Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A BATALHA DE BRASÍLIA — Um relato sobre a resistência à invasão da Embaixada da Venezuela

Quinta, 14 de novembro de 2019
Juan Ricthelly

Logo pela manhã de uma quarta-feira que tinha tudo para ser tranquila, e quando os olhos do mundo inteiro estariam direcionados para a 11ª Cúpula do BRICS que ocorre em Brasília, mensagens de socorro começaram a circular em vários grupos de Whatsapp.

Para a surpresa geral, a informação era a de que um grupo de pessoas vinculadas a Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela, reconhecido por 50 países, incluindo o Brasil, havia invadido a Embaixada da Venezuela em Brasília, agredindo e ameaçando funcionários do corpo diplomático.

As mensagens pediam em caráter de urgência, que movimentos sociais, militantes de esquerda, partidos políticos e quem pudesse, se dirigisse imediatamente à embaixada para proteger o corpo diplomático e expulsar os invasores, já que a polícia em tese, não poderia entrar no local sem consentimento do embaixador.

Prontamente, pessoas começaram a chegar de todos os cantos, se contrapondo numericamente aos invasores, de modo que alguns foram prontamente expulsos, permanecendo apenas 11 pessoas uniformizadas.

Havia um desencontro enorme de informações, de modo que a grande mídia, relatava o ocorrido como uma iniciativa de funcionários da embaixada pró Guiadó que haviam aberto os portões pacificamente para os invasores, havendo resistência dos funcionários pró Maduro.

Diante disso, várias declarações de “autoridades” venezuelanas vinculadas a Guaidó, corroboravam essa versão, que até o momento segue ecoando pela grande mídia. O filho do Presidente da República, Eduardo Bolsonaro, declarou sem nenhum rodeio apoio explícito ao fato.

Ao chegar ao local, uma multidão de 200 pessoas era contida pela Polícia Militar do Distrito Federal, loucas para entrar na embaixada e promover a sua desocupação de forma imediata, um grupo pequeno fazia contraponto em apoio aos invasores, e como não podia intimidar pela quantidade, apelavam constantemente para a provocação, e quando percebiam a disposição de alguns provocados em responder, apelavam para a proteção policial.

Provocou e depois quis voar

Continuou a provocar, mas recebeu uma 'voadora'

Houve momentos de tensão, onde um homem com um pedaço de pau cheio de pregos foi perseguido por parte da multidão, a polícia interveio, recolheu o tacape, e liberou tranquilamente o seu portador.

Mais pessoas continuaram chegando ao local, com suas bandeiras, camisetas, cantos e falas, e assim foi o dia inteiro.

'Eu tenho um sonho'

O que mais impressionava era a passividade das autoridades brasileiras diante de um fato tão grave, uma embaixada de outro país havia sido invadida, em plena Cúpula dos BRICS, e o governo brasileiro permaneceu em silêncio até a situação se tornar insustentável.

Foto: Ana Rayssa

A polícia havia sido convidada a entrar pelo encarregado de negócios Fred Menegote, para fazer a segurança e evitar agressões entre os dois grupos que estavam lá dentro, o convite foi aceito, mas quando o mesmo encarregado de negócios solicitou que a polícia removesse os invasores, a resposta era a de que não havia uma ordem direta de nenhuma autoridade brasileira para que tal ordem fosse cumprida, e esse impasse durou o dia inteiro, e os policiais caminhavam tranquilamente dentro da embaixada, ignorando os invasores.


Os deputados Glauber Braga (PSOL), Sâmia Bonfim (PSOL) e Paulo Pimenta (PT), estiveram no interior da embaixada durante todo o ocorrido, junto com outros militantes, que vez ou outra apareciam na grade para conversar com os que estavam do lado de fora, e a resolução era simples e inexorável, de que somente sairiam da embaixada quando os invasores se retirassem.

Foto: Monalisa

Segundo relatos de pessoas que estavam do lado dentro, haviam restado apenas 11 pessoas do grupo maior que iniciou o ataque de madrugada, sendo 8 homens e 3 mulheres, de nacionalidades desconhecidas, mas supostamente venezuelanos que jamais haviam estado naquela embaixada, desmentindo a versão propagada pelas “autoridades” guaidosistas.

Foto: Jorge Guimarães

No final da tarde, uma dessas mulheres passou mal, e teve que ser removida pelos bombeiros, e grande foi a surpresa quando se descobriu que ela era na verdade boliviana.

A situação seguia indefinida, e o seu desfecho era imprevisível, já discutia até a possibilidade de acampamento em frente à embaixada, helicópteros voavam nas proximidades, a cavalaria seguia posicionada de forma ameaçadora, os robocopes da tropa de choque olhavam de longe os manifestantes por meio de seus capacetes e escudos, um cordão de policiais militares e todo esse aparato eram a única coisa que impediam a entrada de um grupo de pessoas dispostas a 'desinvadir' aquela embaixada.

Se perguntava a todo instante, como aquilo estaria repercutindo internacionalmente? Será que os BRICS diriam alguma coisa? Será que o Putin diria alguma coisa? Porque a polícia simplesmente não removia aquele pequeno grupo de invasores?

Talvez essa pergunta pairasse até mesmo na cabeça dos policiais, visivelmente desconfortáveis, por terem que passar o dia inteiro fazendo a proteção de um grupo de lunáticos que achou que seria uma ótima ideia invadir uma embaixada.

O cenário era de um grupo de 10 invasores que seguiam dentro da embaixada, os funcionários do corpo diplomático e um grupo de militantes em número superior do lado de dentro, uma multidão já na casa das 300 pessoas dispostas a entrar e retirar os invasores na marra, e a polícia impedindo que isso se tornasse realidade.

A situação não era favorável aos invasores e seus apoiadores explícitos e velados, tendo ainda o ingrediente de Rússia e China não reconhecerem Guaidó, levando o Presidente da República a se pronunciar contra a invasão e o autoproclamado presidente da Venezuela negar qualquer envolvimento. A derrota, meus caros, é uma órfã sem pai, mãe, irmãos ou qualquer parente distante.

Assim sendo, a única opção era a saída dos invasores, que ocorreu lá pelas 17 horas, entraram arrombando o portão da frente com toda a pompa e circunstância de um filme de ação, que os converteriam em heróis caso fossem bem sucedidos, e saíram pela porta dos fundos, cabisbaixos, sem moral e derrotados, enquanto a multidão comemorava ensandecida na entrada principal com discursos de Glauber Braga, Paulo Pimenta e Fred Menegote, que agradeceu de forma emocionada à solidariedade e apoio demonstrado.

Segundo o Estadão, episódios de “tomada” de embaixadas e outras sedes do governo venezuelano pela diplomacia de Guaidó, sobretudo na madrugada, já haviam ocorrido em outros países como a Costa Rica e nos Estados Unidos. Enfrentamentos entre apoiadores de Maduro e Guaidó já ocorreram no Chile e na Argentina, e também houve invasão na Bolívia.

Os invasores foram identificados segundo a polícia, mas não presos, seus nomes seguem incógnitos, se eram mesmo diplomatas e funcionários da embaixada que mudaram de lado, porque não divulgam seus nomes e demonstram que faziam parte do corpo diplomático? Talvez por que não fossem?

Outra pergunta brota...

Se a invasão fosse exitosa, qual seria a postura do governo brasileiro?

A dimensão simbólica dessa pequena vitória de ontem, é maior do que os nossos olhos e mentes alcançam, a tomada da Embaixada da República Bolivariana da Venezuela no Brasil, teria reflexos para além do fato em si, da mesma forma que a derrota de tal intento ecoa para além de nossas fronteiras, pois ontem demos uma mensagem com dois efeitos práticos, aos golpistas dizemos que “aqui não!”, e aos irmãos partidários da integração latinoamericana de outros países, a mensagem de que é possível resistir e vencer, que “¡Sí! Se puede.”

A maior lição aprendida ontem,  foi a de que o único caminho possível para a América Latina é a integração entre todas as nacionalidades, povos e singularidades que existem em seu seio, até chegarmos ao ponto de todos nos reconhecermos como latinomericanos, do Rio Grande à Terra de Fogo, de Fernando de Noronha às Galápagos.

Ontem ocorreu a Batalha de Brasília! Vencemos, outras seguem ocorrendo por todo o continente, mas a guerra segue, até o dia em que a ave do Norte não voe mais por nossos céus, a Pachamama seja um valor em si mesma, os homens e mulheres tenham o bem viver pulsando em seus espíritos e nos tornemos a utopia concreta e possível de um povo que vai ensinar à humanidade que outro mundo é possível.

“Soy América Latina, un pueblo sin piernas, pero que camina…”