Sexta, 18 de outubro de 2024
É preciso denunciar a cooptação da Defesa nacional
“O mundo caminha para a guerra generalizada e o Brasil não será poupado. Os generais não podem contraditar a política externa brasileira”. (Manuel Domingos Neto, autor de O que fazer com o militar: anotações para uma nova defesa nacional. Gabinete de Leitura, 2023)
Os anseios por uma política externa própria, então simplesmente voltada a proteger da preeminência europeia (França e destacadamente o império britânico) o país ainda em formação, remontam ao Segundo Império, e o ponto de referência é D. Pedro defendendo, nos idos de 1862, a “necessidade de uma política própria”.
Mas, já nos pródromos da independência, o espírito de autodeterminação aparece em correspondência de José Bonifácio, isso em julho de 1822. Dirigindo-se ao cônsul estadunidense, o Patriarca diria: “(...) o Brasil é uma Nação e como tal ocupará seu posto sem ter que esperar ou solicitar o reconhecimento das demais Potências. A elas se enviarão agentes diplomáticos ou Ministros. As que nos recebam nessa base e nos tratem de Nação a Nação continuarão sendo admitidas nos nossos portos e favorecidas em seu comércio. As que se neguem serão excluídas dele”.
O caráter geral da política nos dois impérios será a autodefesa. O primeiro, quando ainda ardiam as chagas abertas pela prepotência inglesa, procurava escapar ao cerco das potências coloniais europeias e, ao mesmo tempo, preservar a integridade territorial (a grande obra da Regência), a unidade política e, por óbvio, a Monarquia. No segundo, preservar a unidade política. Demoraria, pois, a aliança com os EUA republicanos, que Joaquim Nabuco (A intervenção estrangeira durante a revolta de 1893, editado em 1896) reclamava e Rio Branco levará a cabo em sua longa carreira de dez anos como chanceler. O futuro embaixador em Washington (1905-1910) enxergava os EUA como modelo a ser seguido e defendia uma política de alinhamento estratégico (a partir da Guerra Fria, veremos, os militares passaram a entender “alinhamento estratégico” como sinônimo de “alinhamento automático”). Reinava naqueles anos a Doutrina Monroe, e, na sequência das preocupações do século anterior, procurava-se, mais uma vez, fugir da coerção europeia. Desta feita, o escudo seriam os EUA, como antes, no processo da independência, havia sido o império britânico, com os custos conhecidos.
A partir daí conta-se a crescente influência do Grande Irmão do Norte, relegando a segundo plano, primeiramente, os resquícios da influência francesa, para, enfim, substituir o império inglês como força dominante, política e econômica. As relações estreitas entre economias e forças armadas assimétricas, todavia, implicariam a dependência política do lado mais fraco.
É da regra.
Essa é a primeira fase da república agrária, que se instalara sob o consórcio de paulistas e mineiros. Não podia haver contradições entre as duas economias, já então tão díspares, e dependíamos das importações norte-americanas de café, responsáveis por cerca de 70% da balança comercial brasileira. Alguma contradição surgiria no pós-1930, mais acentuadamente no Estado Novo, quando o Brasil inicia seu retardado processo de modernização, no esforço por amenizar as penas de uma inserção atrasada no capitalismo, e então cogita de projetos de infraestrutura e industrialização.
Surgem então no cenário comercial internacional novos atores, econômicos e militares, como Alemanha e Itália. É desse tempo a contundência da II Guerra Mundial e a presença brasileira no conflito, mediada pelas negociações de Getúlio Vargas com Franklin Roosevelt, de que resultou o financiamento de Volta Redonda, e, com a siderurgia, as possibilidades – enfim! – de alguma industrialização. O quadro muda com a queda do regime do Estado Novo, em 1945, inevitável após a politização de nossas tropas, formadas, profissional e ideologicamente, pelos valores e interesses estratégicos dos EUA.
A Força Expedicionária Brasileira é treinada, equipada e transportada pelos EUA, que ainda lhe forneceram armamentos, uniformes e veículos, embalagens das táticas e doutrinas militares. Em 1946, em plena Guerra Fria (cujos princípios e objetivos norteariam a política ocidental até a debacle da URSS, que se prorroga hoje por outros meios), e para atender às estratégias da grande potência, é fundada a Escola das Américas, dedicada à formação de oficiais latino-americanos.
Data desse entrecho a Doutrina de Segurança Nacional, formulada pelo Pentágono, mediante a qual as forças armadas do continente, nelas as do Estado brasileiro, se despem das missões de segurança nacional para se dedicarem à repressão interna. Em 1947 o Brasil adere ao Tratado de Assistência Recíproca (TAR), pacto de defesa mútua do continente a que se deve o virtual controle dos EUA sobre as forças armadas dos países aderentes. Talvez possamos dizer que o fecho dessa política de verdadeiro garrote político-estratégico chega em 1949, com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), inspirada no National War College, com o declarado objetivo de formar civis e militares em temas de defesa. Seu principal instrutor foi o general Walter Bedell Smith, diretor da CIA. O primeiro comandante foi o general Cordeiro de Farias, sucedido pelo general Odylio Denys.
A política externa independente, que vinha dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart, formulada por Afonso Arinos e San Tiago Dantas, é jogada na lata do lixo pelo regime militar, e transita da “interdependência”, proclamada pelo primeiro ditador, marechal Castello Branco (discurso no Itamaraty), para a subserviência mais abjeta a que se presta o embaixador enviado a Washington (julho de 1964), o general Juraci Magalhães, a quem a história deve esta pérola de desfaçatez: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” (v. jornais da época e Nelson Werneck Sodré). O general-embaixador permaneceria no cargo até 1965, quando, quando, em reconhecimento dos bons serviços prestados, é chamado de volta ao país e nomeado ministro da Relações Exteriores, cargo que exerce até 1966.
História e biografias conhecidas que ajudam a desenhar o pano de fundo dos dias presentes.
Como lecionava o Conselheiro Acácio, as consequências viriam depois, e entre elas se contam a resistência larvar à autonomia nacional. Daí o combate (elemento unificador da direita) a qualquer projeto de política externa independente, vista como puro antiamericanismo, ou urdidura de um comunismo que só se preserva na mente de espertalhões e golpistas. Essa falsa compreensão da realidade foi um dos estratagemas da direita para unir a cúpula da caserna no golpe contra o presidente João Goulart. Por aí também se explica o golpe de 2016 e o apoio de militares de alto coturno à aventura protofascista liderada pelo capitão Bolsonaro, como também a intentona de janeiro de 2023. E explica os dias de hoje, quando José Múcio Monteiro Filho pode ser ministro da defesa contestando a política externa do presidente Lula – que se orgulha, com todo o direito, de haver retomado, desde seu primeiro governo, a tradição progressista de políticas externas independentes, revigorada agora, neste terceiro mandato.
O ainda ministro faz-se porta-voz do atraso secular que nos governa, a aliança de uma burguesia financeira vinculada ao capital internacional, de um lado, de outro a dependência ideológica das cúpulas militares, que pensam o país a partir da visão que lhes transmite o mainstream, que fala a partir de Washington. O que se pode chamar de cisma viceja na ausência do debate político, a que se nega o governo de origem popular, talvez pela dificuldade de apresentar, com cabeça, tronco e membros, seu projeto político. Afinal, que país estamos empenhados em construir? O mínimo de discussão se encerra nos temas ditados pelo grande capital.