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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 12 de abril de 2024

A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO PROTEGE A APOLOGIA À TORTURA E O VALE TUDO NA INTERNET?

Sexta, 12 de abril de 2024


A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO PROTEGE A APOLOGIA À TORTURA E O VALE TUDO NA INTERNET?

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 12 de abril de 2024

“O Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais deu ganho de causa a um hospital de Belo Horizonte que demitiu um funcionário por ter usado, no local de trabalho e durante o serviço, uma camisa com a imagem do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, com os dizeres ‘Ustra Vive’./Ustra comandou, durante a ditadura militar no Brasil, o Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), aparato responsável por tortura de dezenas de presos políticos” (fonte: oglobo.globo.com).

“Com governistas pedindo a retomada dos debates sobre o PL das Fake News após os ataques do dono do ‘X’, Elon Musk, um deputado bolsonarista apresentou um projeto para proibir a regulamentação das redes sociais. A proposta foi apresentada pelo deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO) na última segunda-feira (8/4), após o ministro do STF Alexandre de Moraes incluir Musk no inquérito das milícias digitais. No projeto de apenas 1 artigo, Chrisóstomo propõe que seja vedado ao Estado a regulamentação para “garantir a liberdade de expressão e o livre funcionamento das redes sociais” (fonte: metropoles.com).

As duas notícias mencionadas e tantas outras relacionadas com os fatos destacados renderam e ainda rendem muita movimentação nas redes sociais e na imprensa nos últimos dias. Uma parte significativa das repercussões envolve fortes ataques ao Judiciário brasileiro por promover, na visão dos críticos, ofensas inaceitáveis à liberdade de manifestação de pensamento.

Entre as contrariedades mais recorrentes está a afirmação de que existe uma espécie de perseguição ao “pensamento de direita”. Os registros de discordância, implicitamente ou não, admitem como normal ou aceitável veicular apoio à tortura, exaltar a figura de um reconhecido torturador, realizar ofensas diversas, disseminar notícias falsas e tolerar o incentivo à prática dos crimes mais bárbaros, inclusive envolvendo crianças e adolescentes.

Obviamente, fazer propaganda positiva do torturador, por ser torturador, pode e deve ser enquadrado como apologia ao crime ou criminoso. Não há dúvida de que a tortura é um dos crimes mais abjetos e covardes que podem ser realizados no âmbito do convívio social. 

Para afastar qualquer distorção acerca das qualificações jurídicas apontadas são apresentados os termos da Constituição e do Código Penal. Dizem os incisos III e XLIII do art. 5º do Texto Maior, respectivamente: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Define o Código Penal: “Art. 287 — Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena — detenção, de três a seis meses, ou multa”.

É evidente que aqueles que fazem apologia à tortura, ao torturador e outras modalidades criminosas igualmente graves e repugnantes não podem buscar guarida para essa miserável conduta na liberdade de manifestação de pensamento, como direito fundamental consagrado na Lei Maior. 

Com efeito, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Aliás, nenhum direito é absoluto, como amplamente aceito nos meios jurídicos. Não é aceitável que o exercício do direito de A afronte ou anule o direito de B. Uma pessoa, qualquer pessoa, não pode dizer, escrever ou propagandear o que bem quiser e entender. Um dos mais claros limites à liberdade de manifestação de pensamento é justamente a não utilização desse direito para exaltar ou incentivar a prática de crimes.

Assim, quando o Poder Público, especialmente o Poder Judiciário, adota medidas duras e enérgicas contra práticas ilícitas nas redes sociais cumpre a Constituição e as leis em vigor. Em última instância, busca-se a preservação do pacto civilizatório. É evidente que um direito, como o da liberdade de manifestação de pensamento, não pode ser colocado acima dos demais, sobretudo para diminuí-los ou subjugá-los. Nessa linha, não pode ser confundida com censura (indevida e ilícita) as restrições necessárias aos excessos, abusos e ilicitudes cometidos e reiterados no campo das comunicações, dentro e fora das redes sociais.

Evidentemente, não existe perfeição (ou ausências de erros) na atuação do Poder Judiciário no Brasil. Para esses desvios do caminho da legalidade e da juridicidade devem ser utilizados os recursos processuais pertinentes e a legítima crítica em padrões respeitosos e republicanos. São inaceitáveis os ataques à soberania nacional, as ofensas pessoais às autoridades constituídas e a vil tentativa de resolver os inevitáveis conflitos em uma sociedade complexa e plural por meio da violência física, psicológica ou da força dos interesses econômicos mais mesquinhos.

As questões relacionadas com a prática de crimes especialmente graves e outros ilícitos que afrontam aspectos fundamentais da interação social não podem ser simplificados como meros embates entre as esquerdas e as direitas (nos plurais). 

Sou daqueles que defendem com veemência a existência de princípios civilizatórios básicos ou fundamentais que precedem o debate acerca de escolhas institucionais relevantes. Ao longo da história da humanidade, muito sangue, suor e lágrimas foram “investidos” na construção de um acordo civilizatório que proíbe uma série de condutas visceralmente atentatórias à dignidade da pessoa humana, síntese jurídica dos direitos, garantias e valores mais relevantes para o convívio em sociedade.

O respeito às integridades física e moral, às liberdades de locomoção, de opção religiosa, de orientação sexual, de manifestação de pensamento, a vedação de preconceitos e discriminações, a inviolabilidade da vida privada, da moradia e das correspondências e a inafastabilidade de acesso ao Judiciário são alguns dos direitos que compõem o “mínimo civilizatório”. Esses direitos e garantias não são pautas ou temas de direita, centro ou esquerda. A efetividade desses direitos e garantias são elementos inafastáveis para qualificar como digno o convívio humano em qualquer parte do globo terrestre, independentemente do governo instalado. Não custa lembrar, nesse sentido, que os direitos e garantias individuais inscritos na Constituição brasileira de 1988 não podem ser suprimidos sequer por emendas ao Texto Maior.

É preciso afirmar com todas as letras que o debate sobre o “mínimo civilizatório”, o conjunto de direitos e garantias destacados, não se coloca como um enfrentamento entre esquerdas e direitas (no plural). Trata-se de um debate sobre a civilização e a barbárie. Negar os direitos e garantias fundamentais significa retroceder absurdamente no projeto de afirmação da humanidade rumo à barbárie, ao estado de selvageria e ao império da lei do mais forte.

A discussão sobre os rumos à esquerda ou à direita, sobretudo de um governo, somente se coloca depois do necessário acordo sobre o “mínimo civilizatório”. Assim, é completamente legítimo o debate sobre o tamanho do Estado, o papel do Estado nas atividades econômicas, a formatação das políticas públicas e a forma e a extensão da participação popular. No entanto, são inaceitáveis os discursos, os escritos e as demais ações que miram restringir e negar, de forma claramente indevida, direitos e garantias consagrados nos principais documentos jurídicos da humanidade.