Terça, 23 de julho de 2024
Investigação do BdF mostra que gigante do setor desafiou legislação e sustentabilidade - e ainda ganhou subsídio federal
Murilo Pajolla
Brasil de Fato | Londrina (PR) | 23 de julho de 2024
Com lucro líquido de R$ 4,7 bilhões, SCOR é uma das maiores do mercado de resseguros - Divulgação/SCOR
A seguradora brasileira Essor, do grupo francês Scor, um gigante mundial do mercado de resseguros, vendeu seguros agrícolas para o plantio irregular de soja no interior da Terra Indígena (TI) Monte Caseros, localizada nos municípios de Ibiraiaras e Muliterno (RS), a cerca de 250 quilômetros de Porto Alegre.
A venda foi subsidiada pelo Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), iniciativa por meio da qual o governo federal subsidia, com dinheiro público, uma parcela da aquisição do seguro. Os recursos do PSR são oriundos do Plano Safra.
Os seguros foram contratados entre 2020 e 2021 por dois homens que se declaram agricultores no Rio Grande do Sul, Pedemar Cirino Rodrigues e Sandro Vazzoler. A área segurada pela Essor dentro da TI Monte Caseros totaliza 110,7 hectares.
No início de 2022, a Essor rompeu o contrato com a dupla de forma unilateral, alegando que se tratava de terra indígena, um bem público da União. Nessa época, secas intensas no Sul do Brasil dobraram o volume de indenizações pagas aos fazendeiros, ameaçando a saúde financeira das companhias do segmento.
Ao tomar conhecimento do caso em setembro de 2023, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) acionou o Ibama e a Polícia Federal (PF) com um pedido de investigação por suspeita de usurpação do patrimônio público e arrendamento de terra indígena.
O chamado arrendamento ocorre quando um proprietário cede os direitos de uso de sua propriedade a outra pessoa ou empresa. Mas, no Brasil, as terras indígenas são bens públicos pertencentes à União e de usufruto exclusivo das populações originárias, logo não podem ser usadas em benefício de não indígenas.
Com essas considerações, um relatório técnico interno da Funai de 2023 afirma que o arrendamento segurado pela Essor tem indícios de ilegalidade. O Estatuto do Índio e a Constituição proíbem a prática de arrendar terras indígenas.
Os 4,5 mil hectares da TI Monte Caseros, portanto, só poderiam ser aproveitados economicamente pelos indígenas Kaingang que moram na área.
A Scor, empresa dona da Essor, diz que tem como pilares a sustentabilidade, o combate ao aquecimento global e a preservação da biodiversidade.
Ao segurar lavouras de commodities agrícolas em uma terra indígena, porém, a empresa ajuda a consolidar o desmatamento do pouco de Mata Atlântica que resta na TI Monte Caseros e no Rio Grande do Sul.
As conclusões desta reportagem são baseadas em documentos obtidos com exclusividade pelo Brasil de Fato: a petição inicial de uma ação judicial dos agricultores contra a Essor, além de ofícios enviados pela Funai à PF, ao Ibama e à Justiça de primeira instância, nos quais o órgão indigenista relata o caso.
Procurada, a defesa dos agricultores negou o arrendamento e chamou a prática de "parceria". A alegação completa está no final do texto.
Por meio da assessoria de imprensa, a Essor afirmou, em nota, que "desde junho de 2021, possui um processo e ferramenta para identificação de terras indígenas e sob proteção ambiental, com base nos quais tem identificado tais situações e recusado as respectivas propostas de seguro, incluindo aquelas relacionadas à Terra Indígena Monte Caseros". E reforçou que a empresa "possui uma política de sustentabilidade disponível em seu site, estando em constante aprimoramento das práticas ESG em suas operações".
Consultadas, Funai e Superintendência de Seguros Privados (Susep) não se posicionaram até o fechamento desta reportagem.
Terra Indígena Monte Caseros, onde houve arrendamento, quase não tem cobertura vegetal nativa / Reprodução/Google Earth
Essor rescindiu contrato de arrendamento em terra indígena
Os próprios agricultores, Sandro Vazzoler e Pedemar Cirino, se identificaram à Justiça e admitiram o plantio irregular de soja em terra indígena. A confissão ocorreu em fevereiro de 2022, quando a dupla processou a Essor e pediu para ser indenizada em R$ 465 mil por danos morais e materiais.
Na ação, os supostos arrendatários da TI Monte Caseros reclamam que a seguradora rescindiu o contrato de forma unilateral no final de 2021, devolvendo todo o dinheiro pago até então pelos clientes, mas os deixando sem qualquer cobertura contra o prejuízo provocado pela estiagem que atingiu o Rio Grande do Sul em 2021.
Segundo Vazzoler e Cirino, o motivo apresentado pela Essor para rescindir o contrato sem aviso prévio foi de que as lavouras particulares estavam dentro da TI Monte Caseros. A justificativa da empresa é contestada pelos agricultores, que dizem ter informado à seguradora sobre a localização do plantio no momento da contratação.
"(...) Antes de contratar tanto o seguro objeto dos autos, quanto os demais que foram perfectibilizados, sempre foi enviado de forma prévia para a seguradora as coordenadas geográficas das lavouras, ou seja, sempre soube onde seria a lavora [sic] plantada e segurada", escreveu na petição inicial o advogado Fernando dos Santos.
Com a intenção de comprovar que a seguradora tinha conhecimento prévio, os agricultores apresentaram à Justiça duas apólices de seguros contratadas anteriormente por Vazzoller, para lavouras de trigo e milho. Os documentos, acessados pelo Brasil de Fato, trazem coordenadas geográficas e imagens de satélite que colocam as áreas seguradas dentro da TI Monte Caseros.
"A parte autora [Vazzoler e Pedemar Cirino] já havia firmado outros contratos de seguro agrícola, das mesmas áreas de terras, com a seguradora ré. Não devendo prosperar a alegação apresentada pela mesma para rescindir os contratos em comento. Pois, a mesma no ato da formalização dos referidos contratos tinha pleno conhecimento de que aquela área segurada tratava-se de Área Indígena, inclusive juntou aos contratos os mapas das referidas áreas segurada", prossegue o pedido do advogado Fernando dos Santos.
Funai alertou para agrotóxicos e sugeriu apreensão dos grãos