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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

PGR defende ser vedado à Justiça censurar manifestação exclusivamente com juízo de valor sobre fato verídico

 Sexta, 16 de outubro de 2020

Manifestação foi em processo que discute limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de igual hierarquia jurídica



Ao Judiciário é vedado determinar a supressão de manifestação que revele discordância valorativa acerca de fato verídico, sob pena de caracterizar censura prévia. Essa é a tese defendida pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, em parecer encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF), nesta sexta-feira (16). A manifestação foi feita em um recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, que vai definir os limites da liberdade de expressão em contraposição a outros direitos de igual hierarquia jurídica, como os da inviolabilidade da honra e da imagem.

Na ação, a Suprema Corte também vai estabelecer parâmetros para identificar hipóteses em que publicações devam ser proibidas ou o declarante condenado ao pagamento de multa por danos morais. Para o PGR, a liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal e pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, sendo a base para o funcionamento efetivo de uma democracia representativa. Portanto, qualquer restrição a essa liberdade só deve ser feita de forma excepcional, quando estritamente necessária para o amparo dos demais direitos de mesma estatura jurídica, como a personalidade, a igualdade, a saúde, o devido processo legal, entre outros. 
"Conquanto não exista direito absoluto, o Poder Público, ao pretender intervir no exercício do direito à liberdade de expressão, há que justificar a necessidade da intervenção, observando a reserva de lei – explícita ou implícita e sempre autorizada pela Constituição – além da proporcionalidade, de forma a preservar a integridade do núcleo essencial da garantia”, afirma Augusto Aras no parecer. Segundo ele, a própria Constituição estabelece restrições expressas à liberdade de expressão, como a possibilidade de indenização por dano moral ou à imagem, além da inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.

Como proposta de tese a ser definida pelo STF sobre a matéria, o PGR defende que a proteção constitucional à liberdade de expressão deve abranger todas as manifestações com emissão de juízo de valor acerca de temas controversos, desde que estejam baseadas em fatos verídicos. Além disso, qualquer cerceamento a esse direito precisa estar previamente estabelecido em lei, seguir critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade, assim como visar uma finalidade legítima. Também deve ser demonstrado na decisão restritiva que a medida é estritamente necessária para se alcançar a finalidade que justificou sua adoção excepcional. "A supressão pelo Judiciário de manifestação que retrata tão somente controvérsia valorativa sobre fato inconteste configura censura prévia e é inconstitucional e inconvencional”, sustenta Augusto Aras no parecer. Caso a tese seja aprovada pelo STF, ela deverá ser seguida por todos os demais tribunais do país.

Caso concreto – O debate acerca dos limites da liberdade de expressão é travado em recurso ajuizado pela organização não-governamental Projeto Esperança Animal (PEA), voltada à proteção da fauna. No recurso, a entidade questiona decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que restringiu a publicação de conteúdos em sua página na internet, com denúncias de maus tratos a animais em rodeios. Na ação, a PEA foi condenada a pagar indenização por danos morais à associação Os Independentes, responsável pela realização da Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos (SP), além de ficar proibida de contactar patrocinadores do evento.

Para o PGR, o recurso da PEA deve ser acolhido, pois a campanha alvo de questionamento na Justiça paulista envolve questão socialmente controvertida – no caso, os limites do que seria considerado crueldade animal – sobre a qual existe elevado grau de discordância social. "Na hipótese em exame, é fato que animais tomam parte no rodeio, e que há o emprego do sedém [tira feita de lã ou de rabo de cavalo que, atada à virilha do animal, estimula os pulos]. Já o juízo se o sedém implica ou não crueldade animal está fora do crivo do Poder Judiciário. Tal crivo faz parte do livre mercado de ideias e há de compor o debate público”, argumenta Augusto Aras.

Para ele, em temas como esse, socialmente controvertidos, não cabe ao Judiciário tomar posição antecipada, da mesma forma que descabe falar em dano moral. "É imprescindível que o indivíduo, na condição de 'ouvinte', tenha acesso aos mais variados pontos de vista e concepções de outros indivíduos e grupos, a fim de que possa se desenvolver com o maior leque possível de conteúdo e informação”, conclui.

Íntegra da manifestação no RE 662055

Fonte: MPF