Sexta, 5 de setembro de 2025
ANISTIAR CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO É CONSTITUCIONAL?
Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 5 de setembro de 2025
Anistiar crimes contra o Estado Democrático de Direito é constitucional? Esse é um dos mais instigantes questionamentos no plano jurídico-constitucional, especialmente em tempos de golpismo despudorado.
Os crimes contra o Estado Democrático de Direito foram introduzidos no Código Penal por intermédio da Lei n. 14.197, de 1º de setembro de 2021. O referido diploma legal veicula quatro grupos de crimes dessa natureza. São eles: a) contra a soberania nacional; b) contra as instituições democráticas; c) contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral e d) contra o funcionamento dos serviços essenciais. As principais definições (tipificações, no uso corrente e equivocado) são: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (art. 359-L) e “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” (art. 359-M).
No Direito Penal brasileiro, a anistia é uma das hipóteses de extinção da punibilidade em relação a um fato criminoso (art. 107, inciso II, do Código Penal). A anistia funciona como um "perdão" legal de infrações penais. Diferentemente da graça e do indulto, dirigidos a pessoas, a anistia incide sobre o crime em si e apaga suas consequências penais com efeito retroativo. É como se o crime nunca tivesse ocorrido. Nesse sentido, o art. 742 do Código de Processo Penal estabelece: “Concedida a anistia após transitar em julgado a sentença condenatória, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado, do Ministério Público ou por iniciativa do Conselho Penitenciário, declarará extinta a pena”.
A Constituição de 1988 afirma que compete à União “conceder anistia” (art. 21, inciso XVII) e que cabe ao Congresso Nacional, com sanção do Presidente da República, dispor sobre “concessão de anistia” (art. 48, inciso VIII). Aparentemente, em função de uma leitura apressada, seria viável sustentar que a anistia pode ser concedida de forma ampla e irrestrita, aplicando-se a todo e qualquer crime.
Entretanto, o intérprete/aplicador da Constituição precisa adotar uma série de cuidados. Um deles é não se fixar em partes ou pontos isolados do texto e ignorar o “conjunto da obra”. É preciso enxergar a floresta para além de cada árvore individualmente considerada. Nessa linha, o Ministro Eros Grau alertava com invulgar acerto: “… não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços, mas sim na sua totalidade. Uma porção dela não prevalece sobre outra quando a interpretamos. A lógica da Constituição é incindível”.
Com efeito, a Constituição interdita expressamente a concessão de anistia para “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos” (art. 5o, inciso XLIII).
A questão mais “delicada” é saber se existem vedações constitucionais implícitas à concessão de anistias. Em outras palavras, existem anistias interditadas pela “lógica da Constituição” que não foram expressamente anunciadas pelo constituinte?
O primeiro passo no caminho para a resposta a essa última indagação reside em fazer a distinção crucial entre textos normativos (ou enunciados normativos) e as normas jurídicas. São realidades distintas, embora profunda e complexamente relacionadas.
Afinal, os inúmeros diplomas legais que compõem a ordem jurídica, inclusive a Constituição, veiculam diretamente textos ou enunciados normativos. A obra imediata do legislador consiste em um conjunto extremamente amplo e complexo de textos legais. A norma jurídica abstrata, notadamente em sua estrutura lógica específica (a relação entre antecedente e consequente), é o resultado da interpretação dos textos ou enunciados normativos. Assim, podem emergir normas jurídicas implícitas veiculadoras de proibições ou obrigações não diretamente lidas pelo intérprete do texto legal.
O mestre Marcos Bernardes de Mello, com seu brilho peculiar, ensina que “… essa atividade reveladora de normas jurídicas [implícitas] … não é, nem pode ser considerada, … uma atuação legislativa. O que ocorre, na verdade, é que o intérprete (geralmente o juiz) na solução dos casos, tomando como fundamento os princípios que norteiam o sistema jurídico, extrai norma que torna específico aquele princípio. Assim, não há criação de norma nova, mas apenas revelação de norma que existe de modo não expresso, implícito, no sistema jurídico”.
Para os crimes contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, o Texto Maior define a imprescritibilidade (art. 5º, inciso XLIV). A razão para essa previsão é a excepcional gravidade desses delitos, que atingem a espinha dorsal do convívio social. A imprescritibilidade, portanto, é a garantia de que, pela sua natureza, esses crimes jamais ficarão impunes, independentemente do tempo transcorrido. Assim, admitir a anistia para esses crimes seria um contrassenso jurídico e moral. A anistia, ao extinguir a punibilidade, perdoa o ato e seu autor, anulando o que a própria Constituição declarou ser imperdoável. A anistia para um crime imprescritível equivaleria a uma revogação, por vias transversas, de um comando constitucional. Em suma, se a Constituição não permite que o tempo apague a memória desses crimes, não faz sentido que um ato legal de perdão possa simplesmente eliminá-los do mundo jurídico.
O Estado Democrático de Direito ocupa posição central na ordem jurídica brasileira. A Constituição, em seu art. 1º, qualifica a República Federativa do Brasil exatamente como Estado Democrático de Direito. Esse é o núcleo essencial da institucionalidade brasileira. Portanto, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (fins do Estado inscritos no art. 3º da Constituição) tem a ordem democrática como único meio ou caminho aceitável a ser percorrido. Anistiar as ofensas mais graves ao Estado Democrático de Direito, especialmente as que buscam sua abolição, significa uma afronta inaceitável a esse postulado constitucional fundamental.
Crimes que afetam bens jurídicos importantes, mas menos relevantes que a própria ordem democrática, são insuscetíveis de anistia. A ordem democrática, como bem jurídico protegido, possui raio de ação que abarca toda a sociedade e é a base para o exercício dos direitos fundamentais mais caros para o convívio civilizado. Não faz o menor sentido ser juridicamente possível anistiar crimes contra o Estado Democrático de Direito e ser inviável anistiar crimes contra bens jurídicos inequivocamente de importância comparativa menor.
Ademais, admitir a anistia para aqueles que atentaram contra a ordem democrática e já foram condenados seria um convite imoral ao golpismo, na forma de novas tentativas de ruptura institucional. A mensagem, completamente incompatível com a Constituição, é que, em algum momento no futuro, o golpe terminará vingando diante de tanta permeabilidade (ou fragilidade) institucional. Não custa lembrar que a anistia é um instrumento historicamente utilizado para pacificar a sociedade após período de grave conflito político. Ela não se apresenta como um salvo-conduto para criação das condições para o rompimento da ordem democrática na próxima esquina da história.
Assim, não tenho dúvida em afirmar, a partir da lógica da Constituição e do postulado fundamental do Estado Democrático de Direito, que é nitidamente inconstitucional anistiar os crimes que atentam contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. A Constituição, em sua essência, foi elaborada para nos proteger de atos de arbítrio. Permitir que crimes contra a democracia sejam perdoados viola inequivocamente a natureza mais visceral do nosso projeto constitucional de liberdade e fraternidade.