Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Brasil: vitória pírrica e depois

Terça, 29 de outubro de 2014

Por Atilio Borón*
Aécio_Dilma
Difícil e angustiada vitória de Dilma no segundo turno de ontem, a mais estreita jamais havida na história brasileira, segundo consignam vários periódicos em suas manchetes. No segundo turno de 2006, Lula derrotou o candidato do PSDB Geraldo Alckmin por mais de vinte pontos: 61 a 39 por cento. Em 2010 Dilma venceu na segunda volta o também tucano José Serra por uns doze pontos: 56 versus 44 por cento. Ontem, derrotou Aécio por apenas três pontos: 51,6 a 48,4 por cento. Aflitiva e incerta não tanto pela escassa diferença com que derrotou seu rival como pelas agoniadas três semanas de campanha nas quais, por momentos, o PT aparecia condenado a empreender um humilhante regresso à planície após doze anos de governo. E se isto esteve a ponto de ocorrer foi mais por causa de erros próprios do que pelos méritos de seu muito conservador oponente.
 
Como sinalizamos em numerosas oportunidades, os povos preferem o original à cópia. E se o PT fez sua – em suas grandes linhas, ainda que não em sua totalidade – a agenda neoliberal da direita brasileira, ninguém pode se surpreender que, em uma conjuntura tão complicada como a atual, um significativo setor da cidadania manifestasse sua predisposição a votar em Aécio. É certo que houve algumas heterodoxias na aplicação daquela receita, a mais importante das quais foi a criação do programa Bolsa Família. Mas, no que toca às orientações econômicas fundamentais, a continuidade da tirania do capital financeiro e seu reverso, a fenomenal dívida pública do governo federal, unida ao raquitismo do investimento social (aproximadamente uma décima parte do que paga por conceito de juros da dívida pública aos banqueiros!), a deliberada despolitização e desmobilização popular que marcaram a gestão do PT desde seus inícios, mais o atraso no combate à desigualdade e em atender a problemas como o transporte público – entre tantos outros – que afetam o bem-estar das classes e camadas populares (em especial a seus grupos mais vulneráveis como os afro-brasileiros, os marginais da cidade e do campo, a juventude) terminaram por empurrar o PT para a beira de uma catastrófica derrota. Contrariamente ao que sustentam alguns de seus publicistas, o “pós-neoliberalismo” ainda não assomou no Planalto.
 
 alívio oferecido pelo veredito das urnas no dia de ontem será de pouca duração. À Dilma, esperam-na quatro anos duríssimos, e outro tanto se pode dizer de Lula, seu único possível sucessor (ao menos até o dia de hoje). Uma das lições mais ilustrativas é a ratificação da verdade contida nos ensinamentos de Maquiavel quando dizia que, por mais que se façam concessões aos ricos e poderosos, jamais deixarão de pensar que o governante é um intruso que ilegitimamente se imiscui em seus negócios e no desfrute de seus bens. São, dizia o florentino, insaciáveis, eternamente inconformados e sempre propensos à conspiração e à sedição. A tremenda ofensiva desestabilizadora lançada nas últimas três semanas pelos capitalistas brasileiros a partir da Bolsa de Valores de São Paulo, pelo capital financeiro internacional (recordar as mais que notas de arenga do The Economist, e do Wall Street Journal, entre outros) e a potente artilharia mediática da direita brasileira (rede Globo, Folha, O Estado de São Paulo e revista Veja, principalmente) é aliciadora, e demonstra os equívocos em que cai um governo que pensa que cedendo terreno a suas demandas logrará, ao fim, contar, se não com a lealdade, ao menos com a tolerância dos poderosos. Dilma corre o risco de ser asfixiada por rivais cuja extrema belicosidade se fez patente na campanha eleitoral e que não parecem muito dispostos a esperar outros quatro anos para chegar ao governo. Por isso, a hipótese de um “golpe institucional”, se bem que muito pouco provável, não deveria ser descartada aprioristicamente, do mesmo modo que o desencadeamento de uma feroz ofensiva desestabilizadora encaminhada a por fim à “ditadura” petista que, segundo a direita cavernosa reunida no Clube Militar, estaria “sovietizando” o Brasil. O ocorrido com José Manuel Zelaya, em Honduras, e Fernando Lugo, no Paraguai, deveria servir para convencer os céticos da impaciência dos capitalistas locais e seus mentores norte-americanos para tomar o poder por assalto nem bem as circunstâncias assim o aconselhem. Para não sucumbir ante esses grandes fatores de poder será requerido, em primeiro lugar, a urgente reconstrução do movimento popular desmobilizado, desorganizado e desmoralizado pelo PT, algo que não poderá fazer sem uma reorientação do rumo governamental que redefina o modelo econômico, corte os irritantes privilégios do capital e faça com que as classes e camadas populares sintam que o governo quer ir mais além de um programa assistencialista e se propõe a modificar pela raiz a injusta estrutura econômica e social do Brasil. Em segundo lugar, lutar para levar a cabo uma autêntica reforma política que empodere de verdade as massas populares e abra o caminho amplamente demorado de uma profunda democratização. O Congresso brasileiro é uma perversa armadilha dominada pelo agronegócio e pelas oligarquias locais (253 membros da Frente Parlamentar da Agroindústria, que atravessa quase todos os partidos, sobre un total de 513) produto do escasso impulso da reforma agrária após doze anos de governo petista e das intermináveis piruetas políticas que teve que fazer para lograr uma maioria parlamentar que só se destrava a partir da rua, jamais a partir dos recintos do Legislativo. Mais. Para que o povo assuma o seu protagonismo e floresçam os movimentos sociais e as forças políticas que motorizem a mudança – que certamente não virá “de cima” – se requer tomar decisões que efetivamente os empoderem. Logo, uma reforma política é uma necessidade vital para a governabilidade do novo período, introduzindo institutos tais como a iniciativa popular e o referendo revogatório que permitirão, se é que o povo se organiza e se conscientiza, pôr um freio à ditadura de caciques e coronéis que fazem do Congresso um baluarte da reação.
 
Será esse o curso da ação em que embarcará Dilma? Parece pouco provável, salvo se a irrupção de uma renovada dinâmica de massas precipitada pelo agravamento da crise geral do capitalismo e como resposta ante a recarregada ofensiva da direita (discreta mas resolutamente apoiada por Washington) altere profundamente a propensão do Estado brasileiro a gerir os assuntos públicos de costas a seu povo. Esta é uma velha tradição política, de raiz profundamente oligárquica, que procede da época do Império, de meados do século dezenove, e que permaneceu, com ligeiras variantes e esporádicas comoções, até os dias de hoje. Nada poderia ser mais necessário para garantir a governabilidade deste novo turno do PT do que o vigoroso surgimento do que Álvaro García Linera denominara como “a potência plebeia”, em letargia por décadas sem que o petismo se atrevesse a despertá-la.
 
Sem esse maciço protagonismo das massas no Estado, este ficará prisioneiro dos poderes fáticos tradicionais, que vêm regendo os destinos do Brasil desde tempos imemoriais. E sua consequência seria desastrosa não só para este país, senão que para toda a Nossa América, porque tanto Aécio como o bloco social e político que ele representa não baixarão a guarda e não cessarão em seus empenhos para “desatrelar” o Brasil da América Latina, liquidar a UNASUL e a CELAC, promover o TLC com os Estados Unidos e a Europa e o ingresso na Aliança do Pacífico, e erigir um “cerco sanitário” que isole Cuba, Bolívia, Equador e Venezuela do resto dos países da região. Um programa, como se comprova a simples vista, em sintonia com a prioridade estratégica fundamental dos Estados Unidos na turbulenta transição geopolítica global que não é outra que fazer regressar América Latina e o Caribe à condição em que se encontravam na noite de 31 de Dezembro de 1958, às vésperas do triunfo da revolução cubana. É que quando o Império vê perigar suas posições no Meio Oriente, na Ásia Central, na Ásia Pacífico e inclusive na Europa, seu reflexo imediato é reforçar o controle sobre o que tanto Fidel como o Che caracterizaram como sua retaguarda estratégica. Quer dizer, nós. Fez isso na década dos setenta, quando era minado pelo efeito combinado da crise do petróleo, da estagflação e das derrotas na Indochina, principalmente Vietnã. Naquela conjuntura sua resposta foi instalar ditaduras militares em quase toda a América Latina e o Caribe. E tratará de fazer novamente agora, quando sua situação internacional está muito mais comprometida do que naquele então.
 
27/out./2014
Tradução: Sergio Granja