Do
Correio da Cidadania
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Escrito por Guilherme C. Delgado*
Os anos de 2013, 2014 e 2015 colocaram nas ruas, em
primeiro lugar, protestos populares gigantescos, mobilizados por fora dos
partidos políticos e movimentos sociais estruturados. Defendiam-se direitos
difusos, particularmente a mobilidade urbana, e se estenderam por vários centros
urbanos de todo o país.
Por outro lado, passado o processo eleitoral de 2014,
aparentemente indiferente às manifestações do ano anterior, e conhecidos seus
resultados, inicia-se outro tipo de movimento, este completamente articulado ao
interior do sistema político, com vistas ao impedimento da presidente da
República eleita. O último lance desse movimento é a iniciativa do presidente
da Câmara Federal de desencadear o início do processo do “impeachment”.
Ademais, o ano de 2015, em termos de pauta legislativa, em
geral iniciada na Câmara Federal, é completamente invertido no sentido da
afirmação de princípios democráticos relativos ao aprofundamento da democracia
política, dos direitos civis e dos direitos sociais. Por brevidade do texto,
não me estenderei ao teor dessas pautas. Mas há um vasto rol de medidas
legislativas já aprovadas ou em tramitação de caráter restritivo às franquias
democráticas, institucionalizadas pela Constituição de 1988.
Esses três breves eventos (manifestações de 2013, eleições
de 2014 e campanha do impeachment de 2015) evidenciam, na conjuntura do triênio
2013-2015, uma questão política e social em ebulição, provavelmente não
incorporada ao repertório convencional do sistema político – eleições, pauta
congressual, agenda de prioridades dos partidos e movimentos sociais etc.
Há uma tensão difusa, às vezes invertida na manipulação
legislativa, que aqui denominamos provisoriamente de “questão democrática”,
circulando à margem de uma discussão política mais aprofundada. No ano de 2015,
caracterizado também por crise econômica, o mal-estar social tornou-se ainda
mais pesado, tendo em vista a pretensão notória do impedimento presidencial em
fase de recrudescimento do desemprego. Mas isto não elude as raízes políticas
precedentes, de uma crise política difusa, que as ruas expressaram em 2013,
sem, contudo, caracterizá-la politicamente.
Particularmente grave é a tentação de setores
ultraconservadores de apelar a ‘uma retórica da intransigência’ contra a
igualdade, mediante estigmatização de grupos sociais historicamente
discriminados – pobres, pretos, ‘gays’, ‘ nortistas’, indígenas etc. Daí a
converter antagonismos difusos em pautas de desconstrução de direitos civis,
vai um passo. Quando o tema da igualdade civil se contamina com igualdade
social, como no caso das terras étnicas (indígenas e quilombolas), a
desconstrução é mais ostensiva, envolvendo explícita aliança do tríplice B (as
bancadas do “Boi, da Bala e da Bíblia”) no Congresso.
Mais sofisticada, mas não menos grave, é a tentativa de
promover retrocesso amplo, geral e irrestrito nos direitos sociais
constitucionalizados e regulamentados (seguridade social e educação básica),
sob a etiqueta algo cínica do ‘ajuste estrutural’ do Orçamento da União.
Exemplo explícito dessa tentativa é o documento do PMDB
chamado ‘Uma Ponte para o Futuro’.
Finalmente, os direitos políticos, aí incluído o direito
cidadão à informação, ficam também relativizados, à medida que a própria mídia
se converte em orquestra política de interesses restritivos ao pluralismo
ideológico, com as exceções de praxe.
Nesse contexto, há de fato forte ameaça de retrocessos
simultâneos aos direitos políticos, sociais e civis, operados por dentro das
instituições de Estado, sem que a sociedade politicamente organizada – os
partidos políticos e a sociedade civil – exiba, com vigor e expressão pública,
a defesa desses direitos e da própria ordem constitucional subjacente.
Isto posto, parece-nos de todo relevante investir na
reflexão sobre meios e modos de configurar a ‘Questão Democrática’ que subjaz
às inquietações políticas do momento. Particularmente relevante é uma revisita
à Constituição de 1988 e às causas explícitas ou implícitas da sua aparente
desconstrução - seja por uma espécie de ‘constituinte espúria’ a que se
converteu a agenda congressual de 2015, seja devido à própria tese de
Constituinte exclusiva, que alguns setores à esquerda chegaram a defender logo
após as manifestações de junho de 2013. Nos dois casos inquieta certa limitação
das abordagens políticas.
Terminando este breve texto, penso que uma contribuição
que poderíamos oferecer ao debate da ‘Questão Democrática’ passaria pela
revisita aos próprios fundamentos da ordem democrática constitucional, nos
campos dos direitos políticos, civis e sociais, numa perspectiva de
reconstrução da caminhada dos 27 anos, ora sob grave risco de retrocesso. Essa
revisita, comprometida com a democracia, não pode deixar de registrar graves
lacunas sofridas ao ordenamento político do país e que estão na raiz da crise
estrutural – política e econômica – ora em curso.
Particular atenção precisaríamos prestar às grandes
lacunas da construção do direito público constitucionalizado, que de certa
forma permanecem infensas à democratização: 1) um sistema financeiro atrelado à
dívida pública, mas independente de controle público;
2) um sistema de propriedade de recursos naturais
estritamente mercantil, à revelia da função social e ambiental da terra;
3) um sistema de comunicação social organizado sob a forma
de monopólio e oligopólio, explicitamente em contradição ao texto
constitucional.
Não por acaso, desses espaços vazios de regulação
democrática, depois de 27 anos de vigência constitucional, urdem-se retrocessos
explícitos ou implícitos aos direitos regulamentados, no formato das agendas
ultraconservadoras de 2015.
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*Guilherme Costa Delgado é doutor em economia pela UNICAMP e consultor da
Comissão Brasileira de Justiça e Paz.