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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 20 de maio de 2022

UNICEF alerta para os riscos da educação domiciliar (homeschooling)

Sexta, 20 de maio de 2022

Da Unicef Brasil —20 maio 2022

Comunicado de imprensa

UNICEF alerta para os riscos da educação domiciliar

Projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, e que seguirá para o Senado, dá opção aos pais de assumir a responsabilidade pelo ensino e pode impactar negativamente a educação de crianças e adolescentes


Brasília, 20 de maio de 2022  —Crianças e adolescentes são sujeitos de direito— e não objetos de propriedade dos pais. Por isso, o UNICEF expressa preocupação com a aprovação pela Câmara de Deputados, na última quarta-feira, 18 de maio, do texto-base do projeto de lei 3179/12, que regulamenta a educação domiciliar. A proposta permite que a educação básica seja oferecida em casa, sob a responsabilidade dos pais ou tutores, excluindo estudantes da escola regular e afastando-os do convívio com educadores e colegas. O projeto segue para avaliação do Senado Federal e, se aprovado, vai à sanção presidencial. O UNICEF pede aos senadores que priorizem o direito de crianças e adolescentes de estar na escola em seus votos.

Passados dois anos de pandemia, torna-se ainda mais urgente garantir que cada criança, cada adolescente volte para a escola e permaneça nela, aprendendo. As consequências da pandemia, e do fechamento das escolas, foram profundas, impactando a aprendizagem, a saúde mental, a nutrição e a proteção contra a violência de milhões de meninas e meninos. Mais de 1,4 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade estão fora da escola (Pnad, 2021), e a eles se somam outros milhões que não conseguiram aprender em casa e voltam para as salas de aula com sérias defasagens de aprendizagem, precisando ainda mais do apoio de bons professores e da escola.

Autorizar a educação domiciliar significa privar crianças e adolescentes do seu pleno direito de aprender. Família e escola têm deveres diferentes e complementares na vida de meninas e meninos. A família é o lugar do cuidado e de aprendizagens não curriculares, dentro de um ambiente privado. A escola é o lugar da aprendizagem curricular e é o principal espaço público em que o estudante interage com outras pessoas, socializa e aprende.

A participação das famílias na escola é fundamental. Pais, mães e responsáveis podem —e devem— participar da construção do projeto pedagógico da escola, participar dos conselhos escolares e contribuir com as principais decisões que impactam a aprendizagem e o dia a dia escolar. Mas não devem substituir a escola na vida dos filhos.

“A escola é fundamental para garantir o direito de crianças e adolescentes à aprendizagem de qualidade, à socialização e à pluralidade de ideias, além de ser um espaço essencial de proteção de meninas e meninos contra a violência. Tirar deles o direito de estar na escola trará prejuízos importantes para crianças e adolescentes”, explica Mônica Dias Pinto, chefe de Educação do UNICEF no Brasil.

O projeto de lei 3179/12 é de autoria do deputado Lincoln Portela (PL-MG) com relatoria da deputada Luisa Canziani (PTB-PR).

Escola como espaço de aprendizagem

A escola é o lugar da educação formal e da aprendizagem —e é organizada para isso. Por mais que as famílias se esforcem, elas não conseguem reproduzir em casa toda a estrutura de uma escola— incluindo educadores formados em didática, metodologias e nos conhecimentos específicos da disciplina, que acompanham a aprendizagem do estudante, trocam entre si, são supervisionados por uma coordenação pedagógica e seguem um currículo conjunto.

A “educação domiciliar” difere do ensino remoto ou híbrido, que foi implementado em parte das escolas durante a pandemia da covid-19. Isso porque, no ensino remoto, famílias apoiam os estudantes em casa, mas a partir de atividades pedagógicas preparadas pelos professores, seguindo o currículo da escola alinhado às referências da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), promulgada em 2017/2018. Na educação domiciliar, a criança não faz mais parte da escola e são os pais que decidem o quê e como ela vai aprender, baseado no conteúdo da BNCC.

Outro aspecto importante é a avaliação do progresso da aprendizagem, que ocorre periodicamente na escola. A lei de educação domiciliar prevê apenas avaliações parametrizadas, que não são capazes de mensurar todas as dimensões do desenvolvimento de competências indicado pela BNCC. Sem um acompanhamento e uma avaliação qualificada próxima e constante, feita por educadores, crianças e adolescentes correm o risco de deixar para trás muitas oportunidades de aprender e desenvolver muitas novas habilidades e competências, comprometendo o presente e o futuro de cada um.

A isso soma-se a fiscalização do ensino domiciliar. O projeto repassa aos conselhos tutelares a responsabilidade de fiscalizar se e como os estudantes estão aprendendo em casa. A medida preocupa, uma vez que coloca a responsabilidade em profissionais que não têm formação para esse tipo de avaliação, e já têm uma série de outras atribuições.

Escola como espaço de socialização

Além da aprendizagem curricular, a escola é o lugar da socialização. Essa socialização com outras crianças e outros adolescentes acontece prioritariamente na escola e é fundamental ao desenvolvimento infantil e adolescente.

A escola é o principal espaço público que a criança e o adolescente frequentam semanalmente e onde podem interagir com uma variedade de meninas e meninos da mesma idade. Por mais que a criança tenha irmãos, esse convívio com colegas faz com que a criança desenvolva a capacidade de dialogar, conviver, respeitar em uma sociedade diversa e plural.

Alguns pais argumentam ter medo do ambiente escolar, de que os filhos sofram bullying, ou tenham que lidar com situações difíceis. Mas não é excluindo a criança do ambiente escolar que esses problemas vão se resolver. Estar na escola, com apoio de educadores e da família, é fundamental para que a criança aprenda a lidar com os conflitos e desenvolva ferramentas para enfrentá-los. Em casos graves, a criança deve ser apoiada pelos professores e outros profissionais de educação, que por sua vez podem acessar outros serviços públicos do Sistema de Garantia de Direitos.

A escola representa um lugar de interações sociais e aprendizagens pela convivência com a diversidade e o respeito à diferença; é ainda o lugar de formação da cidadania, de ampliação de experiências, de encontro com o outro. O fechamento prolongado das escolas durante a pandemia demostrou o impacto negativo de separar as crianças de seus amigos e amigas, e do convívio escolar, causando problemas de saúde mental em milhares de crianças.

Escola como proteção contra a violência

Por fim, a escola é, sempre, um espaço de proteção contra as diversas formas de violência. Grande parte da violência contra crianças e adolescentes acontece dentro de casa, com agressores conhecidos. A escola é parte essencial da rede de proteção, sendo um ambiente seguro em que a criança está em contato com adultos em que confia, que podem ajudá-la. Com o retorno das aulas presenciais, houve um aumento do número de denúncias de violência contra crianças e adolescentes, pois os educadores puderam ter contato com os estudantes e reportar as violências que eles vinham sofrendo fora da escola.

Estar na escola, aprendendo, é um fator crucial de proteção. Crianças e adolescentes fora da escola ou com menos anos de estudo se tornam mais vulneráveis e vítimas da violência.

Escola como espaço de pluralidade de visões

A escola é, também, o lugar da pluralidade de pensamentos. A criança e o adolescente se deparam com diferentes opiniões e visões sobre um mesmo tema, o que é fundamental para que aprendam a refletir e desenvolvam o pensamento crítico.

Para aprender, é necessário que a criança se torne um pensador autônomo, capaz de analisar situações, fatos, argumentos, e tirar as próprias conclusões. Esse desenvolvimento é um direito, e ocorre prioritariamente na escola. Ela possibilita espaços de diálogo, em que a criança coloca seus conhecimentos em xeque, faz experimentos, discute, chega a conclusões e tem liberdade para debatê-las.

Ao deixar a responsabilidade do ensino apenas com a família, a criança não terá acesso a visões e opiniões diversas, não desenvolvendo as habilidades para lidar com elas de uma maneira construtiva e pacífica. Em casa, corre-se ainda o risco de expor a criança e o adolescente a práticas autoritárias e abusivas, visões distorcidas e imprecisas sobre temas mais complexos e possíveis casos de doutrinação.