Quinta, 3 de setembro de 2020
Para padre coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, a solução para quem mora na rua não pode ser camping quando “a cidade tem mais casa sem gente do que gente sem casa”
Da Ponte
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Um dos maiores aliados da população em situação de rua em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti, 71 anos, falou à Agência Pública sobre as recentes mortes de pessoas em situação de rua durante a onda de frio na cidade no mês passado. A prefeitura confirma dois óbitos, Júlio cita cinco.
Indagado sobre a crueldade que é morrer de frio, o que remeteria a uma ideia de morte medieval, ele discorda: “Não acho que é uma morte medieval, é uma morte de agora, do século 21, pois é agora que essas pessoas estão morrendo de frio”.
Sem melindres, o padre que atua junto aos mais vulneráveis há 35 anos afirma que o poder público não é só negligente, mas incompetente quando se trata do povo de rua. “Achar que a solução para a cidade hoje é camping para morador de rua? Isso quando 80% da rede hoteleira está ociosa, quando São Paulo tem mais casa sem gente do que gente sem casa?”, questiona.
Segundo ele, durante a pandemia mais de 8 mil pessoas passaram pela primeira vez pelo núcleo de atendimento em sua pequena paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, na zona leste de São Paulo, onde são distribuídos alimentos, roupas, entre outras ações de solidariedade. “De 4 mil em um mês, foi para 8 mil”, diz. “Ouço todos os dias ‘cheguei de tal lugar’, ‘cheguei de tal estado’”.
Há mais de 35 anos, o padre Júlio Lancellotti, dedica-se a apoiar os mais vulneráveis
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Você acha que teve uma negligência maior do poder público em relação ao frio que levou às mortes da população de rua que tivemos no mês passado?
Acredito que não é só uma questão de negligência, é uma questão de incompetência. Eles até querem fazer, é evidente que a cidade está cheia, todo mundo vê. Agora, o que me espanta mais é que a solução que vereadores como a Soninha [Francine] estão dando é fazer camping. Achar que a solução para a cidade hoje é camping? Isso quando 80% da rede hoteleira está ociosa, quando São Paulo tem mais casa sem gente do que gente sem casa?
Nós tivemos cerca de cinco pessoas que morreram de frio na última semana. Vocês tiveram alguma atualização?
Nós localizamos cinco, e a prefeitura fala em duas.
Por que tem essa divergência?
Pode ser o período que eles computaram. Eu não sei o porquê dessa divergência.
Houve um aumento da população de rua, que já vinha acontecendo nos últimos anos com a crise econômica. O senhor notou um aumento causado pela própria pandemia?
A gente está percebendo um aumento rotativo, com uma circulação muito grande de gente. Assim como tem gente chegando, tem gente saindo. Por exemplo, só do núcleo de atendimento na Mooca, que é de convivência, passaram pela primeira vez cerca de 8 mil pessoas em um mês. De 4 mil em um mês, foi para 8 mil. Então, imagine 8 mil pessoas que pela primeira vez estão passando ali…
Ouço todos os dias “cheguei de tal lugar”, “cheguei de tal estado”.
A paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, atendeu cerca de 8 mil pessoas no mês passado
São pessoas que pela primeira vez estão chegando nessa situação de ter que morar na rua?
Não temos esse levantamento. Se está chegando da rua agora nós não sabemos, mas eles estão circulando pela cidade e aqui ficam em situação de rua ou vão procurar lugares do centro de acolhida.
Entre as pessoas que chegam há o discurso de desemprego recente?
É claro, eles estão procurando trabalho, estão à procura da sobrevivência.