Sexta, 4
de setembro de 2015
Da Tribuna da Internet
Carlos
Newton
O depoimento do empresário Marcelo Odebrecht, presidente
do Grupo Odebrecht, na CPI da Petrobras, foi revelador de uma cultura
muito peculiar, coincidente com a visão da presidente Dilma, que também censura
os colaboradores da Justiça na operação Lava Jato. Na ótica do empresário, os
colaboradores são autênticos “traidores”. Para ele, o dever de lealdade é um
imperativo moral, tanto quanto aquele que deve valer entre irmãos, amigos e
familiares. Sua fala nos remete ao discurso da Máfia Italiana, que sempre
pregou o dever de lealdade entre seus membros e colaboradores.
O empresário afirmou que “quem nos conhece reconhece”,
acrescentando seu “legado tem valores morais dos quais nunca abrirá mão”. E
arrematou com orgulho incontestável: “Entre esses valores, desde a criação,
quando lá em casa minhas meninas tinham uma discussão ou uma briga”, dizia
‘quem fez isso?’, e talvez brigasse mais com quem dedurou do que quem fez os
fatos”, sublinhando orgulhoso sua tábua de valores e ensinamentos
transmitidos às filhas.
ENORME DESENVOLTURA
Alertado por seu advogado Nabor Bulhões, que ficou
inquieto com aquela postura insólita do cliente, e atendendo sugestões ao pé do
ouvido, o empresário Marcelo Odebrecht resolveu adicionar que não teria o que
delatar, pois não cometeu nenhum crime. Poderia ter ficado em silêncio, mas sua
postura chamou a atenção, não apenas porque mostrou enorme desenvoltura,
confiança e tranquilidade para falar abertamente aos políticos na CPI, mesmo
estando sob custódia do Estado, mas, sobretudo, pela ousadia da mensagem, ao
declinar abertamente valores morais contrários ao instituto da colaboração
premiada e até favorável ao silêncio entre criminosos ou infratores.
Razões de lealdade obscura permeiam essa aderência a uma
praxe de negócios do mundo subterrâneo. Não estamos aqui falando de cláusulas
de confidencialidade, mas de pactos de corrupção, de lavagem de capitais, ou de
crimes contra a Administração Pública, um silêncio que contrasta com interesses
públicos. É possível exigir lealdade ou segredo eterno entre partícipes dessas
práticas com base em valores morais? Como é factível aceitar essa espécie de
discurso público, seja de advogados, de empresários ou de autoridades?
PREPOTÊNCIA
Vilanizar a colaboração premiada, sem sequer examinar seus
contornos jurídicos, que pressupõem limites evidentes, significa, no mínimo,
falta de boa fé no debate público, um sinal de ignorância ou prepotência. No
caso de Marcelo, sua tranquilidade é tamanha que tudo indica ter informações de
que em breve ganhará liberdade por algum “habeas corpus”, fruto daquela velha e
arraigada sensação de impunidade que domina esse andar de cima da sociedade
brasileira, especialmente quando se trata da caminhada nos tribunais superiores,
onde se anulam as grandes operações da Justiça.
Pode até ser que Marcelo Odebrecht guarde alguma
informação privilegiada que nós, pequenos mortais, não tenhamos , e daí o ar de
superioridade e aquele sorriso estampado no rosto. Por isso, também, não
hesitou em exibir toda sua tranquilidade e seu discurso. Entretanto, há uma
inequívoca distorção na postura de Marcelo Odebrecht, que passa uma imagem
deformada à sociedade brasileira, mas, também, reveladora da subjetividade do
sujeito falante, pertencente a um segmento dominado por cultura específica e
por valores deformados da história brasileira: patrimonialismo, confusão entre
o público e o privado, impunidade.
SEUS AMIGOS
Os políticos que o contratam são seus “amigos” e o
“ex-presidente” da República chegou a ser quase um funcionário de luxo de sua
empresa, ao ponto de ganhar apelido de “Brahma”. De onde poderia vir a ojeriza
aos colaboradores? Ora, do fato de que entregam seus comparsas e auxiliam a
desmantelar estruturas criminosas. O colaborador pode mentir e caluniar? Pode,
claro, mas esse é um problema que a Justiça deve enfrentar dentro do sistema
jurídico, pois a palavra dos colaboradores, por si só, não tem valor isolado.
E colaboradores mentirosos sairão extremamente
prejudicados, pois terão admitido fatos, confessado ilícitos, e poderão perder
suas imunidades. Ou seja, quem entra no circuito da colaboração premiada, deve
estar preparado para assumir riscos. Até porque, como se sabe, um colaborador
faz relatos que devem ser acompanhados de provas, e tais provas devem ser
homologadas pela Justiça, à luz do contraditório e do devido processo legal.
Repita-se: um colaborador mentiroso pode ter seus
benefícios cassados pelo Poder Judiciário sendo obrigado, inclusive, a
responder por denunciação caluniosa. Quando se cumprem as expectativas
institucionais legítimas, os colaboradores dispõem de informações valiosas,
oriundas das estruturas criminosas – pelos motivos mais variados – e auxiliam
as autoridades públicas, aportando extratos bancários, informações contábeis,
nomes de “laranjas”, nomes de empresas, o trajeto do dinheiro, testemunhas,
dentre outros elementos. Assim, viabilizam punições, recuperação de ativos, e
combate à impunidade.
DISCURSO RETRÓGRADO
O discurso retrógrado daqueles que simplesmente rejeitam
esses mecanismos não tem lugar no mundo contemporâneo. Como é possível
considerar imoral que alguém colabore com a Justiça trazendo essas provas para
incriminar antigos companheiros de crime? Essa seria uma lógica de um delator:
ele se volta contra seus antigos comparsas e passa a colaborar com autoridades
do Estado.
Quando a presidente da república passa mensagens à
sociedade de que os “delatores” seriam “traidores” da pátria, realmente
acontece uma inversão de valores. Não é válido passar a mensagem de que o
silêncio entre criminosos compensa ou que é um valor moral. A presidente
da República não dá exemplo de pátria educadora: ela deseduca.
ATO FALHO
Ao alegar que não fez colaboração premiada porque não é
“dedo-duro”, o empresário Marcelo Odebrecht, em plena CPI, cometeu, no mínimo,
um “ato falho”, expressão de Freud, que significa dizer: um ato com significado
psíquico pleno, revelando muito mais do que se possa supor superficialmente,
como fragmento do que está guardado no inconsciente e que escapou em algum
momento. Trata-se de uma expressão de intenção omissiva ou de confronto entre
intenções opostas, uma delas inconsciente ou oculta.
Não por outra razão, despertou imediata reação de seu
advogado, que tentou ainda consertar o erro, fruto da arrogância ou
impulsividade. O inconsciente, aqui, possivelmente está na revelação de que
existiria, sim, algo para delatar, mas que, por aderência a esta código “moral”
duvidoso, que permeia gerações, não será revelado à Justiça.
A corrupção, no Brasil, e nas empreiteiras, vem de longe.
Em suas declarações, Marcelo Odebrecht só deixou clara uma coisa – sua certeza
da impunidade.