a burguesia, e a burguesia mistifica tal discurso a fim de que possa converter a visão de sua ideologia como se fosse científica, qualitativamente melhor, com uma correta e profunda expressão da realidade. O discurso urbano burguês passa então a ser a norma da conduta linguística, considerada “correta”.


Não quero dizer com isso, neste artigo, que o discurso urbano deva ser relegado a um plano secundário, visto que é o discurso urbano que impulsiona a elevação linguística de um povo; é na cidade que estão as forças produtivas mais elevadas que movem o capitalismo, e é lá que as relações sociais entram em contradição dialética com aquelas forças de forma mais progressista; entretanto, no capitalismo, o discurso urbano é ideológico, é um discurso burguês, pois o proletariado ainda não alcançou a hegemonia do poder político que permita acabar com a diferenciação quantitativa do conhecimento, transformando a quantidade em qualidade numa sociedade de classes que tenha uma intelectualidade orgânica a tomar lugar na sociedade como vanguarda condutora do processo de transformação do estado de necessidade (etapa de luta pela sobrevivência econômica) em estado de liberdade (fim do Estado). Quando tal fato acontecer, aí sim, poderemos nos mirar no discurso da vanguarda revolucionária como um padrão de desempenho linguístico da nação, norma esta em que toda a sociedade estará verdadeiramente empenhada em assimilar em virtude de partir dela própria e assentar-se no processo coletivo de produção intelectual.


Assim como na antiguidade, “a língua de Roma era o idioma da aristocracia citadina, que se impunha à camada rural, semelhante, é o Francês comum à língua da burguesia parisiense. Os dois casos exemplificam ao mesmo tempo a predominância social, econômica e intelectual de uma determinada classe e a importância da capital como foco centralizador e irradiador dos processos linguísticos.


“A língua comum da Itália, anterior à própria unificação política da península, irradiou da classe cultivada de uma cidade: Florença” (34).


Aí temos, portanto, o que se convencionou chamar de registro culto e registro vulgar. Na sociedade de classes, o registro culto sempre foi o que pertencesse à classe dominante; realmente, a classe dominante sempre teve maior acumulação de conhecimento do que as classes subalternas, no entanto, isso não configura que ele corporifique a correta interpretação da realidade. Nas sociedades de classes, ele é utilizado com a função de discriminação e exploração das classes subordinadas. Por ser sempre o discurso da classe dominante, ele é o discurso que, no capitalismo, expressa os valores ideológicos da burguesia. Já o registro vulgar é o discurso dialetado, das massas, que não obedecem, por falta de instrução, à norma culta instituída à imagem e semelhança da cultura burguesa.


O registro culto realmente possui um embasamento quantitativamente maior do que o do registro chamado vulgar, inclusive, aí reside a diferença: ela é quantitativa e não qualitativa — pois a base ideológica de ambos é exatamente a  mesma, ou seja, a ideologia capitalista —, a distinção existente é quanto à acumulação do conhecimento. Às classes espoliadas — as classes trabalhadoras, que não representam o capital — é vedada a acumulação intelectual, que passa a ser privilégio daqueles que na divisão social do trabalho têm a tarefa de “pensar” para intervir no comportamento do proletariado, que tem apenas de produzir. A apropriação do conhecimento (acumulação intelectual), na sociedade de classes, tem um critério elitista, por isso o registro culto é elitista não pela beleza estilística que possa ter, mas por ser monopólio exclusivo de uma classe que domina as outra e passa a determinar os valores linguísticos que devem ser utilizados como etiqueta verbal paradigmática mirada no comportamento da classe que detém o poder. “Da mesma forma que o homem bem educado se veste elegantemente, ou pelo menos corretamente, o homem bem educado intelectualmente, o homem de bem da tradição também se exprime corretamente e, se possível, elegantemente” (35).


Em vista disso, o pensamento cristão “dize-me com quem andas que te direi quem és” é perfeitamente traduzível em dize-me como falas que te direi como és.

BIBLIOGRAFIA

(1) REICH, Charles. O Renascer da América. Rio de Janeiro: Record, 1970. p. 25

(2) CHAUÍ, Marilena. O Que É Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1982. pp. 90-91

(3) GRAMSCI, Antonio. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 15

(4) Ibid. p. 20

(5) Ibid. p. 175

(6) Ibid. p. 176

(7) Ibid. p. 14

(8) ROUANET, Sérgio. Imaginário e Dominação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. p. 54

(9) Ibid. p.p. 54-55

(10) Ibid. p. 55

(11) GONZALES, Horácio. O Que São Intelectuais. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 90

(12) Ibid. p. 91

(13) Ibid. p. 95

(14) BARTHES, Roland. “Para Que Serve um Intelectual”, entrevista a Bernnard Henri Lévy, in Jornal Opinião. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1977

(15) WEBER, Max. Os Letrados Chineses, in Ensaio de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. p. 477

(16) TODOROV, Tzvetan. Dictionaire Enciclopédique des Sciences du Langage. Paris: Editions du Souil, 1972. p. 123

(17) GONZALES, Horácio. Opus Cit. p. 95

(18) GRAMSCI, Antonio. Opus Cit. p. 8

(19) MAAR, Wolfgang. O Que É Política. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.89

(20) Ibid. p. 96

(21) GRAMSCI, Antonio. Opus Cit. p. 20

(22) EINSTEIN, Albert. Como Vejo o Mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 198. p. 19

(23) OLDENBOURG, Zoé. As Cruzadas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 226

(24) MINISTÉRIO DA INFORMAÇÃO DA ARÁBIA SAUDITA. Arábia Saudita: Diretório Geral da Imprensa, 1978. p. 6

(25) Ibid, loc. cit.

(26) Ibid. p. 7

(27) MALARD, Letícia. Escritos de Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Editora Comunicação, 1981. p. 44

(28) GERTH, Hans & MILLS, C. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. p. 84

(29) WEBER, Max. As Seitas Protestantes e o Espírito do Capitalismo, in Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. p. 358

(30) Ibid. p. 366

(31) Ibid. p. 350

(32) Ibid, loc.cit.

(33) GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 29

(34) MACHADO FILHO, Aires. Linguística e Humanismo. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 127.

Guará II-DF, 31 de março de 2023

SALIN SIDDARTHA