Domingo, 28 de agosto de 2016
Do resistir.info
por Prabhat Patnaik
[*]
O capitalismo é um sistema "espontâneo" no sentido de
que a sua dinâmica se caracteriza pelo desdobramento de certas
tendências imanentes, tais como a mercantilização de tudo,
a destruição da produção pré capitalista e o
processo de centralização do capital. Levanta-se a
questão: qual é o papel do Estado nesta dinâmica
espontânea do capitalismo? Em geral o Estado numa sociedade capitalista
ajuda esta dinâmica, removendo entraves e acelerando a
operação das suas tendências imanentes. Entretanto pode
haver certas conjunturas históricas em que a correlação de
forças de classe é tal que o Estado pode ter de atuar para
restringir a espontaneidade do capitalismo.
A conjuntura do pós guerra foi uma dessas, quando o enorme crescimento
do campo socialista, o surto de confiança da classe trabalhadora nas
metrópoles e a ascensão das lutas anti-coloniais de
libertação no terceiro mundo, conjugaram-se para colocar uma
séria ameaça à própria existência do sistema.
A descolonização e a instituição da
intervenção do Estado na "administração da
procura" para assegurar altos níveis de emprego nas
metrópoles (a qual assumiu mesmo a forma de medidas de Estado
Previdência nos países da Europa onde a ameaça socialista
era mais séria), foram caminhos pelos quais o sistema enfrentou esta
ameaça existencial, com o Estado capitalista a atuar em certa medida
para restringir a espontaneidade do sistema, embora de modo algum para
eliminá-lo (pois isso é impossível enquanto o sistema
existe). Além disso, nas economias descolonizadas, os Estados que se
constituíram fora da [comunidade] de países socialistas, embora
de caráter burguês no sentido de promover o desenvolvimento
capitalista, devido à herança da luta anti-colonial também
atuaram para restringir a espontaneidade do sistema.
Mas a própria centralização do capital verificada durante
este período criou acumulações financeiras maciças
cujo impulso para abolir fronteiras nacionais que restringiam sua liberdade de
movimento inaugurou o atual regime de globalização que se
caracteriza pela globalização do capital e, acima de tudo, da
finança. O Estado-nação sob este regime perde sua
autonomia face à globalização da finança, uma vez
que qualquer movimento da sua parte para actuar de uma maneira oposta às
exigências da finança provoca uma fuga financeira e portanto uma
crise interna. Portanto, os Estados-nação de facto mais uma vez
promoveram, ao invés de restringir, as tendências imanentes do
capital. As políticas através das quais eles assim o fazem
são aquilo a que chamamos as políticas neoliberais.
O neoliberalismo, em suma, restaura a "espontaneidade" do
capitalismo".
Encarar o Estado neoliberal como a "retroceder" em favor do
"mercado" é enganoso – o Estado atua de acordo com as
exigências do capital financeiro internacional e da oligarquia
corporativa-financeira interna integrada com ele e, com isso, ajuda a
"espontaneidade" do sistema.
ASSALTO À PEQUENA PRODUÇÃO
Os mecanismos através dos quais se verifica este assalto à
pequena produção constituem o que Marx chamou o processo de
"acumulação primitiva de capital". Se bem que a
acumulação primitiva seja logicamente distinta, e ocorra
historicamente antes, do que se pode chamar a acumulação
"normal" de capital estudada pormenorizadamente no
Capital,
ela não está confinada só ao período anterior
àquele em que o capitalismo se pôs de pé. Ao
contrário, ela ocorre através de toda a história do
capitalismo, utilizando colonialismo como sua arma principal, como Marx
observou nos seus escritos sobre a Índia. O Estado colonial efetuou
esta acumulação primitiva a expensas dos pequenos produtores
através dos processos paralelos de "drenagem de excedente" e
"desindustrialização", ao passo que o Estado neoliberal
utiliza outros instrumentos (como vemos abaixo), mas a sua
manifestação na forma de uma crise da pequena
produção permanece a mesma. Em suma, a atual crise
agrária é uma re-emergência, embora sob
circunstâncias mudadas, da prolongada crise agrária da era
colonial que fora interrompida por algum tempo durante a era
dirigista.
Não [significa] que na era
dirigista
não houvesse acumulação primitiva de capital: a
expulsão de arrendatários
(tenants)
que assinalou a transição rumo à agricultura capitalista
da variedade
junker
durante este período foi um exemplo óbvio disto. Mas isto foi
acumulação primitiva a verificar-se
dentro
da economia agrária, não infligida pelo grande capital a partir
de fora. Agora, verifica-se além disso que tal acumulação
primitiva infligida a partir de fora pelo grande capital e pelo Estado
neoliberal (o qual ao invés de aparentemente pairar acima das classes e
cuidar dos interesses de "todos" torna-se preocupado acima de tudo
com a promoção dos interesses da oligarquia
corporativo-financeira). Pode-se pensar que quanto a isto não há
necessidade de distinguir entre a era
dirigista
e a era neoliberal uma vez que a acumulação primitiva ocorre sob
ambas. A questão entretanto é que a acumulação
primitiva da espécie que se verifica neste último período
é sobreposta
à acumulação primitiva verificada durante o
período anterior,
a qual também continua no período posterior.
É isto que explica a virulência da crise agrária de hoje.
O assalto à agricultura camponesa assume duas formas. Uma, constituindo
acumulação primitiva em termos de "fluxo", implica um
esmagamento de rendimentos da agricultura e portanto da lucratividade (tal como
o que o sistema fiscal efetuou no período colonial). A outra,
constituindo acumulação primitiva em termos de "stock",
implica uma transferência de activos dos camponeses a preços vis
("throwaway"),
muitas vezes sem o seu consentimento, para corporações e
desenvolvedores imobiliários para projetos de
"infraestrutura" ou "industriais" (além das
transferências que se verificam dentro da economia agrária para
latifundiários). Mesmo quando é obtido consentimento, ele
não é de todos os produtores dependentes de um lote de terra
particular; a compensação não é paga igualmente a
todos os produtores. Aqueles que são excluídos perdem
evidentemente seus direitos sobre a terra em troca de nada (incluindo direitos
costumeiros) e são as vítimas óbvias da
acumulação primitiva em termos de "stock".
Esta última questão tem sido muito discutida; vamos portanto
concentrar-nos nela. Um certo número de medidas tomadas pelo regime
dirigista
para melhorar a resiliência e lucratividade da agricultura foi desfeito
sob o regime neoliberal, esmagando o campesinato até o ponto em que
mesmo a reprodução simples se torna impossível para grande
número deles, resultando em suicídios de camponeses (mais de 200
mil na última década e meia). Entre estas estão: acabar o
isolamento da agricultura camponesa das vicissitudes das
flutuações de preços do mercado mundial que o dirigismo
proporcionava por meio de tarifas e restrições quantitativas;
colocar camponeses em contacto direto com multinacionais do
agro-negócio e corporações internas sem a almofada
protetora do Estado; fazer subir preços de inputs através da
retirada de subsídios do Estado, exigido pelo facto de que recursos
orçamentais fluem cada vez mais para grandes corporações;
reduzir a investigação e desenvolvimento agrícola em
instituições públicas; terminar serviços
públicos de extensão agrícola; cortes severos no
investimento público na agricultura; uma retirada progressiva de
crédito institucional para o setor de modo a que camponeses tenham de
contrair empréstimos a taxas exorbitantes de uma classe de novos
usurários; e privatização de serviços essenciais
como educação e saúde o que os torna inacessíveis
para trabalhadores rurais. Também se podem listar medidas semelhantes
que afetam outros segmentos de pequenos produtores: pescadores,
artesãos, fiadores e tecelões.
A acumulação primitiva de capital que destrói a pequena
produção e liberta trabalhadores para o desemprego não
teria provocado o sofrimento que provocou se aqueles "libertados"
pela sua destruição houvessem sido absorvidos significativamente
dentro do "exército de trabalho ativo". Ele não o
foram e a razão para isso está na remoção de outra
restrição à "espontaneidade" que o
dirigismo
havia imposto, nomeado sobre o ritmo da mudança tecnológica e
estrutural. Em consequência a taxa de crescimento da produtividade do
trabalho tem sido tão alta que, apesar das taxas de crescimento
aparentemente altas do PIB, a taxa de crescimento do emprego tem sido demasiado
diminuta para absorver sequer o crescimento natural da força de
trabalho, muito menos os pequenos produtores deslocados à procura de
empregos. Certamente o crescente desemprego relativo provocado por isto
não se manifestou como tal: ele assumiu a forma de uma
proliferação de emprego precário, emprego em tempo
parcial, emprego intermitente e desemprego disfarçados (muitas vezes
camuflado como "micro empreendedorismo"). O racionamento de emprego
em grande medida apagou a própria distinção entre
exércitos de trabalho ativos e de reserva como entidades separadas.
Isto por um lado resultou numa proliferação do lumpen
proletariado e por outro numa estagnação ou mesmo declínio
dos salários reais dos trabalhadores organizados.
Mesmo que tomemos o período 2004-05 a 2009-10 que supostamente
testemunhou crescimento rápido do PIB e que limitemos a nossa
atenção ao que o NSS chama de "status habitual" do
emprego como um indicador aproximado do emprego correto, descobrimos que a
taxa de crescimento de tal emprego foram uns meros 0,8 por cento ao ano, bem
abaixo da taxa de crescimento da própria população (e
portanto, aproximadamente, da força de trabalho natural) ainda que
ignoremos os pequenos produtores deslocados à procura de emprego.
Segue-se portanto que para os trabalhadores como um todo, incluindo
trabalhadores agrícolas, camponeses e pequenos produtores e
trabalhadores de colarinho não branco, tem havido uma
deterioração absoluta das condições de vida reais
sob o neoliberalismo.
Isto se deve ao facto de que a característica essencial de um regime
neoliberal é infligir um processo virulento de acumulação
primitiva de capital numa situação de geração de
emprego diminuta, o qual também foi exatamente o caso sob o regime
colonial.
O paralelo com a crise agrária do período colonial fica
sublinhado se olharmos os números da produção
cerealífera. A produção líquida média anual
per capita de cereais no quinquênio 1897-1902 foi de 201,1 quilogramas
para a "Índia Britânica", a qual declinou para 146,7 no
quinquênio 1939-44 (os números subsequentes são afetados
pela partição). Isto foi um declínio maciço, de
mais de 25 por cento, o qual mostra a severidade da crise agrária. No
entanto este declínio foi revertido e houve uma melhoria no
período pós independência, até o início da
"liberalização": o número para a União
Indiana como um todo ascendeu para 178,77 kg no triênio concluído
em 1991-92. Contudo, o período da
"liberalização" assistiu mais uma vez a um
declínio: a produção cerealífera líquida
anual per capita do triênio acabado em 2012-23 (a qual é
comparável com a do triênio anterior) foi de 169,52 kg.
Significativamente, o declínio na
disponibilidade
líquida per capita de cereais também acompanhou este
declínio da produção, o que demonstra a
afirmação feita anteriormente acerca da
deterioração das condições de vida dos
trabalhadores como um todo. A produção líquida anual per
capita de cereais, a qual é definida como produção
líquida menos exportações líquidas menos
acréscimos líquidos a stocks (embora por razões
práticas só stocks do governo sejam considerados), ascendeu de
152,72 kg no quinquênio 1951-55 para 177 kg no quinquênio
terminado em 1991-92. Para o triênio terminado em 2012-13, este
número desceu para 172,1 kg.
DECLÍNIO DA ABSORÇÃO ALIMENTAR
Este declínio na absorção alimentar que estes números sugerem também é confirmado pelos números da ingestão de calorias per capita. A percentagem da população rural com acesso a menos de 2200 calorias por pessoa por dia (a qual é a referência para definir pobreza rural) aumentou de 58,5 em 1993-94 (o primeiro inquérito NSS do período de "liberalização" para 68 em 2011-12. A percentagem de população urbana com acesso a menos de 2100 calorias por pessoa por dia (a referência para definir pobreza urbana) aumentou de 57 em 1994-94 para 65 em 2011-12. Em termos de fome, a Índia agora classifica-se abaixo da África sub-Saariana e também no que a ONU chama "os países menos desenvolvidos" ("the least developed countries, LDCs"). O facto da fome crescente contradiz afirmações oficiais acerca do declínio da pobreza, mas isto não é surpreendente uma vez que as afirmações oficiais baseiam-se num método espúrio de estimar a pobreza. Este método define uma "linha de pobreza" para o ano base como um nível de referência da despesa (à qual as normas de calorias são cumpridas) e então actualiza-o para anos posteriores utilizando um índice de preços no consumidor a fim de estimar quantas pessoas caem abaixo desta linha. Tais índices de preços no consumidor, contudo, subestimam seriamente a inflação de preços real: eles não levam em conta o aumento no custo de vida devido à privatização de serviços essenciais como educação e cuidados de saúde.
Este declínio na absorção alimentar que estes números sugerem também é confirmado pelos números da ingestão de calorias per capita. A percentagem da população rural com acesso a menos de 2200 calorias por pessoa por dia (a qual é a referência para definir pobreza rural) aumentou de 58,5 em 1993-94 (o primeiro inquérito NSS do período de "liberalização" para 68 em 2011-12. A percentagem de população urbana com acesso a menos de 2100 calorias por pessoa por dia (a referência para definir pobreza urbana) aumentou de 57 em 1994-94 para 65 em 2011-12. Em termos de fome, a Índia agora classifica-se abaixo da África sub-Saariana e também no que a ONU chama "os países menos desenvolvidos" ("the least developed countries, LDCs"). O facto da fome crescente contradiz afirmações oficiais acerca do declínio da pobreza, mas isto não é surpreendente uma vez que as afirmações oficiais baseiam-se num método espúrio de estimar a pobreza. Este método define uma "linha de pobreza" para o ano base como um nível de referência da despesa (à qual as normas de calorias são cumpridas) e então actualiza-o para anos posteriores utilizando um índice de preços no consumidor a fim de estimar quantas pessoas caem abaixo desta linha. Tais índices de preços no consumidor, contudo, subestimam seriamente a inflação de preços real: eles não levam em conta o aumento no custo de vida devido à privatização de serviços essenciais como educação e cuidados de saúde.
A ascensão do PIB per capita numa situação de absoluta
deterioração das condições de vida dos
trabalhadores implica um aumento maciço da fatia do excedente no PIB, a
qual explica o aumento extraordinário em desigualdades de rendimento e
riqueza durante o período da liberalização, como é
evidente por exemplo na ascensão do número de indianos
bilionários. Ela também explica (num período em que a
realização do excedente em ascensão não tem sido um
problema devido ao boom) o enriquecimento visível de um segmento da
classe média. O rendimento deste segmento é ou derivado
diretamente deste excedente, exemplo, da sua despesa com consumo de luxo e de
atividades associadas à sua extração, ou dependente do
seu crescimento (o qual é o reino da finança). Além disso,
a comutação de um conjunto de atividades tais como
serviços relacionados com tecnologia de informação (IT) de
países metropolitanos para a economia indiana, a qual faz parte de um
fenômeno de transferência
("outsourcing")
para o terceiro mundo que caracteriza a era atual da
globalização, também contribui para o seu crescimento.
Entretanto, o crescimento deste segmento da classe média talvez seja
menor em termos da sua
dimensão numérica relativa
do que em termos do seu
rendimento relativo em relação ao trabalhadores.
Os ciclos de expansão
(booms)
sob o capitalismo neoliberal são tipicamente associados à
formação de bolhas de preços de ativos. O prolongado boom
capitalista mundial que foi sustentado primeiro pela "bolha dotcom" e
a seguir pela "bolha habitacional" e que está subjacente ao
boom do período de liberalização na economia indiana,
chegou ao fim, sem novas bolhas à vista no futuro previsível. Os
dias tranquilos do neoliberalismo estão acabados, o que portanto traz
para a agenda histórica uma luta pela sua transcendência. Isto
pode ser uma luta combinada, dos trabalhadores que têm sido suas
vítimas, e de segmentos da classe média que até agora
têm sido seus beneficiários mas atualmente estão à
beira de tempos árduos. Mas precisamente por causa desta possibilidade,
o capitalismo neoliberal também promoverá tendências
fascistas e semi-fascistas a fim de dividir o povo. Reagir a estas
tendências é o meio pelo qual a esquerda e as forças
democráticas podem avançar.
14/Agosto/2016
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0814_pd/logic-neo-liberal-capitalism . Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0814_pd/logic-neo-liberal-capitalism . Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .