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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Como surgiu o pensamento único

Segunda, 27 de dezembro de 2021

Fonte: AEPET, com informações do Le Monde Diplomatique

Escrito por Susan George
27 Dezembro

Mitologias contemporâneas

O conjunto de ideias recebidas e que ainda exercem hegemonia sobre as políticas públicas e que, graças à adesão dos meios de comunicação, invadem a mente das pessoas não é mais "natural" do que qualquer outro: o neoliberalismo, uma reformulação simplista de doutrinas do início do século dezenove iniciou, sob a indiferença geral, sua construção de facto após o fim da Segunda Guerra Mundial. Todavia, algumas décadas depois, graças à inteligência estratégica de seus promotores, às centenas de milhões de dólares em patrocínios e malgrado os resultados desastrosos das medidas que inspirou, ele se tornou a base do pensamento único.

Se os neoliberais (1) e o pensamento único (2) parecem ser os atuais mestres no terreno ideológico, nem sempre foi assim. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o neoliberalismo era ultraminoritário em todos os quadrantes do planeta. Se nos Estados Unidos seus pais fundadores tinham poucos recursos no início, lá eles tinham aprendido um princípio essencial: as ideias têm consequências. Em 1948, Richard Weaver usou esta máxima como título para seu livro que teria uma longa carreira e um grande impacto do outro lado do Atlântico (3).

Não foi por acaso que este texto tenha sido publicado pela Chicago University Press, visto que a universidade daquela cidade (4) era o "nó duro" do nascente neoliberalismo. August Friedrich von Hayek, economista e filósofo austríaco no exílio, tinha dado à luz, em 1944, um livro também de grande influência, O caminho para a servidão (5). As obras de um outro jovem e brilhante economista, um certo Milton Friedman, foram também editadas, assim como outras obras das estrelas em ascensão do movimento (6). A Escola de Chicago, composta por economistas familiarmente conhecidos como Chicago Boys, tornou-se célebre e seus membros tornaram-se alguma coisa como um enxame mundo afora, nomeadamente no Chile do general Pinochet. Sua doutrina econômica, mas também filosófica e social, passou a ser ensinada urbi et orbe. Os livros de Milton Friedman, como Capitalismo e liberdade (7) tornaram-se sucessos de venda em livrarias do mundo inteiro.

Para o neoliberal, a liberdade individual não resulta da democracia política ou dos direitos assegurados pelo Estado: ser livre, ao contrário, é ser livre da ingerência do Estado. Este deveria se limitar a estabelecer as condições para permitir o livre jogo do mercado. A propriedade privada de todos os meios de produção e a privatização de tudo o que pertence ao Estado era indispensável. O mercado repartirá melhor os recursos, os investimentos e o trabalho; a assistência social e o voluntariado privados devem substituir a quase totalidade dos programas públicos destinados aos grupos socialmente desfavorecidos. O indivíduo tornar-se-ia, assim, inteiramente responsável por sua sorte.

A fim de pôr em prática esse tipo de programa – diretamente oposto ao New Deal (de Franklin Roosevelt, nos EUA da Grande Depressão dos anos 1930) ou à doutrina do Estado-Providência – os neoliberais sempre souberam que seria necessário começar por transformar a paisagem intelectual, já que antes de ter consequências sobre a vida dos cidadãos, as ideias precisam ser propagadas. É necessário permitir àqueles que as produzem, que as publiquem, as ensinem e as difundam, e o façam em boas condições. Foi por isto que, a partir de 1945, o movimento neoliberal não parou de recrutar pensadores e apoiadores e de se dotar de meios financeiros e institucionais importantes. Seu arsenal se compõe em parte de "caixas de ideias" (os famosos "think-tanks"), sendo que as mais influentes estão nos Estados Unidos. É útil relembrar aqui (8) as atividades de algumas dessas caixas.

A Hoover Institution on War Revolution and Peace foi fundada em 1919 pelo futuro presidente Herbert Hoover. Sediada no campus da Universidade de Stanford, ela é célebre por suas coleções de documentos sobre as revoluções russa e chinesa. À sua vocação primária de combater a guerra fria (graças, principalmente, a seu anuário International Communist Affairs) ela agregou, a partir de 1960, uma seção econômica. Um orçamento anual de cerca de US$ 17 milhões tem permitido financiar, entre muitos outros, os trabalhos de Edward Teller (um dos pais da bomba atômica, em geral considerado como o modelo para o Dr. Folamour) e de economistas como George Stigler e Milton Friedman, que fazem a ligação entre Stanford e Chicago.

O American Enterprise Institute (AEI) é também uma instituição antiga, em funcionamento desde 1943, fundada por homens de negócios para fazer oposição a diferentes aspectos do New Deal. Situada em Washington, ela se distingue por seu agudo senso de relações públicas intelectuais e pelo marketing de ideias, trabalhando diretamente com membros do Congresso, com a burocracia federal e com os meios de comunicação. Nos anos 1980, o Instituto empregava cerca de cento e cinquenta pessoas das quais cerca de cinquenta dedicadas exclusivamente à pesquisa e à produção de livros, relatórios e outras análises ou recomendações políticas e econômicas. A refletir o declínio relativo de sua influência, seu orçamento anual (12,8 milhões de dólares em 1993) mal chega ao nível de dez anos antes.

A Heritage Foundation é a mais conhecida, visto que é a mais associada à presidência de Ronald Reagan. Em atividade desde 1973, ela dispõe de um orçamento anual de cerca de 25 milhões de dólares e produz algo como duzentos documentos por ano. Particularmente ativa junto aos meios de comunicação, mais citada que qualquer outra, ela publica um anuário de especialistas em matéria de políticas públicas contendo os nomes de mil e quinhentos pesquisadores e especialistas repertoriados em cerca de setenta temas. Um golpe de sorte inesperado para jornalistas apressados é poder apelar a eles para respaldar seus artigos com garantias "científicas".

É preciso mencionar igualmente dois centros intelectuais: o Cato Institute, em pleno crescimento, advogado do "governo minimalista", especializado nos estudos sobre a privatização e o Manhattan Institute for Policy Research, fundado em 1978 por William Casey, futuro diretor da CIA, cuja crítica aos programas governamentais de redistribuição de renda têm tido muita repercussão. Essas duas "caixas" recomendam invariavelmente o mercado como solução para todos os problemas sociais. Entre os "think-tanks" e o governo existe um sistema de vasos comunicantes que permitiu que veteranos do governo Nixon encontrassem refúgio no intervalo do governo de Jimmy Carter, assim como aqueles do período Reagan-Bush o encontrassem sob a atual presidência de Bill Clinton.

Fora dos Estados Unidos, a rede de instituições intelectuais neoliberais é menos ampla. No Reino Unido, os "commandos da senhora Thatcher", como gostam de ser chamados, conseguiram, entretanto, marcar alguns pontos importantes na luta ideológica.
Pode-se mencionar o Centre for Policy Studies, o Institute of Economic Affairs, cuja lista de publicações se lê como um 'Quem é quem' de economistas conservadores e, sobretudo, o Adam Smith Institute, de Londres, que tem "feito mais que qualquer outro grupo de pressão no seio da nova direita para promover a doutrina da privatização no mundo inteiro", segundo Brendan Martin, especialista no assunto (9).

O prêmio por antiguidade e de influência a longo prazo renasceu na Societé du Mont-Pèlerin. Em abril de 1947, cerca de quarenta personalidades americanas e europeias se reuniram, a convite do professor Friedrich von Hayek, nesta cidade suíça, situada perto de Montreux, para participar de uma conferência de dez dias. Após destacar a gravidade do momento – os valores centrais da civilização estavam em perigo – o grupo declarou que por um "declínio das ideias a favor da propriedade privada e do mercado concorrencial, na ausência da difusão do poder e da iniciativa que permitem essas instituições, fica difícil imaginar uma sociedade onde será possível preservar, de modo efetivo, a liberdade" (10).

Entre 1947 e 1994, a Sociedade se reuniu vinte e seis vezes, cada vez durante uma semana e em uma cidade diferente. Em 1994, foi a vez de Cannes. Em setembro próximo, seus membros, cujo número já passou de quarenta para quatrocentos e cinquenta, retornarão à origem de Hayek, Viena. A Sociedade reconhece prontamente os seis vencedores do Prêmio Nobel de economia saídos de seus quadros, mas não divulga a lista de seus membros. Ela prefere evitar "a publicidade e a midiatização" (11). Depois de muitos anos, centenas de milhões de dólares foram dedicados à produção e à difusão da ideologia neoliberal. De onde vem este dinheiro? No início, nos anos 1940-1950, o Fundo William Volker teve um papel central. Foi esse fundo que salvou periódicos vacilantes, financiou muitos livros publicados em Chicago, assumiu os saques não pagos pela Foundation for Economic Education e organizou seminários em diversas universidades americanas. Foi também ele que financiou a viagem de participantes americanos para a primeira reunião da Societé du Mont-Pèlerin.

Nos anos 1960, os neoliberais não estavam mais marginalizados. Numerosas fundações familiares americanas passaram a sustentá-los e não deixaram de sustentar suas instituições. A Fundação Ford – um verdadeiro "elefante" da caridade – tinha aberto as portas para muitas outras instituições da centro-direita e do centro que doaram 300.000 dólares em subvenção ao American Enterprise Institute. A fundação Bradley (que fez uma doação de 28 milhões de dólares em 1994) financia, entre outras, a Heritage Foundation, o American Enterprise Institute e diversas revistas (12). Assim, entre 1990 e 1993, quatro revistas neoliberais, entre as mais importantes (The National Interest, The Public Interest, New Criterion e American Spectator), receberam de diversas fontes 27 milhões de dólares. A título comparação, as quatro revistas progressistas americanas de circulação nacional (The Nation, The Progressive, In These Times e Mother Jones) receberam, no mesmo período, apenas 269.000 dólares a título doações (13).

Intelectuais à venda

As fundações estão apoiadas sobre grandes e antigas fortunas industriais americanas, como a Coors (cervejaria), Scaife e Mellon (siderurgia) e, sobretudo, a Olin (produtos químicos), que financiam também as cátedras nas universidades de maior prestígio nos Estados Unidos. Trata-se de "reforçar as instituições econômicas, políticas e culturais sobre as quais está baseada a empresa privada", segundo uma brochura da Fundação Olin que doou, em 1988, 55 milhões de dólares para este objetivo. Daí decorre que, com somas como estas, o doador generoso passa a ter o direito de nomear professores que irão ocupar as cátedras e dirigir os centros de estudos (14). A Olin controla as cátedras de direito e de economia nas universidades de Harvard, Yale, Stanford e, certamente, na de Chicago dentre muitas outras (15). O historiador francês François Furet, que recebeu 470.000 dólares como diretor do programa John M. Olin de Cultura Política da Universidade de Chicago, foi um dos beneficiários dessas liberalidades.

O dinheiro permite, assim, organizar a notoriedade e o "campo" em que se desenrolam os "debates" criados em todos os seus aspectos. Em 1998, Allan Bloom, diretor do Centro Olin para o estudo da teoria e a prática da democracia na Universidade de Chicago (que recebe todos os anos 36 milhões de dólares da Fundação Olin) convidou um obscuro funcionário do Departamento de Estado para fazer uma palestra. A palestra aconteceu e proclamou a vitória total do Ocidente e dos valores neoliberais na Guerra Fria. Esta palestra foi transformada em artigo e publicada na The National Interest (revista que recebe 1 milhão de dólares de subvenção da Olin), cujo diretor é um conhecido neoliberal, Irving Kristol, então financiado no montante de US$ 326.000 pela Fundação Olin como professor da Business School da New York University. Kristol convidou Bloom e um outro renomado intelectual de direita, Samuel Huntington (diretor do Instituto Olin de Estudos Estratégicos em Harvard, criado graças a um financiamento de 14 milhões de dólares) para "comentar" este artigo no mesmo número da revista. Kristol também vai aduzir seu "comentário".

O "debate" levantado por quatro beneficiários dos recursos da Olin, em torno de uma palestra bancada por recursos da Olin, publicada em uma revista bancada pela Olin, se encontrará em breve nas páginas do New York Times, do Washington Post e da Time. Nos dias de hoje, todo mundo já ouviu falar de Francis Fukuyama e seu O Fim da História, transformado em best seller em muitas línguas! O cíclo ideológico se fecha quando conseguimos ocupar as páginas de debates dos grandes jornais diários, das ondas de rádio e das telas. Este triunfo foi alcançado virtualmente sem acertar o alvo. Por não acreditar que as ideias têm consequências, acabamos por sofrê-las.

Susan George - Vice-presidente da Attac France (L'Association pour la taxation des transactions financières et pour l'action citoyenne), autora de Report Lugano, Fayard, Paris, 2000, de Remetre l'OMC à sa place, Mille et Une Nuits, Paris, 2001 e, com Martin Wolf, de Pour ou contre la mondialisation libérale, Grasset, Paris, 2002.

(1) A terminologia pode provocar confusão. Nos Estados Unidos, um neoliberal se considera um neoconservador (ou neo-con) dado que naquele país um "liberal" é, de preferência, alguém de esquerda ou que vota no Partido Democrata.

(2) O "pensamento único" foi identificado e denunciado, pela primeira vez, por Ignacio Ramonet em seu editorial do Le Monde Diplomatique, em janeiro de 1995.

(3) Richard Weaver, Ideas Have Consequences, Universityof Chicago Press, 1948.

(4) Ler Serge Halimi, "L'Université de Chicago, um petit coin de paradis bien protegé", Le Monde Diplomatique, abril de 1994.

(5) August Friedrich von Hayek: "La Route de la servitude", PUF, Paris, 1992.

(6) Por exemplo, Russell Kirk ("The Conservative Mind", 1953), Leo Strauss (Natural Right and History, 1953).

(7) Milton Friedman, "Capitalisme et liberté", Laffont, Paris, 1971. O texto original está em "Capitalism and Freedom" e foi publicado em 1962.

(8) Ler a enquete de Serge Halimi, "Les 'boîtes' à idées de la droite americaine", Le Monde Diplomatique, maio de 1995. Ler também sobre este assunto, James Allen Smith, "The Idea Brokers: Think-Tanks and the Rise of the New Policy Elites", The Free Press, New York, 1991 e George H. Nash, "The Conservative Intellectual Movement since 1945", Basic Books New York, 1976.

(9) Brendan Martin, In the Public Interest?, Zed Books, Londres, 1993, página 49.

(10) Statement of Aims, Mont-Pelerin Society, adotado em 8 de abril de 1947, citado em George Nash, op. cit, p. 26.

(11) Essas indicações sobre as atividades atuais da Sociedade do Mont-Pélérin nos foram amavelmente cedidas por seu atual presidente, Sr. Pascal Salin, professor da Universidade Paris-Dauphine e conselheiro próximo do Sr. Alain Madelin.

(12) Ler Beth Schulman, "Foundations of a Movement: How the Right Wing Subsidises its Press", EXTRA! Fairness and Accuracy in Reporting (FAIR), New York, março-abril de 1995.

(13) Ler Favid Calhan, "Liberal Policy's Weak Foundations", The Nation, 13 de novembro de 1995.

(14) Jon Weiner, "Dollars for Neocon Scholars", The Nation, 1o de janeiro de 1990.

(15) Jon Weiner, ibid.

Fonte: Le Monde Diplomatique