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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 14 de abril de 2023

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE. PARTE XVII – A INDEVIDA PREFERÊNCIA PELAS AÇÕES REPRESSIVAS NO COMBATE À CORRUPÇÃO

Sexta, 14 de abril de 2023
A lógica das lideranças carismáticas como principais veículos de combate à corrupção é profundamente perigosa. Envolve uma visão autoritária do exercício do poder e uma substituição preguiçosa e “conveniente” da cidadania ativa. Ademais, não existe nenhuma garantia acerca da seriedade de propósitos dessas figuras milagrosas. Elas podem estar, de partida ou no curso do processo, a serviço de interesses pessoais ou de determinados grupos políticos ou empresariais.

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 14 de abril de 2023

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Anteriormente, foi pontuada a existência de uma consistente teorização em torno dos mecanismos de combate à corrupção. Esses instrumentos são: a) prevenção; b) detecção; c) investigação; d) correção e e) monitoramento. Na sequência, como desdobramento, são identificados os componentes de cada mecanismo. No plano operacional, os componentes são detalhados em práticas ou ações específicas. Os planos de combate à corrupção reúnem um conjunto de ações, segundo critérios ou relevâncias definidos pelos seus autores.

No Brasil e no mundo, a corrupção e problemas similares são antigos e complexos. O combate a essas mazelas requer processos demorados, penosos e de várias perspectivas distintas. A rigor, é preciso combinar, com as doses corretas, ações preventivas e repressivas. A criação de um ambiente com alta expectativa de controle e refratário à sensação de impunidade consiste numa tarefa de difícil concretização.

Na sociedade brasileira atual, profundamente influenciada pela cultura de levar vantagem, pelos baixos níveis de educação e conscientização política e déficits consideráveis de institucionalidade, prosperam graves distorções no entendimento e prática do esforço de combate à corrupção e malversações assemelhadas.

A cobertura midiática das operações de combate à corrupção produz um forte apelo popular. Transmissões ao vivo, uso de helicópteros, veículos com luzes e sirenes ligados, exposição de armamento pesado, entrevistas marcantes, recursos visuais e auditivos modernos, entre outros elementos, criam um espetáculo vistoso e atraente. Tudo se passa como capítulos de uma frenética novela, com forte atração da atenção do público por períodos consideráveis de tempo.

As vistosas operações de combate à corrupção também geram uma significativa sensação de segurança. Afinal, o trabalho das autoridades públicas pode ser visto diretamente, sem necessidade de recursos a providências mais trabalhosas, como pesquisas e estudos.

Existe uma forte distorção no senso de urgência relacionado com o combate à corrupção. A maior parte da população alimenta a ilusão de que a eliminação ou redução considerável da corrupção pode ser obtida com ações rápidas, enérgicas e determinadas. Nessa linha, os instrumentos para consecução dessas medidas são salvadores da Pátria, heróis modernos ou paladinos da moralidade, eleitos ou instalados em alguma posição estatal.

A lógica das lideranças carismáticas como principais veículos de combate à corrupção é profundamente perigosa. Envolve uma visão autoritária do exercício do poder e uma substituição preguiçosa e “conveniente” da cidadania ativa. Ademais, não existe nenhuma garantia acerca da seriedade de propósitos dessas figuras milagrosas. Elas podem estar, de partida ou no curso do processo, a serviço de interesses pessoais ou de determinados grupos políticos ou empresariais.

A moral tradicional também assume um papel importante nessas considerações voltadas para o combate à corrupção e desvios congêneres. A moral, como inteligência informadora da vontade, antecedente da ação (conduta ou comportamento), tem sido baseada na lógica consequencialista dos castigos e recompensas. Em regra, as pessoas são motivadas pelo medo do castigo (associado a dor e ao sofrimento) e pelo desejo de recompensas (vinculadas ao prazer e ao bem-estar).

A influência católica na moralidade baseada em castigos e recompensas é profunda. A Igreja Católica ensinou, ao longo de séculos, que Deus recompensa as boas ações e pune as más. Isso fica evidente na doutrina do céu e do inferno, onde a salvação eterna é a recompensa por uma vida de virtudes, enquanto o inferno é o castigo por uma vida de pecados.

Percebe-se, com relativa facilidade, que a mentalidade binária do castigo-recompensa serve de poderosa base psicológica para a preferência, amplamente majoritária, pelas ações repressivas. Afinal, no imaginário coletivo, só o medo dos castigos mais drásticos, ou suas concretizações, são meios eficientes para barrar a marcha da corrupção e outros desvios igualmente condenáveis.

Todos esses ingredientes, de um complexo e multifacetado contexto social, produzem um efeito extremamente deletério no sentido de desprezo às ações preventivas e valorização exagerada de providências repressivas. Existe uma crença equivocada de que o encarceramento é praticamente a única forma aceitável de reprimenda (castigo) e, ao mesmo tempo, a única maneira de incutir medo naqueles que são propensos a comportamentos enviesados.


Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM
PARTE III – O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO
PARTE IV – O CANDIDATO CORRUPTO
PARTE V – O MITO DA FALTA DE PUNIÇÕES
PARTE VI – O SERVIDOR QUE RECUSA A CORRUPÇÃO
PARTE VII - QUADRILHAS ORGANIZADAS POLITICAMENTE
PARTE VIII - A CORRUPÇÃO ESTRUTURAL OU SISTÊMICA
PARTE IX – CORRUPÇÃO NO SETOR PRIVADO
PARTE X - A PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO COMO O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL
PARTE XI – O TAMANHO DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
PARTE XII - COMPARANDO A CORRUPÇÃO COM ALGUMAS DAS MAIS IMPORTANTES MANIFESTAÇÕES SOCIOECONÔMICAS NO BRASIL
PARTE XIII – O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL: A DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA. NÃO É A CORRUPÇÃO
PARTE XIV - COMO A CORRUPÇÃO ESCONDE A DESIGUALDADE E O DELETÉRIO PAPEL DA GRANDE IMPRENSA
PARTE XV – OS MECANISMOS DE COMBATE À CORRUPÇÃO
PARTE XVI – OS PRINCIPAIS PLANOS NACIONAIS DE COMBATE À CORRUPÇÃO


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