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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Parecer da PGR admite alteração indevida na Constituição de 88, mas não vê solução*


Segunda, 25 de janeiro de 2016
Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida e revista Caros Amigos
*Por João Peres e Tadeu Breda
Enquanto a economia patina, um setor chega ao fim de 2015 lambendo os beiços. Faça chuva ou faça sol, eles estão de barriga cheia. Ou melhor, quanto mais carregadas estiverem as nuvens, mais satisfeito vive o mercado financeiro. Inflação ou expectativa de inflação elevada significa juros altos, que tornam mais rentáveis as apostas dos megainvestidores. Governo fraco ou expectativa de governo fraco significa mais benesses, o que de novo aumenta a rentabilidade das apostas. E reduz as chances de recuperação da economia, a cada instante mais subordinada a um esquema sufocante que inclui destinar a metade dos gastos federais ao pagamento do mercado financeiro. O cálculo é complicado, tem raízes antigas e uma dezena de fatores sobrepostos. Os efeitos são fáceis de entender.
Em 2015, enquanto o governo Dilma Rousseff cortou de todos os segmentos para garantir o ajuste fiscal, num total de R$ 80 bilhões supostamente necessário para acalmar o mercado, este mesmo mercado recebeu mais de R$ 1 trilhão apenas em juros e em amortização da dívida. Nem um real foi cortado do que estava previsto inicialmente. O mesmo não se deu com os investimentos, cuja projeção inicial era de R$ 83 bilhões, equivalente a 8,3% do repassado ao pagamento de juros. Disso, apenas R$ 9 bilhões haviam sido liquidados até novembro, o mesmo que 0,9% do total voltado à dívida.
Como é possível? A Constituição de 1988 prevê, no artigo 166, que o Congresso não possa interferir no orçamento relativo a três questões: dotações para pessoal, transferências tributárias a estados e municípios e o chamado “serviço da dívida”. Traduzindo de maneira simplória, se tudo der errado, o presidente da República deve usar até o último centavo para pagar credores e deixar de empregar recursos em saúde, educação, previdência etc. E o Legislativo não tem o direito de opinar.
É um dos investimentos mais seguros do mundo. Projeta-se uma contração de até 3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro este ano. O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, ex-executivo do Bradesco, diz a seus amigos do mercado que não se preocupem, que tudo será resolvido. Pudera. Entre janeiro e setembro, a dívida pública cresceu 17,8%, ou R$ 600 bilhões, ou sete e meio ajustes fiscais de Levy. Em termos absolutos e proporcionais, é o aumento mais espetacular de que se tem notícia em uma década. Não por acaso, trata-se do pior desempenho econômico dos anos de governo do PT.

Como um artigo que elimina totalmente a autonomia dos poderes legais foi parar na Constituição? Esta é outra história. No último 4 de agosto, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e o coordenador da Assessoria Jurídica Constitucional, Wellington Cabral Saraiva, firmaram um documento em que reconhecem “certa plausibilidade” na tese apresentada por Luiz Ribeiro Cordioli, um engenheiro de São Carlos, no interior paulista, interessado na questão da dívida e que move a ação desde 2011. “Com efeito, os documentos acostados à representação indicam ter havido inobservância, pelo Constituinte de 1988, das formas procedimentais que regiam o processo de elaboração da Constituição da República”, continuam.
Instalada no começo de 1987 e finalizada em setembro do ano seguinte, a Assembleia Nacional Constituinte tinha em seu regimento a previsão de que cada item seria votado em dois turnos. No segundo, porém, só poderiam ser feitos ajustes ao texto ou supressões. “Verifica-se que a previsão do serviço da dívida como hipótese excepcionadora da regra constitucional da indicação de recursos para admissão de emendas a projeto de lei do orçamento não constava da redação do projeto de Constituição aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte em primeiro turno de votação, mas foi acrescida indevidamente no segundo turno”, assinalam Janot e Saraiva.
Trocando em miúdos, o Ministério Público Federal entende que houve uma fraude. Ainda não se sabe se a manifestação do procurador-geral é o início de um final vitorioso de uma longa batalha. Por enquanto, é mais um capítulo de uma extensa derrota. A ação teve uma primeira resposta do Ministério Público Federal em 2012. O procurador Marcos Angelo Grimone, de São Carlos, viu indícios de fraude e determinou que o caso fosse encaminhado ao procurador-geral da República. O então procurador, Roberto Gurgel, antecipou, em sua análise, ainda em 2013, os rumos da argumentação de Janot, de agosto deste 2015: o Supremo não pode mexer na Constituição. Uma linha de argumentação que irrita o engenheiro. “A função do Ministério Público é defender o cidadão e o patrimônio público contra atos de má-fé. A cidadania está sendo atacada, o patrimônio público está sendo dilapidado e eles dizem que não há o que fazer?”, protesta Cordioli. “A nação está sofrendo barbaramente, na sua economia e na sua cidadania, e não tem consciência de que um absurdo desses está colocado, e muito menos que as instâncias que poderiam corrigir isso com muita facilidade estão se omitindo.”
A resposta de Janot significa que restam poucos caminhos institucionais a recorrer. No fundo, Cordioli e as outras pessoas que atuam nesta questão sabem que, a essa altura, uma correção é pouco provável. Ou seja, ainda que a fraude exista, e que provoque efeitos nocivos, não se pode revogá-la, sob risco de abrir caminho para a anulação de outros pedaços da Carta Magna ou, em última instância, do documento completo. O que fazem, então, é tentar obter elementos que fortaleçam a denúncia e ampliem o número de conhecedores da história, que demorou a ganhar contornos oficiais. Em 2003, o então ministro do STF, Nelson Jobim, disse que dois artigos haviam sido alterados após o primeiro turno de votação. A revelação, repercutida no jornal O Globo, deu conta de que o artigo a respeito da harmonia entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário esteve na lista dos adulterados. O ex-deputado pelo PMDB do Rio Grande do Sul na Constituinte não quis trazer à tona o outro alvo de mudança.
Um mês mais tarde, disse que eram ao menos quinze os que passaram por alterações. “Eu não tenho a relação de todos os artigos incluídos, mas não houve qualquer irregularidade”, desconversou. Ele afirmou que a manobra foi comandada pelo presidente da Assembleia, o também peemedebista Ulysses Guimarães, e tachou de “síndrome da conspiração” a polêmica aberta pelo episódio.
Em seguida à revelação, o senador constituinte Jarbas Passarinho também decidiu comentar a fraude. O ex-ministro da Educação da ditadura disse que foram incluídos direitos trabalhistas para seus colegas das Forças Armadas. E que na fase final, antes de o texto ir à gráfica, sem a anuência dos demais parlamentares, foi promovida uma alteração para criar a medida provisória, motivo frequente de atritos entre o Congresso e o Palácio do Planalto desde então. “É a história que eu digo: quem é que ia discutir com o Ulysses? Ninguém”, afirmou Jarbas, revelando ainda uma peculiar visão maquiavélica sobre o respeito às regras. “Era irregular? Sim. Mas necessário, absolutamente necessário. Se fosse seguir o regimento normal, a Constituição não sairia.” Nada que surpreenda vindo de quem é signatário do Ato Institucional Número 5 (AI-5), que basicamente tornou “legais” violações ilegais ocorridas durante o regime autoritário.
O então presidente do Supremo, Maurício Corrêa, também avaliou que não havia nada grave na informação trazida por seu colega de Corte. Outro a colocar panos quentes foi Roberto Freire, líder do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na Constituinte, mais tarde presidente do Partido Popular Socialista (PPS). “Essa é uma tentativa de criar uma inconstitucionalidade ou uma ilegitimidade que evidentemente não existe, até porque os constituintes, ao assinarem a Constituição, referendaram tudo o que havia sido feito”, afirmou ao jornal Correio Braziliense.
Já Leonel Brizola, então deputado pelo PDT, não escondeu sua irritação, em artigo publicado no mesmo jornal, no qual cobrou que se revelassem todas as fraudes. “Francamente, em qualquer país sério, um ministro do STF envolvido em tal episódio estaria, a esta altura, apresentando sua renúncia e pedindo desculpas ao país e à consciência jurídica.”
Não foi o que ocorreu. No ano seguinte, Jobim passou a presidir a Corte, da qual se aposentou em 2006 para retornar à carreira política como ministro da Defesa dos governos Lula e Dilma, dos quais se despediu após declarações polêmicas e desafios públicos à presidenta — antes, havia sido titular da Justiça de Fernando Henrique Cardoso.
Uma trajetória singular. Como o próprio admitiu em entrevista a O Globo, chegou à Constituinte como um “periférico”. Que, no entanto, rapidamente migrou ao centro nervoso das operações na condição de guru para temas jurídicos. “Informava e eles decidiam”, afirmou na conversa de 2003, quando estava na condição de guardião e organizador dos arquivos da Assembleia Nacional. “Há anotações que só Jobim é capaz de decifrar”, assegurou o jornal carioca. Procurado pela Caros Amigos, o ex-parlamentar não se pronunciou sobre anotações, alterações e desdobramentos.
A revelação feita por ele foi a peça que faltava no quebra-cabeça de Adriano Benayon, advogado e mestre em Economia pela Universidade de Hamburgo. Na década de 1990, como consultor legislativo, ele havia aprofundado os estudos sobre dívida pública e levantado suspeita a respeito de fraudes no artigo da Constituição que tratava do tema. Quando veio a confissão de Jobim, Benayon se somou a Pedro Rezende, professor de Ciência da Computação da Universidade Federal de Brasília (UnB) e especialista em criptografia. Pedro já carregava desconfianças sobre a questão da dívida e curiosidade desde a entrevista dada por Jobim. “Ao conhecer Benayon e conversarmos por acaso a respeito foi que me deparei com a hipótese de um dos dispositivos contrabandeados ter sido este”, recorda Rezende.
“Durante essa conversa, eu me lembrei de um incidente com um transformador que fica ao lado de um dos anexos da Câmara dos Deputados. Esse transformador havia explodido, interditando a ala da Biblioteca do Congresso onde estão arquivados os originais de todas as sete constituintes que já tivemos, inclusive da Assembleia Constituinte de 1988. Ao me lembrar de ter lido notícia sobre essa explosão depois da confissão de Jobim ter sido publicada pelo Correio Braziliense, a sensação que tive foi de ter farejado coelho nesse mato onde bois ainda não tinham nome.”
O artigo “Anatomia de uma fraude à Constituição”, publicado em 2006, reconta a trajetória das adulterações. Os dois descobriram uma votação que não estava nos registros, ocorrida em um domingo, 28 de agosto de 1988. Ao vasculhar os arquivos, notou-se que foi nesta sessão que se anunciou a fusão de artigos que tratavam de questões orçamentárias.
A folha em que se acrescentou o texto relativo ao serviço da dívida está rubricada apenas por Jobim e pelo líder do PTB, Gastone Righi. Já a folha de votação não está assinada pelo deputado João Alves (PFL), justamente o autor de uma emenda que visava a garantir que o Congresso opinasse sobre esta questão. Alves argumentava que o direito exclusivo do presidente da República sobre o assunto acabaria por representar uma limitação abusiva ao papel dos legisladores. O efeito negativo foi automático. Nas planilhas apresentadas por Benayon e Rezende, vê-se que os gastos com amortização da dívida saltaram de R$ 10 bilhões em 1986 para R$ 492 bilhões em R$ 1989. O serviço da dívida passou de R$ 50,5 bilhões para R$ 564 bilhões. “O Brasil vai entrando em uma crise cada vez maior. É uma consequência nefasta do modelo econômico”, lamenta Benayon.
Ele situa o começo dessa história na queda do governo Getúlio Vargas, em 1954. Em seguida, foram firmados instrumentos para garantir a captação de recursos no exterior em troca da emissão de títulos. Um documento oficial do Ministério da Fazenda, editado no governo Lula, mostra que o déficit orçamentário foi de 5,7 milhões de cruzeiros em 1955 para 23,9 milhões no ano seguinte e 41,2 milhões em 1957. Com isso, seria necessário encontrar outros modos de assegurar os investimentos governamentais.
É aí que entram em cena os papéis vendidos ao mercado financeiro. Na teoria, os títulos são uma maneira de um governo obter recursos para seus investimentos internos. Quem os compra, porém, quer em troca uma remuneração gorducha e garantida. De cara, estas operações somam 9,4 milhões de cruzeiros em 1958 e, cinco anos mais tarde, já estão em 55,5 milhões. O documento admite que havia “pressões de instituições financeiras”, ansiosas em encontrar mais clareza e segurança na remuneração que recebiam.
A ditadura, em seguida, cria o que o trabalho do Ministério da Fazenda chama de “mercado da dívida pública”: para atrair investidores, é preciso assegurar um retorno cada vez mais favorável. Com isso, os títulos passam a prever que os compradores não serão afetados de maneira alguma pela inflação — e estes títulos rapidamente ganham o status de preferidos do mercado. Findo o período autoritário, é necessário apresentar mais e mais garantias, em meio ao fracasso do Plano Cruzado e à assinatura de sucessivos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Quando já se deram todos os anéis, resta oferecer os dedos. O que poderia ser mais seguro que a Constituição? Por isso, Benayon nunca se animou a levar suas investigações a personagens eleitos pelo voto. “Todos os governos que se têm sucedido são subordinados ao setor financeiro mundial e local. Então, tenho uma visão radical, mas que me parece correta, de que o poder financeiro domina todo o processo político”, afirma. “É uma coisa intimamente ligada ao modelo econômico. Faz parte dele. Ou seja, se você não mudar toda a estrutura de mercado, de produção, e isso envolve uma grande virada política, não resolve. Nem resolve a questão da dívida, nem a continuidade desses fatores que determinam a dívida”.
Em 1995, o senador Ademir Andrade (PSB-PA) protocolou a Proposta de Emenda à Constituição 62, que visava a extirpar o dispositivo que obriga ao pagamento incondicional da dívida. “Houve a negação do próprio processo democrático, em votações por meio de lideranças, em casos como este, possivelmente desavisadas do que representava esta perigosa adição. Terá havido crime? Má-fé?”, indagou o ex-constituinte, argumentando que era um absoluto nonsense fazer o País inteiro atuar em prol de grupos econômicos bilionários que só ampliam seus lucros. “O fato é que passou-se a ganhar mais em operações financeiras do que em trabalhar e produzir.” O parlamentar antecipou em dezesseis anos o tom do discurso do início de mandato de Dilma. Ao tomar posse, e nos meses seguintes, a presidenta elencou como prioridade levar os juros a níveis “civilizados”. Ela afirmou, durante o pronunciamento pelo Dia do Trabalho de 2012, que os bancos são sólidos e lucrativos e que o governo forçaria cada segmento a fazer sua parte pelo bem do País. “O setor financeiro, portanto, não tem como explicar esta lógica perversa aos brasileiros. A Selic baixa, a inflação permanece estável, mas os juros do cheque especial, das prestações ou do cartão de crédito não diminuem.”
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, falava em “desintoxicar” a economia, criando condições para que o capital injetado em operações especulativas migrasse a atividades produtivas. Para isso, a taxa Selic caiu de 11,25% em 2011 para 7,25% em abril de 2013, menor patamar da história. Como os títulos da dívida pública estão atrelados aos juros oficiais, quanto maior a Selic, mais os investidores ganham — e menos recursos sobram para investimentos.
Nos últimos anos, sem explicação plausível, o Banco Central reverteu a trajetória de queda e fez duplicar a taxa. O argumento tem sido o mesmo, historicamente: precisamos demonstrar credibilidade ao mercado. Para que nos creiam sérios e honradores de acordos, temos de lhes manter as barrigas cheias, nem que para isso alguns de nós fiquem de barriga vazia. Na década de 1980, dívida externa era um tema central na agenda brasileira. Duas comissões foram instaladas no Congresso para estudar o tema. A primeira admitia que o problema levava a uma série de consequências negativas para o Brasil do ponto de vista social e econômico, mas, afinal de contas, os acordos haviam sido firmados de espontânea vontade e não havia muito a se fazer. A segunda chegou ao fim sem apresentar relatório.
Em 1997, o senador Jefferson Peres (PDT) apresentou à Comissão de Constituição e Justiça seu parecer favorável ao arquivamento da PEC de Ademir Andrade. Ele avaliou que a supressão do artigo fraudado poderia desembocar no famoso calote, que jogaria o Brasil num ciclo de difícil reversão: impossibilidade de contrair novos empréstimos, fuga de capitais, contração da economia, desemprego. “Alegar que as dívidas foram contraídas irresponsavelmente e que os juros são absurdamente elevados para prestar favores aos grandes aplicadores e que, por estas razões, são ilegítimas, são argumentos inválidos do ponto de vista jurídico e pouco convincentes sob o ângulo das relações sociedade e Estado”, criticou.
Para Pedro Rezende, “o pensamento político que atualmente domina nossa civilização vê esse ordenamento financeiro, controlado por bancos centrais que assim agem com soberania e arrogância supremas, como inerente à lógica do capitalismo”. Ele acredita que as chances de revogação são baixas e só se dariam com uma mudança de conjuntura absoluta, que levasse ao colapso da ordem financeira global. “Ocorre que estamos em meio à revolução pós-industrial, navegando por inexploradas fronteiras técnicas e psicossociais, além das quais esse tipo de ordenamento financeiro pode ser rejeitado como forma semiológica de escravagismo.”
A década de 1990, porém, foi produtiva para quem aposta no serviço da dívida. Os lucros das estatais foram direcionados ao cálculo do superávit. Foram alteradas as relações de endividamento de estados e municípios. Empresas em todos os níveis da federação acabaram vendidas a corporações que passaram a lucrar duplamente — no pagamento dos títulos e na administração das outrora estatais.
Em 1999, FHC firmou o Decreto 3.088, que estabeleceu o sistema de metas de inflação. Em linhas gerais, o então presidente deu autonomia operacional ao Banco Central para conduzir a política monetária e definir a taxa de juros, uma condição fundamental aos olhos do FMI. Dois anos mais tarde, de novo graças à caneta do tucano, a União passou a ser responsável por cobrir qualquer déficit do BC. Estas duas operações estão conectadas e são complexas. A entidade do mercado financeiro capta reservas internacionais no exterior. Se é preciso cobrir um prejuízo, faz-se isso com o repasse de títulos que remuneram a taxas de juros muito maiores que o rendimento das reservas.
“A tese monetarista está por trás de um círculo vicioso: na medida em que a taxa de juros sobe, aumenta a dificuldade de rolar a dívida. E, para rolar a dívida, ela tem de subir de novo. Por outro lado, na medida em que a taxa de juros sobe, a arrecadação cai, porque o PIB cai”, explicou a economista Maria de Lourdes Mollo, professora da UnB, durante audiência realizada pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Dívida Pública, que operou na Câmara entre 2009 e 2010. “A necessidade de se endividar do governo se amplia. O argumento é sempre o de aumento da taxa de juros. A alternativa seria a de controlar preços ou de estimular ofertas localizadas, que estejam provocando estrangulamento. Para isso o governo tem que ter arrecadação, a fim de bancar infraestrutura e regulamentação, que garantam que os objetivos do País possam ser alcançados.”
O que a professora disse lá atrás é o que se está assistindo hoje. Com a dívida mais alta, o Banco Central sobe os juros, que consomem mais recursos públicos, o que permite menos investimentos. A dívida cresce e, ao final, arrecada-se apenas para pagar juros sobre juros.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2013 houve elevação da necessidade de financiamento do governo para R$ 155,6 bilhões, ou R$ 60 bilhões a mais que no ano anterior. Um aumento explicado principalmente pela elevação dos juros. “Se tivéssemos na presidência um estadista, ele chegaria no Banco Central e diria que acabou a farra”, projeta Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, grupo da sociedade civil que se articula para tentar pautar o debate. “O instrumento de endividamento público deveria ser importante para aportar recursos que não são suficientemente obtidos pelo Estado. Mas o que virou o endividamento público no Brasil? Um grande esquema de transferência de recursos públicos para o setor privado.”
Uma das esperanças para mudar o curso do rio é — seria? — a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 59, apresentada em 2004 pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Supremo Tribunal Federal. A entidade argumenta que o Legislativo descumpriu o artigo 26 [do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais] da Constituição: “No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”. Não se sabe qual será o desfecho da ação, que durante oito anos dormiu no gabinete do ministro Ayres Britto e hoje reside na sala de Luís Roberto Barroso.
A Advocacia-Geral do Senado foi mais rápida em sua manifestação, na qual alega que seria absurdo forçar o Legislativo a qualquer atitude. E lança mão de um velho dispositivo desmerecedor do alheio: trata-se de uma ação “política” calcada na visão “ideológica” de que a dívida e as medidas dela decorrentes são negativas. Do outro lado do salão, na Câmara, a CPI da Dívida Pública chegou ao fim com um relatório que admite uma série de problemas, mas não prevê a realização de uma auditoria. O relator, deputado Pedro Novais (PMDB-MA), entende que caberia ao Congresso como um todo, e não apenas à Câmara, tomar uma decisão deste tipo, que, no entanto, teria caráter duvidoso, já que passou há muito tempo o prazo estipulado pela Constituição para a varredura no histórico de endividamento.
Insatisfeito, o deputado federal Ivan Valente (PSol-SP), responsável pelo requerimento de abertura da CPI, apresentou voto em separado. Ele elencou uma série de indícios de fraudes e de operações arriscadas criadas para elevar a dívida e favorecer o mercado financeiro, sempre sob contratos e cláusulas firmados em condições obscuras. Entre os tópicos mais recentes, o parlamentar acusa que o pagamento antecipado de uma dívida de US$ 15,5 bilhões com o FMI, em 2005, significou a troca de uma operação com juros de 4% ao ano por outra de 19,5% ao ano. Ivan Valente entende que é ilegal que o País pague juros sobre juros, sem que se utilize a dívida como instrumento para captação de recursos para investimentos. “Com a alta unilateral e ilegal das taxas de juros internacionais pelos bancos privados nos Estados Unidos (Prime) e na Inglaterra (Libor), a partir de 1979, as taxas saltaram do patamar de 6% para 20,5% ao ano”, exemplificou. “Caso os juros tivessem sido mantidos em 6% ao ano, os pagamentos realizados teriam sido suficientes para pagar toda a dívida externa — atualmente em US$ 282 bilhões, e o Brasil ainda teria valores a serem ressarcidos”, diz o deputado, citando números do Banco Central aferidos no balanço de pagamento de outubro.
Ao arcabouço legal em prol da remuneração do mercado, agrega-se uma engrenagem com poder de argumentar e pressionar. O financiamento do sistema político, a economia atrelada a metas de inflação e à obtenção do superávit primário e o controle midiático são três pilares fundamentais. Nas eleições de 2014, o Itaú Unibanco investiu R$ 26,5 milhões em vários candidatos apenas por seu principal Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). De cinco CNPJs do Bradesco saíram R$ 28,2 milhões. “Se sair na rua e perguntar por que o Brasil não dá certo, a maioria das pessoas vai falar que é por causa dos escândalos de corrupção. Essa corrupção que sai na imprensa é interessantíssima para o setor financeiro”, diz Maria Lúcia. No entendimento dela, o que se faz com a denúncia de casos de desvios no sistema político é garantir que os cidadãos não atentem para um esquema muito maior. A coordenadora da Auditoria Cidadã avalia que todos os problemas de desenvolvimento social e econômico do País estão atrelados ao serviço da dívida. “Por que juro alto? Para remunerar regiamente o capital. Sendo que o juro alto não combate o tipo de inflação que temos no Brasil. Nossa inflação é provocada por energia, telefonia, gasolina, alimento caríssimo. Alimento no Brasil era para ser quase de graça e com alta qualidade. Por que não é? Porque se impõe um modelo agrícola insano para exportar, exportar, exportar e pagar a dívida.” É um buraco sem fundo.
A dívida bruta do governo federal foi de R$ 1,3 trilhão em 2006 para R$ 3,8 trilhões em setembro de 2015. Nos cálculos de Cordioli, o Brasil já gastou R$ 20 trilhões com a questão. A relação dívida-PIB, que era de menos de 10% em 1985, já havia atingido 57,2% em 2003 e chegou a 62,5% no começo de 2015. Projeções de agências privadas, as mesmas que lucram com os títulos, já falavam em um patamar de 70%, o que naturalmente força o governo a oferecer mais e mais garantias de remuneração ao mercado. Ou seja, mesmo gastando metade do orçamento no pagamento dos débitos, o problema só aumenta. Se deixássemos de fazer tudo, absolutamente tudo durante um ano, desde comer até construir hospitais, ainda assim o dinheiro não alcançaria.
João Peres e Tadeu Breda são jornalistas.
*Artigo Publicado originalmente na Edição 225 da Revista “Caros Amigos” (Janeiro/2016)