Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 27 de junho de 2021

Pensar a profissão nas guerras diárias

 Domingo, 27 de junho de 2021

Este artigo foi publicado no Observatório da Imprensa do dia 30 de janeiro de 2006

Do Observatório da Imprensa


São mais de três décadas nessa vida de se encontrar, diariamente, com o fato, por ser jornalista. Comecei em redações de jornais e revistas, e enveredei pelas assessorias de imprensa de órgãos onde se concentram notícias do dia-a-dia. Em cada um deles, esteja de que lado estiver, me informando ou passando informação, sinto-me sempre personagem do imprevisível.

Não há um dia de jornalista em que tudo esteja certinho, planejado e possa ser cumprido como uma agenda perfeita. Basta refletir sobre ontem, um dia comum de trabalho, uma sexta-feira em que, mais uma vez, fui ao campo de batalha, e não me feri fisicamente (sorte minha), mas minha emoção, repetidamente, se arranhou de brasilidade frustrada.

Miséria que salta

Mala pronta para passar o fim de semana em Búzios, na casa de amigos, saí na sexta em busca do pretenso dia calmo. Pretendia passar na repartição, atualizar trabalho rotineiro, sair mais cedo e ganhar a estrada rumo à paz e ao mar azul. Trabalho na assessoria de imprensa da empresa que cuida de rios e lagoas no Rio de Janeiro.

Enquanto vou, vestida de um branco impecável, meu chefe liga e me chama: ‘Vem pra cá, na favela de Vigário Geral, já estamos começando a dragagem com a polícia pra ver se achamos os corpos dos rapazes’. Oito jovens estão desaparecidos na comunidade desde dezembro, na guerra do tráfico.

Mudo o trajeto do táxi, vou encontrar com o motorista do trabalho na Avenida Brasil. Troco de carro, vamos à luta. Maleta guardada, minha nossa, estou de sandália, e chego ao matagal, por onde tenho que adentrar, via terreno da Marinha, em Parada de Lucas. Ali, troco de novo de carro, uma caminhonete capaz de vencer o terreno impróprio, rota de fuga de bandidos, um campo imenso do outro lado da margem do rio, bem em frente à violenta e paupérrima aglomeração de casinholas de tijolos aparentes, onde vou assistindo à miséria que salta, nos espiando.

Chiqueiro de porcos

Há um pedaço maior a vencer em que o carro não passa. Sigo a pé, cuidado com as cobras e os formigueiros, vou adensando o passo, amassando capins, folhas, me esquivando dos galhos altos, que me batem no rosto, vou ficando suja, o branco da roupa coalhado de pontos pretos, os pés desprotegidos se safando dos percalços, e encontro o chefe, os policiais, os militares da união, a draga, muitas armas pesadas (há o perigo de sermos alvo repentino de uma rajada vinda do outro lado do rio, porque a guerra do tráfico ali é uma das mais violentas do Rio de Janeiro, atualmente).

Sou a única mulher naquele momento, do lado de cá. Os repórteres que vieram estiveram ali cedo, antes de a draga chegar, e se foram para as redações, com imagens e palavras a serem reproduzidos, ainda começo de operação.

Embrenho-me, ouço e respondo a um bando de meninos do outro lado, não há um só com camisa, todos descamisados e descalços, gritando sobre as mortes, que devem ser parte do seu dia-a-dia, aceno sem saber por que, internamente, sentindo-me tão impotente diante do seu futuro. Meu chefe comenta: ‘Tanto menino se oportunidade, o que vai ser dessa gente?’

O sol está forte, a tarde avança, o trabalho da draga é insano. O lodo é fedorento, o chiqueiro de porcos do outro lado, dizem, é reduto de carne humana esfacelada, comida dos suínos, lenda ou realidade falada por todos, como se fosse uma coisa normal. Ponto de desova, sujeira encruada, miséria humana a olhos vistos, uma população concentrada, duas comunidades em guerra constante, se odiando em função de apoio de facções criminosas conflitantes.

O vôo e o crime

De repente, tiros. Os policiais correm, se posicionam, há um jipe da Marinha com dois soldados (o único veículo que chegou até a beira onde a draga se posicionou), me mandam entrar no jipe e me proteger. Tudo se acalma, foi só um susto, pego carona no jipe. Os galhos entram pela janela-porta, sem vidro, e me roçam, eu me esquivo, brinco com os rapazes, soldados da Marinha, que parece que estamos no Vietnã dos anos 70, eles são tão jovens, sorriem, mas sei que não entendem muito bem minha alusão.

Não satisfeita, falo em guerra civil do Líbano, olhando a comunidade do outro lado, sua sede de vingança local, problemas tão distanciados da vida legal do país, imagina, nem sabem direito como são as leis que os protegem, quem os protege são os chefes das quadrilhas, seus ídolos, seus comandantes de guetos girando dinheiro e sobrevivência em torno do comércio das drogas. Uma repórter de rádio me liga para saber das novidades, brinco com ela que estou literalmente num mato sem cachorros.

Por sobre as nossas cabeças, aeronaves imensas, na rota comum, se preparam a todo instante para o pouso no Tom Jobim, aquele mesmo que cantou as belezas do Rio. Sei que todos os dias essa gente deve olhar para cima, provavelmente imaginando como será lá dentro de um avião bonito daqueles, tão perto das suas vidas, poucos metros acima, e tão distante da sua realidade, em que cada vôo para o amanhã pode representar a fuga da polícia, o envolvimento com o crime.

Brasil desconexo

Saio do front, vou telefonar e passar informações. Até agora, nada de corpos, os trabalhos vão ser interrompidos, ameaça de chuva forte no Rio, no cair da tarde. Estou cansada, suja, ou melhor, imunda, tenho sede e fome, ali não há nada nem para comer ou beber. O chefe volta, encontramos o motorista, vamos escapar do lugar, mas o caminho não é o de casa ou a cidade da Região dos Lagos que sonhei. Vamos para a Barra da Tijuca, temos problemas com a ecobarreira das gigogas – outra guerra que passamos a enfrentar, tal a quantidade de esgoto e lixo na lagoa, e o risco diário de que elas invadam as praias no verão carioca.

A chuva chega. Atravessamos a cidade, no caos, começa a reunião com os engenheiros e técnicos no posto de recolhimento das gigogas. Lá pelas sete da noite, uma alma caridosa providencia sanduíches e guaraná.

Também nesse grupo sou a única representante do sexo que chamam de frágil. Ligo a televisão portátil no carro, no meio do toró, no estacionamento local. Preciso ver as notícias. A noite caiu. Meu estado de abandono físico reflete o compromisso com a informação. Ainda atendo aos retardatários que me perguntam dos fatos, adianto os do dia seguinte. As providências que serão tomadas. Falo da agenda do chefe, a do sábado. Sábado? Minha amiga liga de Búzios: ‘Você tá chegando?’ Só consigo ultrapassar a porta do apartamento lá pelas 10 e meia da noite, depois de vencer, com o motorista, um engarrafamento-monstro, efeito do temporal.

Hora de tomar banho e fazer um lanche. Hora de refletir sobre a escolha profissional. Mas esta eu já fiz, há mais de 30 anos. Num dia em que li a reportagem-depoimento da italiana Oriana Falacci sobre a revolução no México que ela estava cobrindo e onde se acidentou. Previ que também testemunharia muitas guerras no dia-a-dia de um Brasil tão desconexo entre sonho e realidade. Minha sexta-feira foi apenas mais uma dessas batalhas. Agora, já virou notícia velha. Preciso sair em campo e colher novas informações.

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*Jornalista, assessora de comunicação social da Superintendência Estadual de Rios e Lagoas do Estado do Rio (Serla)


O artigo acima foi publicado no Observatório da Imprensa do dia 30 de janeiro de 2006

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*Cida Torneros é jornalista aposentada e edita no Rio de Janeiro o Blog Vou de Bolinhas.