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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Por que é preciso dizer não ao Projeto de Lei da Saúde no DF?

Terça, 22 de janeiro de 2019
Por
Ex-diretora da Faculdade de Ciências da Saúde da UnB. (2014-2018)

O Projeto de Lei (PL) encaminhado pelo Palácio do Buriti à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) fere o artigo 196 da Constituição Federal (CF/88) que afirma: “Saúde é Direito de Todos e Dever do Estado”. Outros países onde o direito à saúde é universal não pegaram atalhos, a exemplo do Canadá e Reino Unido, referências mundiais, mas julgo que o DF inicia uma contramão na história da saúde pública.
A CF/88 regulamentou em seu artigo 199 que é livre à iniciativa privada exercer no mercado suas ações; no entanto, essa será de forma complementar ao SUS, que por sua vez comprará serviços, preferencialmente das instituições filantrópicas e sem fins lucrativos. Proibida a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições com fins lucrativos. E mais, que os serviços a serem comprados sejam somente aqueles que a rede pública não tiver condições de oferecer. Além disso, os contratos, convênios ou outros instrumentos jurídicos devem ser regulados pelas Secretarias de Estados e Municípios, conforme as diretrizes do SUS.
Portanto, como é do conhecimento de todos (as), o DF dispõem de uma rede física instalada considerável, de uma Escola de Medicina e Enfermagem de alto padrão, parcerias institucionais qualificadas e, principalmente, de um corpo de servidores abnegados, que há décadas sofrem com a precarização do seu processo de trabalho, com subtração e/ou uso indevido de verbas públicas, que levam ao descaso, ao sucateamento, e a crises permanentes na saúde pela falta de decisão política para a implantação real do SUS.
Logo, o que avistamos é a concepção clientelista da ação governamental, justificado pelas narrativas de que as OS são mais eficientes, econômicas e desburocratizadas na aquisição de insumos ao apoio de diagnósticos e terapêuticos. O que não é fato. Fato é a terceirização de sua responsabilidade constitucional. Mais grave, a subtração dos recursos públicos, que é irracional, portanto, um desserviço, prejudicando cada vez mais os pobres. A OS custa mais aos cofres públicos, pois é mais cara, com eficiência duvidosa e portas abertas à corrupção. O Rio de Janeiro e outras unidades federadas, exemplificam bem essa questão.
Investir somente em Hospitais desorganiza o sistema. Traz de volta o velho modelo centralizado nas especialidades médicas, nas condutas por vezes excessivas de gastos, com solicitação de exames ao apoio diagnóstico e terapêutico. Assim, seu incentivo é uma dupla porta ao acesso das ações e serviços de saúde, quando é necessário estruturá-lo a partir das Unidades Básicas de Saúde, vinculando-as aos demais pontos do sistema, formando Redes de Atenção Integradas. Ou seja, é preciso desenhar uma rede assistencial que promova a saúde e previna doenças.
Estudos realizados comprovam ser infinitamente mais custosa a lógica organizativa de sistemas de saúde tendo o hospital como porta de entrada, confirmando, assim, que a tão proclamada economia de recursos públicos não se justifica nem corresponde à verdade das intenções.
A inserção dos trabalhadores da saúde por regimes diferenciados, uns estatutários outros celetistas, regidos pelo mesmo processo de trabalho não é apenas porta aberta aos conflitos, como desestímulo ao crescimento de suas carreiras e indefinição de seu futuro, emprego, renda, salário e aposentadoria.  Em vez de enviar um Projeto terceirizando a responsabilidade de governar a saúde, o governador deveria optar por atitudes republicanas e corresponsáveis no ato de gerir o Aparelho de Estado. Destacaria em particular o respeito ao Legislativo e outros poderes do Estado, garantidos em cláusulas pétreas pela CF/88. O governador tem o dever de ofício de conhecer e compreender as interpelações da República Federativa do País.
Nessa esteira, é preciso e é chegada a hora do DF exercer a pedagogia da exemplaridade, sendo o farol que iluminará o fortalecimento do SUS, partindo de algumas medidas que considero essenciais, vejamos:
A- BARRAR de vez essa onda de privatização, evitando seu crescimento assustador, que compromete, seguramente, as funções essenciais da Secretaria de Saúde, indo na contramão dos valores e princípios organizativos do SUS: universalidade, integralidade e equidade. Não conceber o patrocínio do setor privado via mercado, planos e seguros-saúde, por meio de contratação coletiva para funcionários públicos, concepções de subsídios, inserções e renúncias de arrecadações fiscais e outros incentivos.
B- DEIXAR nas páginas do passado essa cantilena de que o SUS não funciona, é ineficiente e “travado” pela Lei de Responsabilidade Fiscal e de Licitação (8666). Para isso, há instrumentos de Gestão, com planejamento e programação, capazes de antever as situações e os problemas.
C- ZERAR o erro clássico de culpar os servidores pelos problemas históricos da Saúde, que não foram por eles criados. Ao contrário, há relatos de que muitos deles retiram do seu bolso recursos para comprar materiais básicos para não interromper o funcionamento das unidades em que trabalham. Se faz necessário vinculá-los, principalmente à rede básica, por concurso público e de forma dialógica, evitando tendões emocionais, problemas de saúde mental. Cuidar de quem cuida é premissa vital. A mesa de negociação com os servidores, para mediar as relações e valorização do trabalho, é uma das experiências exitosas que implantamos quando fui gestora da secretaria da atenção básica do MS e que pode ser replicada.
D- TOMAR a decisão política de inverter o atual Modelo de Atenção à Saúde – que está voltado para privilegiar a assistência individual-curativa, para indução ao consumo de procedimentos ao apoio diagnóstico, exames clínico-laboratoriais, leitos hospitalares, sobretudo de longa duração, que beneficia e enriquece, dia após dia, o setor empresarial do complexo médico-industrial.
Em direção contrária, é imperativo que se implante em todas as Regiões Administrativas as Estratégias de Agentes Comunitários e saúde da família (o que foi denominado - “Saúde em Casa”, para fortalecer a Atenção Básica e definir com clareza o perfil dos hospitais - em Rede Integrada, com isso, finalmente o SUS constitucional.
E- ABRIR mesa de negociação com os governos do Goiás, Minas Gerais e outros Estados da região para negociar o Ressarcimento à SES-DF pelos serviços prestados aos usuários, sobretudo daqueles que dispõem de planos privados de saúde.
F- FORTALECER os conselhos de saúde e, junto com eles, outras entidades do setor saúde (Universidades, Faculdades, Sindicatos), para debater os complexos desafios e conflitos que permeiam, décadas após décadas, o SUS no DF.
G - USAR do poder junto à bancada dos deputados federais (base de apoio), articulando, junto ao Governo Federal e ao Congresso, o fim da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos em saúde, educação e assistência social pelos próximos 20 anos. Aliás, ação do governo Temer e da bancada do MDB, partido do Governador. Os ajustes fiscais para as áreas essenciais ao desenvolvimento humano integrado, sustentável e saudável devem ser substituídos por alternativas à consolidação do SUS no DF, onde o mesmo seja verdadeiramente público, gratuito e de qualidade como reza a Constituição Federal.
Por essas e outras ações equivocadas, já sabemos o desfecho... Mais dores e mortes da nossa gente, enquanto rolam as negociatas e ameaças àqueles (as) que não colocam seus mandatos e valores à venda. Até porque os mandatos são delegações do povo, não vontades próprias.
Fonte: http://fatimasousa.com