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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 13 de junho de 2022

‘Dom! Dá notícia!’: Na esperança de que ele responda minha mensagem e siga ecoando a voz dos defensores da floresta

Segunda, 13 de junho de 2022
O jornalista inglês conversa com moradores de um assentamento do MST em Eldorado dos Carajás, no Pará (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

‘Dom! Dá notícia!’: Na esperança de que ele responda minha mensagem e siga ecoando a voz dos defensores da floresta

De Repórter Brasil
Por Daniel Camargos
| 10/06/22

Parceiro de trabalho e amigo de Dom Phillips, jornalista da ‘Repórter Brasil’ reforça apelo por mais seriedade nas operações de busca pelo inglês e pelo indigenista Bruno Pereira

“Você é aquele cara que o Bolsonaro xingou?”, perguntou certa vez um brigadista a Dom Phillips, jornalista inglês que está desaparecido no Vale do Javari (AM), juntamente com o indigenista Bruno Pereira. Dom e eu estávamos na Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, na divisa do Mato Grosso com o Pará, quando a pergunta surpreendeu o jornalista. A vegetação do alto da serra havia virado carvão e caminhávamos em direção a uma linda cachoeira, quase um oásis no meio da destruição. “Como você sabe disso?”, perguntou Dom, meio assustado.

O brigadista explicou ter recebido um vídeo pelo Whatsapp. Ele estava nos acompanhando durante uma apuração que Dom, eu e o fotógrafo João Laet estávamos fazendo ali, em outubro de 2019, sobre responsáveis pelo Dia do Fogo, quando fazendeiros e empresários se organizaram para queimar as florestas no Pará.

Meses antes, em julho daquele ano, Dom havia participado como jornalista do The Guardian de uma entrevista com Jair Bolsonaro (PL). Logo no início, ele questionou o presidente sobre o crescimento do desmatamento na Amazônia, a paralisia do Ibama e a ligação do então ministro Ricardo Salles com madeireiros.

A resposta de Bolsonaro foi grosseira: “Primeiro você tem que entender que a Amazônia é do Brasil. Não é de vocês”. O presidente seguiu acusando ONGs e imprensa de mentirem sobre a destruição da Amazônia. As respostas foram editadas e compartilhadas por veículos depois punidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por divulgarem fake news.

“Caraca”, disse Dom, já de volta à caminhonete, ao mostrar espanto por ter sido reconhecido ali, em local tão remoto. Fluente em português – com expressões de carioquês –, Dominique Phillips não perdeu o sotaque da região de Liverpool, nem o jeitão de gringo depois de 15 anos vivendo no Brasil. O onipresente “caraca”, aliás, veio dos anos morando no Rio de Janeiro, onde viveu até se mudar para Salvador no início de 2021.

Seguimos viagem e, depois de muita insistência do Dom, atrasamos a chegada em Itaituba para tentar uma entrevista com um dos principais suspeitos de articular o Dia do Fogo: Agamenon Menezes, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso (PA).

Os jornalistas Dom Phillips e Daniel Camargos fizeram diversas apurações conjuntas; na da foto, trabalham em uma reportagem na área rural de São Félix do Xingu, no Pará (Foto: João Laet/Repórter Brasil)

Não lembro bem qual foi a expressão dessa vez, mas ao entrarmos na caminhonete Dom soltou mais um palavrão carioca de espanto destacando a semelhança entre o discurso de Menezes e as falas do presidente Jair Bolsonaro, com quem tinha estado meses antes, durante a entrevista coletiva. Para Menezes, o ‘Dia do Fogo’ foi uma invenção da imprensa para atingir o presidente Jair Bolsonaro. “Todo mundo quer derrubá-lo. Aproveitaram essa deixa”, afirmou o ruralista 18 dias antes de ter sido alvo da operação ‘Pacto de Fogo’, da Polícia Federal.

Essas semanas percorrendo o sudoeste do Pará seguindo o rastro do Dia do Fogo era a nossa segunda viagem juntos, fruto de uma parceria da Repórter Brasil com ‘The Guardian’. Nossa série de reportagens foi indicada para as finais de dois prêmios de jornalismo: Gabriel García Márquez e Vladimir Herzog.

Na primeira viagem, fomos até São Félix do Xingu e mostramos que uma fazenda do banqueiro Daniel Dantas criava gado em área embargada pelo Ibama e vendia para a JBS. Uma investigação feita a muitas mãos, em parceria também com o Bureau of Journalism Investigative, que pode ser lida em inglês no Guardian e em português na Repórter Brasil.

Jornalismo, amizade e piadas

Além da parceria jornalística, nasceu nessas viagens uma amizade, que se desdobra em conversas, pedidos de ajudas mútuos em reportagens, troca de contatos de fontes e conversas corriqueiras. Revendo nossos diálogos, quando contei que estava sofrendo com os efeitos adversos da vacina Astrazeneca e que estava pensando em virar antivax (com ironia, é claro) ele respondeu: “Presente dos ingleses para você”, fazendo uma brincadeira sobre a origem anglo-sueca da vacina.

Dom é um cara calmo, equilibrado e um jornalista brilhante. Quer sempre o detalhe, não desiste nunca de conseguir uma informação, se embrenha por planilhas e sites da burocracia brasileira como poucos nativos são capazes. É o pai da paciência e, sobretudo, vê-lo entrevistando é uma lição.

Ele não interrompe o entrevistado, não direciona as respostas, espera a conclusão do raciocínio e, com muita educação, elabora perguntas duras, sem ofender. Um mestre com quem aprendo muito e espero seguir aprendendo.

Dom está desaparecido desde a manhã de domingo (5) quando deveria ter chegado em Atalaia do Norte, nas margens dos rios Javari e Itaquaí – local em que ele e Bruno Pereira foram vistos pela última vez, quando deixaram a comunidade ribeirinha de São Rafael. A atuação de Bruno na defesa dos indígenas, especialmente os isolados, levou Dom a procurá-lo para acompanhá-lo na viagem.

Bruno é um indigenista experiente, que comandou a Funai em Atalaia do Norte e chegou ao posto de coordenador-geral de Índios Isolados e de Recém Contatados da fundação. Foi exonerado do cargo em outubro de 2019, no governo Bolsonaro em retaliação por ter comandado a maior operação contra garimpo na Terra Indígena Yanomami. Um ano antes, Dom acompanhou para uma reportagem o indigenista em uma missão para rastrear povos isolados que ameaçavam uma aldeia dos Marubo (em inglês).

O texto tem a delicadeza do olhar do Dom e sua capacidade de transportar o leitor até a floresta: “Usando apenas shorts e chinelos enquanto se agacha na lama perto de uma fogueira, Bruno Pereira, funcionário da agência indígena do governo do Brasil, abre o crânio cozido de um macaco com uma colher e come seu miolo no café da manhã enquanto discute política”.

“Primeiro você tem que entender que a Amazônia é do Brasil. Não é de vocês”, respondeu grosseiramente Bolsonaro ao ser questionado por Dom Phillips sobre a alta do desmatamento e a paralisia do Ibama (Foto: Foto: Marcos Corrêa/PR)

Quatro anos depois, a dupla se reuniu novamente para esta nova missão no Javari. Pereira foi colaborar com Dom para que ele pudesse escrever um dos capítulos de um livro em andamento, possível graças a uma bolsa da Fundação Alicia Patterson.”Foi a primeira vez em 30 anos que os três juízes [da premiação] colocaram a mesma pessoa em primeiro lugar”, me disse em uma mensagem, cheio de orgulho, em janeiro do ano passado, contando sobre a bolsa.

O objetivo da viagem para a Terra Indígena Vale do Javari era apurar sobre como os indígenas se organizam para defender seu território dos invasores. No caso, pescadores, caçadores, madeireiros, garimpeiros – muitos deles associados ao tráfico de drogas internacional, que usa os rios da região para escoar a cocaína dos vizinhos Peru e Colômbia.

A organização dos indígenas estava avançada. Tanto que Bruno tinha uma viagem marcada para o Maranhão, onde firmaria um intercâmbio com os Guardiões da Floresta do povo Guajajara, criado em 2012 para proteger o território contra madeireiros, grileiros e garimpeiros. Também já estava prevista uma viagem dos Guajajara até o Vale do Javari.

Todos esses temas cruciais para o livro do jornalista inglês. “Quero entender como vocês lidam com as ameaças de invasores, de garimpeiros. Uma parte muito importante [do livro que está escrevendo] é a proteção dos povos indígenas e do protagonismo de vocês”, disse Dom em uma conversa que teve há um mês com os Ashaninka, em uma aldeia próxima a Marechal Thaumaturgo, no Acre.

No entanto, as estratégias de autodefesa dos territórios – necessárias devido ao descaso do governo federal em proteger os territórios indígenas – elevam ainda mais a tensão com os invasores. No Maranhão, cinco indígenas foram assassinados em um intervalo de cinco meses.

A articulação feita por Bruno no Vale do Javari e que Dom viajou para reportar pode ter sido um dos motivos pelos quais eles teriam sofrido uma emboscada. Segundo reportagem da Amazônia Real, pescadores ligados aos traficantes que circulam pelos rios da região seriam os responsáveis.

Apelo por buscas sérias

É fundamental que as buscas pelos dois sejam efetivas. Uma série de trapalhadas e a má vontade dos órgãos federais fez com que um tempo fundamental fosse perdido.

“Eu queria fazer um apelo, para o governo federal e para os órgãos competentes, para intensificarem as buscas que a gente ainda tem um pouquinho de esperança de encontrar eles. Mesmo que eu não encontre o amor da minha vida vivo, eles têm que ser encontrados. Por favor, intensifiquem essas buscas”, implora Alessandra Sampaio, companheira de Dom.

O fato é que a região do Vale do Javari é uma área conflagrada pela violência. Episódios de ataques a tiros aos postos de vigilância da Funai se repetem desde que Bolsonaro chegou ao poder. O discurso anti-indígena, antiambiental, anti-imprensa e anti-ONG do presidente serve como combustível para inflamar contraventores, que se sentem avalizados pela principal autoridade do Brasil.

‘Um mestre com quem aprendo muito e espero seguir aprendendo’, diz Daniel Camargos sobre o amigo Dom Phillips, fotografado por ele na escola de um acampamento do MST em Eldorado dos Carajás, no Pará (Foto: Daniel Camargos/Repórter Brasil)

Bolsonaro não apenas ignorou todos episódios de violência ocorridos na região durante seu governo e não disponibilizou ajuda imediata para as buscas. Em vez de prestar solidariedade a Dom e Bruno, foi capaz de atribuir o desaparecimento aos dois: “Realmente… Duas pessoas apenas, em um barco, em uma região daquela, né, completamente selvagem, é uma aventura que não é recomendável que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser um acidente, pode ser que eles tenham sido executados”, afirmou ao SBT.

Entre os casos do longo histórico de violência da região ignorado pelo presidente está o do servidor da Funai, Maxciel Pereira dos Santos, assassinado em 2019. Max, seu apelido, tinha 34 anos e começou a trabalhar com os indígenas do Vale do Javari quando tinha apenas 18. “Ele deu a vida em prol dos índios”, disse Beto Marubo, coordenador técnico na Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) em entrevista para o especial Cova Medida da Repórter Brasil.

Dom mandou uma mensagem em julho do ano passado com uma dúvida sobre mais um episódio de violência da região. Leu uma reportagem da Folha de São Paulo que mostrou a gravação do coordenador da Funai no Vale do Javari, o tenente da reserva do Exército Henry Charlles Lima da Silva encorajando líderes do povo marubo a “meter fogo” nos indígenas isolados caso sejam “importunados” por eles. “Nesse contexto, o tenente está dizendo para abrir fogo, para atirar?” perguntou. Disse que sim e ele fez graça. “O gringo aqui tava achando que era para botar fogo”.

Dom é, sem dúvida, um gringo “maneiro”, como dizem os cariocas de Liverpool. Outros jornalistas, que assinaram uma carta conjunta, contaram que Dom é o amigo que manda mensagens no WhatsApp no dia do aniversário.

“Seus amigos o conhecem como um cara sorridente que levanta antes do sol nascer para fazer stand-up paddle”, escreveram em um apelo, em uma recusa de perder a esperança. Alessandra, esposa dele, define Dom como alguém que ama o Brasil e ama a Amazônia: “Ele poderia viver em qualquer lugar do mundo, mas escolheu viver aqui”.

Em uma de nossas viagens, folgamos em um domingo e passamos o dia em Alter do Chão, praia de rio paradisíaca próxima a Santarém, no oeste do Pará. Enquanto eu e o fotógrafo João Laet desmontamos exaustos sentados na areia, Dom alugou um stand-up paddle remou por horas pelo rio Tapajós. Voltou eufórico, descrevendo as belezas do rio e da vegetação.

“Dom!!!! Dá notícia!!!” A esperança é que ele responda a essa última mensagem que mandei e apareça contando sobre a beleza da floresta e ecoando a voz de todos aqueles que querem defendê-la.

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